02 junho 2013

Está tudo bem assim




O bastonário dos Advogados, António Marinho e Pinto (MP), teve um papel relevante neste último debate do Prós & Contras. A extrema convicção com que repete os seus argumentos permite fixá-los com facilidade. Se resumo bem, MP manifestou a sua firme oposição à co-adopção, actualmente em fase avançada de aprovação na Assembleia da República, e à adopção por parte de casais do mesmo sexo, baseado em três objecções principais: desafia “a Ordem natural das coisas” e é um “perigoso experimentalismo social”; retira à criança a possibilidade de “crescer harmoniosamente”;  e resulta anti-democrática porque a maioria da população é contra”.
Vou abordá-las sucintamente.
1.    A ONC
A Ordem natural das coisas, nesta crónica e a partir de agora designada por ONC, é uma crença fácil e generalizada mas que não resiste a uns minutos de reflexão. Há uma frase de Salazar que os ouvintes da Antena 1 podem ouvir todos os sábados, poucos minutos após as nove horas, no genérico de A Vida dos Sons, de Ana Aranha e Iolanda Ferreira, um dos melhores programas da rádio portuguesa e a que já uma vez me referi. Diz o ditador, com a voz rouca e o sotaque beirão que tornam esta frase inesquecível (http://www.rtp.pt/play/p657/e114718/a-vida-dos-sons):
 - Está tudo bem assim e não podia ser de outra forma.
Era a ONC, no tempo de Salazar. Salazar interpretava, a jeito, a ONC e colocava-a em marcha. Não suba o sapateiro além da chinela. Cada macaco no seu galho. A mulher quer-se pequenina como a sardinha. Albarda-se o burro à vontade do dono. Não ponhas o carro adiante dos bois. Pancada de amor não dói. Quem tem cu tem medo. Sinal na perna mulher de taberna. Mais vale sê-lo que parecê-lo. Enquanto há mulheres não se confessem homens.
A ONC já foi tanta coisa. Tomemos o Ocidente: o colonialismo foi, nos cinco séculos que antecederam o século XX, a ONC. O respeito pela hierarquia feudal já foi a ONC. A abolição da escravatura foi vista, nas plantações dos estados do sul da América do Norte, como “perigoso experimentalismo social”. As primeiras sufragistas foram ridicularizadas em nome da ONC. Galileu, Copérnico, Darwin, Freud, Einstein foram blasfemos que demoliram a ONC. Os búlgaros chacinaram os ábaros em nome da ONC. O casamento inter racial era interdito. Houve objecções sobre o estudo do corpo humano, e 500 anos depois, sobre o estudo do código genético, as vacinas e o uso de antibióticos. O principal receio era o desequilíbrio da ONC. Não apenas os revolucionários, mas inovadores e  reformistas foram invariavelmente acusados de experimentalistas sociais.
Quem era pobre morria doente, porque era a ONC. O destino sempre foi um lirismo para designar a ONC. Houve sempre ricos e pobres. As crianças das famílias abastadas tinham prioridade. Os pobres que paguem a crise. A ordem imposta pelos que tinham as armas e o ferro, foi sempre a ONC, no melhor dos mundos possíveis. Em todo o lado, da educação dos jovens à atitude com os mais velhos, as variadíssimas práticas e valores foram sempre vistas como “naturais”. Somos o resultado de uma evolução de milhões de anos, ouvimos agora dizer, e embora seja impossível ignorar a crise (passageira), há quem se sinta orgulhoso deste resultado e olhe para si como o fim da evolução: a menina de 3 anos a querer calçar os sapatos de salto alto da mamã (Christian Louboutin ), o domínio e o direito absoluto sobre a vida dos outros animais e sobre a natureza, o capitalismo financeiro especulador.
2.    A criança.
A mais prolífica e prestigiada das associações científicas pediátricas é a Academia Americana de Pediatria (AAP). A AAP e as suas congéneres de Enfermagem, Psicologia, Psiquiatria, Psicanálise, Serviço Social, Medicina de Família, entre outros, têm produzido recomendações baseadas nos estudos disponíveis sobre os aspectos psicossociais das crianças cujos pais, ou mães, são homossexuais. O mais recente, data de Abril deste ano. O resumo é longo, mas o clima de constrangedora confusão e desinformação é tão ensurdecedor que vale a pena lê-lo atentamente. Era aliás o mínimo que se exigia ao exaltado MP, antes de intervir publicamente sobre o tema:
 “Para promover a saúde e o bem estar de todas as crianças, a Associação Americana de Pediatria (AAP) apoia o acesso de todas as crianças a (1) direitos do casamento civil para os seus pais e (2) pais adoptivos disponíveis e capazes , seja qual for a sua orientação sexual.(…) A AAP apoia as famílias em toda a sua diversidade. As crianças podem nascer, ser adoptadas, ou temporariamente cuidadas por casais casados, não casados, pais ou mães solteiros, avós ou responsáveis legais e qualquer um deles ou delas pode ser, heterossexual, gay ou lésbica, ou de outra orientação.(…) A evidência científica afirma que as crianças têm desenvolvimento semelhante quer sejam educadas por pais do mesmo género ou de género diferente.”

3.    A maioria.
Os direitos humanos, tal como os direitos dos outros animais, não são referendáveis, nem podem resultar de votações como as que apuram presidentes de Juntas, deputados à Assembleia ou o Orçamento geral do Estado. Se uma qualquer maioria- tal a que agora escolheu MP como a sua Frigide Barjot- se formar para tornar letra de lei que a pena de morte deve ser restaurada, o testamento de vida ignorado, e o sexo obrigatoriamente“maravilhoso, só com o corpo nu envolvido parcialmente por lençóis de cetim branco ”, essas medidas, mesmo que apoiadas por 99,9% de eleitores serão ilegítimas. Porque, contrariamente ao que advoga quem brande a ONC conforme dá jeito, não é esta a estação terminal, o melhor dos mundos, o fim da evolução. Seres mutantes por escolha ou por definição, estamos em constante mudança, um processo mais caótico que linearmente ordenado, e é justamente assim que aprendemos a pensar. E a ser grandes (nem sempre). Essa, nem de propósito, tem sido uma lição partilhada pela ordem-caos simultaneamente natural e cultural, em pé de igualdade.
O tempo em que as maiorias declaravam os seus interesses e opções como naturais e universais banindo, criminalizando ou medicalizando as formas de existência dos Outros, acabou. As famílias são, geralmente, um sítio excelente para as crianças crescerem e se desenvolverem. As famílias- no plural, na sua diversidade, até onde vai o entendimento. E além, mais além.

Promoting the Well-Being of Children Whose Parents Are Gay or Lesbian, Policy Statement, From the American Academy of Pediatrics, Committee on Psychosocial Aspects of Child and Family Health, April 2013




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8 Comentários:

Blogger Xico disse...

Concordo consigo em quase tudo. No entanto puxa coisas só porque fazem jeito aos argumentos, tal como Marinho. O casamento interracial era interdito em alguns locais, nunca foi um interdito universal.
Em Portugal nunca foi.
Chegou a pensar-se num casamento entre o rei de Portugal e uma princesa etíope e depois com uma japonesa. Foi um erro não ter ido avante o casamento com a etíope...

domingo, junho 02, 2013  
Blogger Luís disse...

Puxo por aquilo que posso, Xico. Mas no caso acho que puxo bem. A ONC não é, necessariamente universal. Não diz respeito apenas a interditos universais. Onde uma interdição existe, como era o caso do casamento inter racial, ele é defendido como feito em nome da ONC. Obrigado pelo comentário e pela nota.

domingo, junho 02, 2013  
Blogger Maria José Vitorino disse...

Muito bom, o texto. E sempre passageira, a dita ONC. E sempre imperfeitos, todos nós. O que nos trama é mesmo a desumana convicção que ignora aquilo que a APP proclama e a vida nos ensina todos os dias, basta querer ver: A AAP apoia as famílias em toda a sua diversidade.

domingo, junho 02, 2013  
Blogger Lucy disse...

E espero que continue a puxar sempre ...

segunda-feira, junho 03, 2013  
Blogger isabel disse...

arejocLuís, gostei muito, sobretudo pela clareza do texto.


Por falar em clareza, os comentários veem-se muito mal no fundo preto.bj

terça-feira, junho 04, 2013  
Anonymous Anónimo disse...

A ONC é perder-se tempo com assuntos mínimos como este da adopção de crianças por casais do mesmo sexo, quando por detrás há toda uma sociedade por resolver. Eu sei que fica bem e parece visionário querer que tal aconteça, não sei ainda se estamos ao nível de discutir este assunto com tanto de humano em falta, tanta consciência adormecida...poderá ser este mais um tema proposto pela fábrica de opiniões para distrair a canalha?... se calhar é essa a ordem natural das coisas, estar-se distraído pensando que se está vivendo alguma coisa.

domingo, junho 09, 2013  
Blogger Luís disse...

Cavalo de Pau, aceito que este assunto seja mínimo para si. Para mim não é. E não o é para muita gente. Para as crianças que vivem com casais do mesmo sexo. Para casais do mesmo sexo que gostariam de adoptar crianças abandonadas. Para os que, como eu, pensam que a discriminação heteronormativa é uma discriminação intolerável e que nenhuma transformação social vale a pena se a esquecer ou menorizar. Se o distraí dos seus assuntos máximos, então já valeu a pena ter escrito. Despertei uma consciência adormecida . E já agora: eu não quero viver na sociedade que quer construir assim, com as prioridades que parece enunciar
.

segunda-feira, junho 10, 2013  
Anonymous Anónimo disse...

Com certeza Luís! Percebi perfeitamente que este assunto é máximo para si e garanto-lhe que não o quero colocar na tal sociedade que conseguiu idealizar através da minhas palavras.
Imaginemos agora uma dona Julia para quem o vestido azul da actriz, que participa no programa televisivo em horário nobre, se tornou uma prioridade para sua vida. Esse vestido é de uma importância fulcral para felicidade dessa senhora e está acima de qualquer outro tema. Quero com isto mostrar-lhe que as respostas dentro do campo pessoal são bastante comuns na sociedade em que vivemos mas isso não lhe garante nem a si nem a ninguém uma validade, pelo contrário, só o separam da mesma. Parece-me que o Luís vive os entre seres que constroem o seu mundo com base nas suas prioridades privadas. Seguramente e assim, não tenho muita esperança em poder encontrá-lo numa possível sociedade que algum dia venha a idealizar.
Sobre a adopção, não tenho nenhuma objecção quanto ao facto de esta ser feita por casais homosexuais ou simplesmente do mesmo sexo -são coisas distintas porque eu posso viver com um amigo e não ter nenhuma relação sentimental para além da simples amizade- mas, o que quis anteriormente expor foi a ideia de que esse tema está mais perto do entretenimento que da raiz do problema, se é que existe algum problema. Segundo -me parece a questão da adopção prende-se com o facto de haver crianças sem os respectivos pais para as educar,certo? Onde é que estão os pais? Quais são as causas que os levaram a abandonar? Porque têm que existir crianças separadas dos seus pais? Que sociedade estamos construir, onde existem seres cujos os filhos se assemelham a dejectos ou a simples necessidades fisiológicas? Tal como a dona Julia com o vestido, os pais dessas crianças também tiveram um desejo ou muitos. A adopção encontra-se entre os temas capitais da nossa sociedade porque esta resolve os casos das crianças sem pais?
O Luís defende uma sociedade na qual se vive e cuidando da miseria com a misericórdia? Curioso! Ambas possuem a mesma raiz, só que a segunda pensa ter encontrado o coração da outra nela mesma. Talvez seja por aí!

E assim, fiquemos por aqui.

Abraço

quinta-feira, junho 13, 2013  

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