Milícias do leite e o direito à escolha
Um
dos laços mais fortes à nossa animalidade é o aleitamento materno. Durante um
período os bebés humanos não têm dentes e demonstram uma capacidade limitada
para procurar, preparar e digerir outros alimentos além do leite humano. A
nossa sobrevida esteve, e em muitas partes do mundo assim se mantém, dependente
do aleitamento materno . As tentativas de substituição eram limitadas. Leite de
outras mulheres, leite de fêmeas de outras espécies, mais ou menos modificado
para se adequar às capacidades digestivas de um animal imaturo, foram soluções
de recurso. Apesar de muito referidas, envolveram, num cômputo geral, um número
reduzido de indivíduos e com sucesso limitado. Até que, no século XX, as
sociedades industrializadas produziram derivados do leite de vaca compatíveis
com as capacidades de digestão e absorção dos mais pequenos e, ao mesmo tempo,
alimentos em quantidade nunca vista, entre os quais alguns permitiam o desmame
precoce dos lactentes. Pouco tempo
depois assistia-se a um enorme aperfeiçoamento do controle reprodutivo e uma
crescente democratização do acesso das mulheres à esfera pública, à
participação política e a cargos de chefia. Nos anos 70 uma reacção iniciou-se,
apoiada nos estudos da composição do leite materno e da sua superioridade
relativamente aos artefactos de substituição e na valorização da ligação
precoce mãe-filho e dos seus facilitadores.
Foi
um tempo que tornou possíveis realizações como o Acordo com as companhias leiteiras sobre a limitação da
propaganda dos leites de fórmula, incluindo o arrefecimento do marketing com
regras que limitavam o aspecto apelativo das embalagens e impediam a
distribuição de leites substitutivos nas maternidades.
Alguns
movimentos vieram, a reboque destas alterações, criar nas Maternidades um
ambiente de unaninismo intimidatório: hospitais aderentes a um movimento
fundamentalista escondido atrás da designação simpática de Hospitais Amigos do
Aleitamento Materno, apadrinhado pela OMS/UNICEF através do qual a pressão
sobre as escolhas das mulheres se inicia na preparação do parto, passa pela
mamada em cima da expulsão fetal, pelos cartazes afixados e atinge o paroxismo
num sinistro Cantinho da Amamentação.
La
Leche Liga, uma organização que declara actuar em 50 países e tem
representantes entre nós, enuncia um conjunto de princípios lactivistas e
distribui textos de tradução automática e conteúdo profundo dos quais se
destaca este, relativo ao momento ideal para o desmame: “ idealmente o desmame é feito por iniciativa do bebé”. Nesta como em outras
questões, o bebé sabe mais do que a mãe e retira-lhe a iniciativa. O bebé e as
senhoras da Liga.
Estes
movimentos baseiam-se em alguns princípios simples: 1. As mulheres são ignorantes
e devem ser preparadas para o
aleitamento, ensinadas a amamentar, elucidadas sobre as vantagens do
aleitamento, induzidas a assegurar
laços de intimidade que apenas as boas mães que amamentam podem, legitimamente,
esperar obter a longo prazo. 2. As voluntárias do movimento
aliciam enfermeiras e médicas, orgulhosas por ganhar para as suas instituições
um galardão de pretensa qualidade, obtido através da adesão inconsciente a
princípios totalitários. 3. Este ensinamento não tem fim nem princípio. Deve
iniciar-se antes do parto, em cursilhos que lembram os grupos de auto-ajuda,
inundados em progesterona. 4. A
mãe é subliminarmente culpada pelo eventual falhanço da amamentação. Neste como
em outros aspectos da vida, os crentes acreditam que é preciso mais ensino,
melhor ensino, melhores regras, uma estrita ética do bem.
Com
99% de mulheres a ter alta da maternidade alimentando os recém-nascidos com o
seu leite, em exclusividade, não há lugar para a escolha. A escolha é
indizível. Não pode existir sequer na cabeça da mulher. A mulher que, sem
motivo poderoso, questione a amamentação “natural” é uma mulher suspeita. O
Manual de Amamentação de 2008, patrocinado pelo Ministério da Saúde e pela
Fundação Oriente, começa com esta máxima: “Dar de mamar é uma prioridade da sua vida porque é bom para si,
para o seu bebé e para a sua família.”
As
contra-indicações médicas da amamentação são “raras mas existem: Trata-se de mães com doenças graves, crónicas ou
debilitantes, mães infectadas pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH), mães
que precisem de tomar medicamentos que são nocivos para os bebés .”
Quem se atreve?
Quem ousa? Quem quer para o bebé senão o melhor? Quem é capaz de olhar de
frente para o pai da criança, para os próprios pais, para as visitas, para as enfermeiras
e para o medico que dá alta e escreve no livrinho: mãe decidiu não amamentar? E
onde está a resistência, um contra-movimento, uma iniciativa feminista à escala
local que apoie o direito à escolha de quem não amamenta?
Em
2010, a filósofa francesa Elisabeth Badinter publicou um livro em que
denunciava a “tirania da amamentação” e o tremendo retrocesso para a liberdade
das mulheres decorrente da armadilha da ‘mãe perfeita’: aquela que amamenta
pelo menos durante dois anos e utiliza fraldas de pano, entre outros atributos.
Quando as coisas
pareciam correr bem e as mulheres pensavam ser finalmente donas do seu corpo,
veio a ditadura do aleitamento e confiscou-lhes as mamas.
Elisabeth Badinter, O Conflito, A Mulher e a Mãe, Relógio
D` Água, 2010
Etiquetas: A bicicleta de Russel, crónicas do i
4 Comentários:
quantas vezes ouço as enfermeiras (mais do que os enfermeiros, as médicas e nunca os médicos) dizerem "consegui pôr o bebé na mama", cheias de orgulho. vou já encomendar esse livro.
boa Luís! subscrevo o tom. há várias destas milícias em actividade na Medicina/Saúde e a Medicina/Saúde não deve ser isto.
Discordo, não há ditadura, há sim imensas ideias disseminadas sobre leite fraco, pouco leite, leite que seca, que levam ao abandono da amamentação no 1ª, 2º mês o que é uma pena porque amamentar é mesmo muito bom, além de prático. Amamentei, sem dramas nem pensar sobre o assunto, 2 anos, 3 meses, 15 meses. tenho pena que a ideia que perpassa a sua crónica (a denúncia da imposição implícita e explicita da amamentação) sirva de argumento para mulheres modernas e informadas recusem a animalidade de dar a mama. Um dia, quando a indústria o permitir, recusarão a animalidade de carregar o feto, haverá incubadoras para o efeito, etc, etc.
concordo que amamentar é muito bom mas é uma escolha. amamentar é tão natural que dispensa milícias (o que não significa não precisar de algumas orientações práticas quando surgem dificuldades). O problema são as chek-lists,as auditorias, os diários informatizados com textos pré-definidos, os horários rígidos, a pró-actividade, o orgulho e a prepotência dos confiscadores das mamas.
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