Vamos ao Circo
Tínhamos lugares marcados numa fila da frente, reservada
para a União de Grémios de Lojistas. À nossa frente uns figurões. As Autoridades.
O presidente da Câmara, o governador civil, o reitor do Liceu, o comandante da
Legião e, mesmo à minha frente, Sua Excelência Reverendíssima, Dom Ernesto Sena
de Oliveira, o bispo de Coimbra, que se encontrava acompanhado por um padre.
Este padre tinha uma figura fantástica, e segredava permanentemente ao ouvido
de D. Ernesto palavras que o faziam assentir com gravidade. Um amigo do meu pai,
da Gráfica de Coimbra, veio cumprimentar e, reparando no meu interesse, disse
qualquer coisa que me fez sentir ignorante sobre as profundidades da vida
religiosa e acentuou a sensação de estranheza relativamente ao acontecimento. Hoje
sei que o misterioso personagem era o padre mexicano Agustín Fuentes, que
andava a preparar-se para ser postulador da causa da beatificação dos
pastorinhos, visitara Coimbra e conseguira uma entrevista com a irmã Lúcia, que
encontrou muito triste, pálida e abatida. Com uma colorida identificação na
lapela davam na vista os participantes do Congresso Beirão e do Encontro dos
Bibliotecários e Arquivistas. Um grupo de quartanistas de Farmácia, trajado,
apesar do calor, foi particularmente saudado. Sempre me espantei com o círculo
de conhecimentos do meu pai. Fez-nos levantar várias vezes para cumprimentar e
ser apresentados a antigos amigos, que tinham em comum serem diferentes dos
amigos mais recentes e falar com sotaque beirão. Um deles, com um nome sonante,
lembrou que era um dia importante para a cidade porque o Museu Machado de
Castro fora elevado a Museu Nacional, e fiquei contente,
porque achei que era matéria com que o meu pai podia concordar com facilidade.
Os Serões tinham a locução de uma glória da Emissora
Nacional, Fernando Correia, que ainda hoje empresta a sua bela voz a programas
de futebol, na rádio e na televisão, e na época contracenava com uma apresentadora,
cujo nome era Maria Júlia.
O ambiente era caloroso, de
expectativa. Cheirava à erva acabada de semear e a colina da Universidade
estava iluminada. Lembro-me da ausência de cor e de pele, que eram a marca
daqueles anos de gente parda e tapada. A única excepção eram os decotes das
senhoras casadas, que mostravam a linha de separação das mamas, muito direita,
como um símbolo gráfico. Não havia raparigas, ou se havia eram filhas dos
comerciantes do Grémio, magras e amedrontadas. À entrada do recinto, dois
homens, conhecidos como o Calmeirão e o Pianinho, vendiam pevides.
Revelando um profundo
conhecimento da história pátria e a identificação com os propósitos subjacentes
à ideia de FNAT, o apresentador começou por evocar o 9º centenário da Tomada da
cidade aos Mouros. A sua voz era hipnótica. Pareceu-me sempre ser a voz do
Regime, ou a outra voz do regime, depois do Artur Agostinho. Jovial, alegre, sem
que se percebesse bem porquê, mas certamente pela nossa singularidade de sermos
pobres e não termos coca-cola, nem droga, loucura e morte, nem democracia,
porque éramos umas crianças grandes que ainda não estavam preparadas. Nunca
estaríamos preparados, apesar do esforço da FNAT em educar os trabalhadores, em
dar-lhes os melhores cantores nacionais e estrangeiros. Como a Maria da Graça, o Franciso José e as Irmãs
Remartinez. Ou o Odir Odillon.
Roberto Carlos interpretou a canção Coimbra é uma lição, António Calvário os
seus últimos êxitos.
O entusiasmo ia crescendo,
sabiamente gerido pelo apresentador. E a certa altura do alinhamento, o homem
do microfone anunciou o hino que percorre Portugal, ali interpretado pelo Coro
e Orquestra da FNAT, dirigido pelo maestro Duarte Pestana. Angola… As pessoas
levantaram-se das cadeiras aos primeiros acordes… É nossa… Nós ficámos sentados
durante um tempo infinito… Angola… tendo à frente as batinas pretas de Sua Excelência
Reverendíssima… É nossa… e do seu acompanhante… Angola… e atrás uma multidão em
êxtase… É nossa… Até que o meu pai se levantou também, pondo fim àquela
expectativa. O hino começava com um ruído que simulava o bater de botas de uma
coluna militar…Angola… A palavra de ordem simples, inicialmente sussurrada…É
nossa… Aproximando-se progressivamente, até nos atropelar com o primeiro verso,
a forte declaração de guerra e posse. Angola é nossa, gritavam eles, o povo heróico português,
atrás de nós, ameaçando esmagar a vil traição! Castigar o invasor, destroçar,
pelejar até vencer! Lá estão eles todos a gritar: Angola é nossa, Angola é
nossa… É nossa, é nossa… Angola é nossa!
Batem palmas até se cansarem. Apenas a minha irmã permaneceu sentada. Mas
é tão pequenina que ninguém leva a mal e a sombra da batina de Sua Reverência
escondeu o seu olhar dardejante. Já se começam a sentar. Ainda não é desta que
nos esmagam. Ainda não é hoje que perceberam a nossa vil traição.
O meu pai sacudiu os olhares cravados nas costas. Voltou-se para trás e
vendo os olhares reprovadores dos lojistas e das esposas, dos empregados de
balcão e das esposas, cravados nas nossas costas suspeitas, disse em voz alta: -
Têm um lindo hino. Vocês têm um lindo
hino.
Etiquetas: A bicicleta de Russel, Crónica do i
1 Comentários:
Grande crítico musical, sim Senhor
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