11 agosto 2013

A propriedade é o roubo. A mercadoria, o veneno.






O Bloco de Esquerda (BE) afixou outdoors com os dizeres:
“Tudo o que foi roubado /Tem de ser devolvido”.

Ninguém, que eu ouvisse, comentou esta afirmação. O que não quer dizer nada. Não  me lembro de ouvir comentar outdoors, que apesar disso  continuam a ser afixados.
Talvez os outdoors sejam como os sabores difíceis e se destinem a uma apreciação íntima, à décima primeira passagem, quando uma leitura deste tipo se torna possível, um pouco antes de começarem a fazer parte da paisagem familiar. Primeiro, irritamo-nos com o facto de sermos o destinatário de uma acção de propaganda, motivada pela necessidade das forças políticas marcarem territórios e assegurarem a sua permanência. Depois, com os conteúdos não se distinguirem dos que publicitam produtos de consumo supérfluo. Mas este slogan, se não for lido como um enunciado genérico, susceptível de agradar a todos excepto aos ladrões relapsos, é verdadeiramente intrigante:

“Tudo o que foi roubado”. Repare-se no Tudo? O lucro das novidades financeiras que permitiu que o PR tivesse transformado cada euro das suas parcas economias em 2,5 euros. Os swaps dos negócios de obscuros contornos. As luvas dos grandes negócios do Estado, dos submarinos às obras públicas, das pontes às auto-estradas. O desvio de dinheiros públicos do SNS para os investimentos privados na saúde. A lista não tem fim. Nem um Estado inspirado em Saint Just conseguiria arrolar a lista de roubos, desvios, ganhos ilícitos, operações ilegais ou desenhadas para iludir a lei; identificar os ladrões; proceder ao seu julgamento e condenar os culpados. Provavelmente, neste processo, o Estado modificar-se-ia progressivamente, transformando-se numa ditadura guiada por objectivos fascinantes.
Mas, e sendo o BE um partido de ideologia e história, a formulação

“Tudo o que foi roubado”,
não pode ser inocente.

Foi o velho Proudhon quem, nos escritos de 1840, disse a célebre frase
“A propriedade é o roubo”,

querendo com isso significar que o roubo não consiste nas operações fraudulentas com que alguns deram nas vistas, mas é congenial à propriedade. E que esta, embrulhada com os direitos fundamentais trazidos pelas luzes, vinha como um veneno letal.

Uma leitura socialista, anarquista, do slogan seria forçosamente:
 “Tudo o que foi roubado”,

ou seja
“A propriedade” (que é o roubo em si, o primeiro roubo, o início de todos os roubos)

“Tem de ser devolvida”.

“A propriedade/ Tem de ser devolvida”.
É uma das leituras legítimas do outdoor do BE, o que é contraditório com a clareza que procura atingir na política. Não é crível que um partido que não tem no programa a abolição da propriedade, insinue esse objectivo num slogan eleitoral. Embora slogan eleitoral seja isso - dizer em poucas palavras - e mesmo aceitando que o outdoor se inscreve no tempo do programa mínimo, do mínimo denominador comum, ele deve ter um enunciado que seja reconhecido como pertencendo a uma determinada força política.

Analisemos agora o segundo termo:  “Tem de ser devolvido”.
Devolução, no Aurélio, quer dizer “ Restituição ao primeiro proprietário”.

A palavra escolhida foi “devolvido”. Devolver é dar de volta, restituir ao anterior proprietário. O proprietário, para Proudhon , pode ser a comunidade. Roubaram os terrenos baldios, as florestas públicas, os serviços públicos de transporte, produção e distribuição de energia, saúde. Depois da terra - e isto era inacreditável no século XIX- roubaram a água das nascentes. E como diz a palavra de ordem: têm de devolver.
Os revolucionários do século XIX diziam que tinham de expropriar, ou de confiscar. Os revolucionários expropriam. O sujeito desta frase é “os revolucionários”. Hoje, no século XXI, diz-se devolver. Os ladrões devolvem. O sujeito desta frase é “os ladrões”, que recebem uma intimação e restituem o que roubaram.

Na formulação clássica:
“A propriedade é o roubo/ Tem de ser confiscada”.

De clareza meridiana, mas fora do alcance de qualquer dos partidos actuais. Bem diferente da versão bloquista, encantadoramente ingénua, onde um cortejo de arrependidos, acordado pelas trompas dos anjos, se levanta de Cabo Verde a Belém, do Brasil aos Conselhos de Administração, dos gabinetes de advogados ao Parlamento, da Ongoing ao governo, e vem entregar o capital que fraudulentamente desviou.
Anselm Jappe, na esteira dos situacionistas e de Robert Kurz, acha que esta visão  dos capitalistas malvados ou, nas suas palavras, da aliança entre os banqueiros e os políticos corruptos é simplista. Que a crise actual e a própria natureza do capitalismo, a sua incrível capacidade destruidora, as suas contradições, resultam da economia se ter separado da sociedade e de ter colocado a sociedade ao seu serviço. E a raiz desse comportamento esquizofrénico e suicida está na essência mesmo da economia mercantil, e não pode ser alterado substancialmente pela melhor repartição, pela regulação, pelo Estado social, nem, pasme-se, pela alteração da propriedade dos meios de produção. A mercadoria, o trabalho, a formação do valor têm de ser submetidos a uma crítica lúcida se quisermos compreender e modificar “ a mercadorização” de todos os aspectos da vida.
 
Apontar o dedo aos ladrões satisfaz as turbas e a necessidade dos humanos em encontrar e punir os culpados. Mas teríamos de ir mais longe, e, continuando a desprezar os que roubaram, procurar ver além dos outdoors.


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1 Comentários:

Blogger Luis Eme disse...

sim, não bastam os "outdoors".

era bom existir uma lei que permitisse "saquear" os bens dos "ladrões" do Estado (metendo primos ao barulho se fosse preciso).

e juízes que conseguissem julgar, sem ouvir os GNR, quando cantam em câmara lenta, como na tv.

segunda-feira, agosto 12, 2013  

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