Palavras na escuridão
Um livro de poesia para mil leitores. Alguns irão conhecê-lo mais
tarde, quando se vender a dois euros nos saldos de uma estação. Quem lê poesia?
Quem compra poesia? Apesar de tudo a poesia tem prestígio. O meu amigo João, talonador
numa equipa de rugby juvenil, chama poetas aos colegas da segunda linha que
estragam as jogadas com adornos desnecessários. O livro de poesia está em branco.
Este que tenho na mão tem onze páginas em branco, oito repetindo o título,
subtítulos e dedicatória, cinco com citações e o índice, dez páginas de
informações editoriais. Trinta e quatro páginas quase em branco para trinta e
oito poemas sobre cidades, menos Dublin que não deu um poema. Estes ocupam por
vezes metade das páginas. E os versos podem não preencher meia linha. Parte do
prestígio da poesia vem desta liberdade de deixar espaços vazios, como se
quisesse dizer ao leitor que também ele pode escrever, desenhar, riscar,
pintar, rasgar. Uma instalação recente representou um livro como um conjunto de
letras/ palavras derramadas a partir de um eixo central. Só na poesia as
palavras brilham, pesam, cintilam. Mas para poderem brilhar precisam do espaço
e da claridade da página, como as estrelas precisam da escuridão dos céus.
Atrás das palavras está uma voz singular (quando acontece a poesia, como é tão
raro e é o caso deste livro). E à frente das palavras está a pessoa que lê,
aquele a quem Baudelaire chamou irmão (“meu semelhante”), e depois precisou: “ hipócrita”.
Porque quem escreve tem na cabeça um leitor fantástico, feito de muita gente,
dos homens e mulheres que ama, dos que admira, dos que gostaria que o
admirassem. Partilha com estas pessoas gostos, referências e ilusões. Por elas
se julga compreendido. Quem escreve quer ser influente junto desse círculo
restrito de gente real ou imaginária a quem dedica os textos. Imagina-a
cúmplice. Por ela e para ela reconstrói a realidade.
A poesia é um estado de alma (lugar comum). Uma maneira de estar. Um
modo genial de ver, interpretar, tornar a realidade inteligível, suportável. A poesia
partilha com a paixão amorosa uma percepção exaltada: subitamente tudo muito
alto: a música. E o cheiro muito alto, muito alto o tacto. Usando o léxico de
outra situação: a poesia é uma idiotia sábia, uma perplexidade, uma sagacidade
dirigida.
João Luís Barreto Guimarães escreveu um livro de viagens em duas
partes. Uma, a que chama “Partidas” em que cada cidade se organiza em torno de
uma recordação, um pormenor. Outra em que remexe nos bolsos. Nesta, os poemas
mostram a sua oficina, outras vezes evocam a repetição, a rasura, a revisão a
que foram sujeitos. Como os atletas no ginásio imitando a natureza, repetindo
um exercício, pedalando sem progressão numa pedaleira a que faltassem as rodas.
Mas a poesia não é a oficina do autor nem o poema o seu produto. A oficina não
pode ser pressentida. Cada poema existe inteiro, enquanto é escrito, e assim se
refaz na cabeça do leitor. Vai acender os mesmos circuitos, preencher as mesmas
fendas sinápticas, ligar os mesmos neurotransmissores a idênticos receptores,
criar os mesmos mapas. Existe como um andamento, com o seu ritmo. Cada corte,
cada verso a mais, transforma-o em outra coisa.
O poema aproxima-se da realidade como a ciência. O que muda é o ponto
de vista. O poema diz o que não pode ser dito de outra forma. E fá-lo com a sua
exactidão. O poema pertence a uma zona do cérebro que nem sempre está
funcional. Embora algumas pessoas tenham o dom de uma existência poética, e por
vezes, a sua existência seja contagiante, e nos comunique um conjunto de
sentimentos que só podem ser transmitidos recorrendo à linguagem da poesia e a
conceitos contraditórios. Leveza. Mas também solenidade. Alegria de viver. Angústia,
mas reconciliação com a morte. Velocidade, vertigem, cor. Mas tempo para os
saborear. Tempo para poder parar o tempo. Para repetir. Compreender melhor.
Dizer melhor. Como se diz um poema.
você está aqui, João Luís Barreto Guimarães, Quetzal poesia,
2013
Mal-Dito, Festival de Poesia em Coimbra 21-23 de Março de 2013
Charles Baudelaire: “— Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon
frère!”, Au lecteur, Les Fleurs du Mal
Susana Nogueira, pediatra, especialista em perturbações da integração
sensorial
Etiquetas: A bicicleta de Russel, crónicas do i
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