Vazio. Fora do Vazio.
“Promessa de Verão: falar-te apenas da água e da luz”
(Susana Figueiredo, algures perto de Lisboa)
A factura da luz é o documento mais aviltante que possuis. Juntando o
teu nome à bandeira estilizada da China. O símbolo nacional do ocupante em
vermelho sanguíneo, em cima mais fluído, em baixo coagulado. Serviço Universal,
império universal. O teu nome completo, ao lado do António Mexia e do Pina
Moura. E tu a pagares. Em euros. A pagar, Serviço Universal, acreditando que a
leitura do contador são aqueles nove dígitos, como um número gravado na pele do
antebraço, o valor a debitar, o período de facturação. O pulha cobra-te por
débito directo. Tu autorizaste. É tua a autorização do débito em conta, a ADC
00456758743. Foste tu quem contratou a potência: 13,8kVA. Tu, que nem sabes o
que é um VA. Tu, avesso a todos os contratos. Que detestas o Pina Moura e os
seus amigos, velhos e novos e velhos-velhos e novos-novos. Que fraco devias tu estar para te renderes.
Para quebrar. Para assinar. Dar os dados, permitir a leitura do contador, ou
pior, a estimativa, ou comunicar a leitura, para tal usando a aplicação EDP
Mobile ou o 800 500 500. Como desceste tão baixo ao ponto de lhes teres dado a ADC
aqui reproduzida. Ao Pina e ao Mexia. Ao Mexia e ao Pina. Sucessivamente. Uma
humilhação atrás da outra. Primeiro eles apoderaram-se do carvão. E tu não
disseste nada. Era só o carvão. Quinze por cento. Pré histórico. Arqueologia
industrial. Que falta faz o carvão. Fiquem com o carvão todo e as chamas e a
fuligem e a cinza. Depois a cogeração fóssil. Sabes lá o que é isso. Cogeração.
Geração do cu, dizes. Geração da derrota, da desistência, da falta de
comparência. Da cultura inútil. Da contracultura ridícula. Cogeração fóssil.
Fóssil é o teu avô. Depois as eólicas. Deixámos. São só as cumeadas, a linha do
horizonte, uma negociata mais. Deixem-nos consumirem-se uns aos outros, nas
negociatas . Interessa-me lá. Quarenta por cento. Pode lá ser 40%. Nem com os
moinhos todos alinhados, nem com um ajuntamento de Parques eólicos, nem com o
suão e o siroco, nem com o vento que sopra de levante, nem com a nortada
privatizada, nem com um zumbido que nos fizesse a todos ainda mais surdos.
Outras renováveis 10%. Pois, afinal modernizaram-se. Com os chineses? Para os
chineses, mas antes de venderem aos chineses. Assim eles já tinham a papinha
feita. Mas isso é bom, não é? Renováveis. Não gastam nada. Quando os pusermos a
andar está tudo aí, ainda. Sim um dia o povo acorda, o povo, fonte da
soberania, o povo, a comunidade eleitora , acorda estremunhado e vê-se a si
próprio , as grilhetas, as mais valias, os produtos tóxicos, as swaps, o estado
da natureza, os cargueiros a rebentar de energias renováveis e a despejar nas
praias a abundância cólica. E nesse dia puro,
feito de luz, os humanos vão poder tudo recomeçar. Hídricas 10%, mas não é mini
hídricas, pois não? Essa nós ganhámos. O que nós lutámos. Mini lutas para
impedir as mini hídricas. Descemos o Bestança e o Sabor, o Côa e sei lá que
mais. Mas mini hídricas, não. Rios de cristal, trutas a saltar, oxigénio,
vinhas nas encostas, desenhos neolíticos nas rochas. Essa ganhámos. Dez por
cento? É impossível. São então donos da energia. Da água e do vento. Do carvão
e do fóssil. Donos das fontes de energia. É tudo 100% deles. Para todo o
sempre. Até pagar a dívida. Até pagar os juros da dívida. Até pagar os juros da
dívida que continuais a contrair, que bem vos vejo a consumir mais do que
devíeis, mas menos do que prevíramos, obesos, drogados pelos produtos colaterais
da vossa comida tóxica, insolventes, incorrigíveis, culpados, devedores, como
os escravos das plantações de cana de açúcar, inchando da dívida e da
cachaça. Até depois do período do fim da
decomposição do capitalismo. Até o Pina ser fóssil e o Mexia ser só fóssil ou
combustível fóssil ou mera luz nova que vem. Até os patrões chineses, os
camaradas do comunismo monopolista de estado, serem só um exército como aquele
do Império do Meio que estão sempre a descobrir intacto na china, em terracota
ou argila ou em grafite, combustível fóssil. Mesmo depois de só haver energia
solar serão eles os donos do sol, fonte de energia, e hão-de cobrar-te o Total
Faturado incluindo a Taxa de Exploração DGEG- eh pá tu é que pagas a taxa de
exploração? DGEG? E o Imposto Especial de Consumo? São só 55 cêntimos, não
devias ser fariseu, hipócrita, fuinha, unhas-de-fome, até por 55 cêntimos
reclamas, nem 55 cêntimos estás disposto a dar especialmente, e em letras tão
pequeninas, há-de ser para um serviço público. E o IVA a 23%, os valores
indicados não incluem IVA. E o Aceso às Redes, 2,56€, e é por ser para ti, independente
do comercializador, isto é, do Mexia, dos chineses. Quer dizer que eles são
inocentes, são obrigados a facturar isto, pá. Querias acesso às redes à borla.
Queres tudo, pá. Já te viste a aceder às redes como quem acede às maçãs, ou à
praia, ou aos financiamentos. Está tudo? Tens pressa? Lê até ao fim.
Extinguiram as tarifas reguladas, percebes? Acabou-se a mama. Foste tu que
quiseste. Não estavas atento? Não estava no programa? Não te avisaram? Avisaram
tudo. Agora tens de optar por um comercializador em mercado. Estás a ver que
podes optar. Pagas o acesso aos comercializadores mas podes optar. Bem, não te
esqueças dos custos do interesse económico geral, os CIEG, estás a ver, 1,41€,
quase nada, o interesse geral tem poucos custos, embora tu é que alombes com
eles. Podes optar, caramba. Queres que te façam a leitura no vazio ou fora do
vazio. Queres ponta ou cheias?
Conferências
de Lisboa, Anselm Jappe, Antígona 2013
Etiquetas: A bicicleta de Russel, crónicas do i
2 Comentários:
que belo murro no estomago!...
Trabalho na EDP e sou sujeito a um longo trabalho simbólico em prol das opções de gestão e dos próprios gestores da empresa. Das políticas nacionais de energia e dos próprios dirigentes políticos. Um poder simbólico que se exerce por via da comunicação interna (TV interna, rádio interna, revista interna, rede social virtual interna) e que transborda para o exterior naqueles anúncios vermelho-chinês. Às vezes sinto-me indignado, outras vezes muito revoltado com a inércia interna e externa, isto é, com o facto da dominação simbólica cumprir brilhantemente o seu papel. Obrigado por este texto tão lúcido e agitado.
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