Vivian Maier
Em 2007, John Maloof, um
homem de 27 anos do negócio imobiliário, tentava escrever um livro sobre um
bairro de Chicago, o Portage Park da sua infância, no Northwest Side. Na
tentativa de documentar fotograficamente a sua pesquisa, frequentava leilões
locais à procura de fotografias de época. Um dia licitou com êxito, por 400
dólares, uma caixa com negativos fotográficos. Os primeiros que revelou
pareceram-lhe sem interesse para o seu objectivo. Uma vez publicado o livro,
voltou aos rolos do lote. E pouco a pouco apercebeu-se de que tinha nas mãos um
tesouro.
John Maloof diz que esta
descoberta fortuita mudou a sua vida. Os negativos eram de uma tal Vivian
Maier, e eram, em grande parte, imagens de rua de Nova Iorque e Chicago dos
anos 60. Depois, Maloof tornou-se fotógrafo, perseguindo obsessivamente, com
uma Rolleiflex, os lugares, os motivos e ao mesmo tempo a história de Vivian
Maier.
Maier nasceu em 1926 em Nova
Iorque, filha de uma francesa e de um austríaco, que aos quatro anos já as
tinha abandonado. Até 1951 viveu entre Paris e Nova Iorque. Nesse ano, Lisette
Model, uma judia europeia então com 50 anos, que revolucionou a “fotografia de
rua”, ou o Estilo documentário (Walker Evans), ou a Fotografia social, começou
a ensinar na New School for Social Research. Lisette teve como aluna, outra
celebridade, Diane Arbus. Mas embora Vivian Maier se tenha aproximado de Lisette
e de Diane – pelos temas, preocupações, técnica e uso do preto e branco – não
se sabe se esta influência foi formal, nem sequer se ela frequentou as
exposições ou as aulas, ou conheceu as fotografias dessas mulheres.
Maier foi uma
mulher solitária. Conhecemo-la através do seu legado, nunca revelado por Maier
durante o tempo em que viveu, quase todo recolhido por Maloof: 100.000 a
150.000 negativos, mais de 3.000 impressões, centenas de rolos, filmes,
entrevistas áudio e dezenas de dossiers com recortes de jornais e outros
documentos. Trabalhou como ama, em famílias residentes em Nova Iorque entre
1951 e 1956, e depois em Chicago. Viajou pelo Canadá e América Latina, Médio
Oriente, Ásia e Europa, sempre acompanhada da inseparável Rolleiflex, comprada ainda durante o seu primeiro ano
como ama em Nova Iorque. Mas as fotografias que hoje a estão a celebrizar são das
ruas de Chicago, com o “L”, o metro elevado, os populosos bairros de
emigrantes, as lojas de produtos alimentares do centro, as crianças estranhas
que evocam os deficientes de Arbus, com joelhos varus e pernas magras, o homem
de face leonina, o gigante – outra inevitável associação arbusiana –, o cavalo
morto na via pública, o cavalo de Turim esvaindo-se em sangue no asfalto de
Chicago. Os subúrbios pobres de onde se avistam os arranha-céus, a atenção aos
pormenores, as sofisticadas mulheres veladas, as mãos que se entrelaçam atrás
das costas, as sombras que dividem os espaços, se projectam no chão e nas
paredes, se confundem com os objectos, dividem os corpos, as faces e a própria
face-reflexo de Vivian. As sombras que desenham o seu corpo e onde crescem três
folham secas como se fossem pulmões e coração.
Através de espelhos, reflexos e sombras, sabemos como ela era:
alta, seca, por vezes com um chapéu de abas quebradas, vestido longo ou casacos
de padrão largo ou risca vertical, sapatos masculinos, Rolleiflex 3.5 Automat
ao pescoço, com os dois grandes olhos da TLR alinhados ao alto. A face é
luminosa, por vezes sorrindo, divertida. Mas também fechada, imperscrutável. O
nariz levantado, o cabelo curto, fino, com um risco lateral, o pescoço longo.
E, da investigação de Maloof sabemos como é descrita por quem a via passar, ou
pelos três rapazes da família Gensburg, hoje homens de meia-idade, que ela
educou: “Excêntrica, forte, opiniosa, altamente intelectual e intensamente
zelosa da sua privacidade” e que se via a si própria como uma crítica
cinematográfica, falando inglês com sotaque gaulês, talvez consciente e
orgulhosa por um estatuto íntimo de outsider.
Quando estes rapazes cresceram, a ama foi trabalhar para outras casas, até
envelhecer e não ser de nenhum préstimo para as crianças de famílias abastadas.
Vagueou na cidade, sem casa, até que os três rapazes Gensburg a encontraram e custodiaram
até à sua morte, infelizmente tarde de mais para recuperar os arquivos
fotográficos que ela perdera por incumprimentos financeiros.
Maier morreu em 2009, na sequência de uma queda numa rua de
Chicago. Desde 2010 que o seu trabalho tem sido exposto em museus e galerias,
dando origem a um livro e a um filme documentário anunciado para breve. Richard
Gordon, num inteligente comentário a uma das recentes exposições de Maier, escreveu
que lhe falta um editor como John Szarkowski, o carismático director do MOMA de
Nova Iorque , foi para Garry Winogrand. Alguém que lhe descubra o lugar que tem
nesta época.
Mas é isso o que me parece menos importante. A vida de Maier foi
uma lição de orgulhosa humildade, de dignidade e arrojo. Uma mulher que dispara uma câmara nas ruas de Chicago. À altura das coxas,
do rabo, do peito dos homens e das mulheres seus semelhantes, fazendo capturas
consensuais ou sem autorização. Celebrizando o quotidiano mais insuspeito,
conferindo-lhe sentidos múltiplos, resgatando-o da banalidade, transformando
cada rosto num personagem de uma história singular. Dirigindo-se ao único
público improvável que os verdadeiros artistas conhecem.
Vivian Maier, Street Photographer, powerHouse books, 2011
Finding Vivian Maier, 2013
Etiquetas: A bicicleta de Russel, crónicas do i
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