04 agosto 2013

Vazio. Fora do Vazio.



 
 
“Promessa de Verão: falar-te apenas da água e da luz”
(Susana Figueiredo, algures perto de Lisboa)
 
A factura da luz é o documento mais aviltante que possuis. Juntando o teu nome à bandeira estilizada da China. O símbolo nacional do ocupante em vermelho sanguíneo, em cima mais fluído, em baixo coagulado. Serviço Universal, império universal. O teu nome completo, ao lado do António Mexia e do Pina Moura. E tu a pagares. Em euros. A pagar, Serviço Universal, acreditando que a leitura do contador são aqueles nove dígitos, como um número gravado na pele do antebraço, o valor a debitar, o período de facturação. O pulha cobra-te por débito directo. Tu autorizaste. É tua a autorização do débito em conta, a ADC 00456758743. Foste tu quem contratou a potência: 13,8kVA. Tu, que nem sabes o que é um VA. Tu, avesso a todos os contratos. Que detestas o Pina Moura e os seus amigos, velhos e novos e velhos-velhos e novos-novos.  Que fraco devias tu estar para te renderes. Para quebrar. Para assinar. Dar os dados, permitir a leitura do contador, ou pior, a estimativa, ou comunicar a leitura, para tal usando a aplicação EDP Mobile ou o 800 500 500. Como desceste tão baixo ao ponto de lhes teres dado a ADC aqui reproduzida. Ao Pina e ao Mexia. Ao Mexia e ao Pina. Sucessivamente. Uma humilhação atrás da outra. Primeiro eles apoderaram-se do carvão. E tu não disseste nada. Era só o carvão. Quinze por cento. Pré histórico. Arqueologia industrial. Que falta faz o carvão. Fiquem com o carvão todo e as chamas e a fuligem e a cinza. Depois a cogeração fóssil. Sabes lá o que é isso. Cogeração. Geração do cu, dizes. Geração da derrota, da desistência, da falta de comparência. Da cultura inútil. Da contracultura ridícula. Cogeração fóssil. Fóssil é o teu avô. Depois as eólicas. Deixámos. São só as cumeadas, a linha do horizonte, uma negociata mais. Deixem-nos consumirem-se uns aos outros, nas negociatas . Interessa-me lá. Quarenta por cento. Pode lá ser 40%. Nem com os moinhos todos alinhados, nem com um ajuntamento de Parques eólicos, nem com o suão e o siroco, nem com o vento que sopra de levante, nem com a nortada privatizada, nem com um zumbido que nos fizesse a todos ainda mais surdos. Outras renováveis 10%. Pois, afinal modernizaram-se. Com os chineses? Para os chineses, mas antes de venderem aos chineses. Assim eles já tinham a papinha feita. Mas isso é bom, não é? Renováveis. Não gastam nada. Quando os pusermos a andar está tudo aí, ainda. Sim um dia o povo acorda, o povo, fonte da soberania, o povo, a comunidade eleitora , acorda estremunhado e vê-se a si próprio , as grilhetas, as mais valias, os produtos tóxicos, as swaps, o estado da natureza, os cargueiros a rebentar de energias renováveis e a despejar nas praias a abundância cólica.  E nesse dia puro, feito de luz, os humanos vão poder tudo recomeçar. Hídricas 10%, mas não é mini hídricas, pois não? Essa nós ganhámos. O que nós lutámos. Mini lutas para impedir as mini hídricas. Descemos o Bestança e o Sabor, o Côa e sei lá que mais. Mas mini hídricas, não. Rios de cristal, trutas a saltar, oxigénio, vinhas nas encostas, desenhos neolíticos nas rochas. Essa ganhámos. Dez por cento? É impossível. São então donos da energia. Da água e do vento. Do carvão e do fóssil. Donos das fontes de energia. É tudo 100% deles. Para todo o sempre. Até pagar a dívida. Até pagar os juros da dívida. Até pagar os juros da dívida que continuais a contrair, que bem vos vejo a consumir mais do que devíeis, mas menos do que prevíramos, obesos, drogados pelos produtos colaterais da vossa comida tóxica, insolventes, incorrigíveis, culpados, devedores, como os escravos das plantações de cana de açúcar, inchando da dívida e da cachaça.  Até depois do período do fim da decomposição do capitalismo. Até o Pina ser fóssil e o Mexia ser só fóssil ou combustível fóssil ou mera luz nova que vem. Até os patrões chineses, os camaradas do comunismo monopolista de estado, serem só um exército como aquele do Império do Meio que estão sempre a descobrir intacto na china, em terracota ou argila ou em grafite, combustível fóssil. Mesmo depois de só haver energia solar serão eles os donos do sol, fonte de energia, e hão-de cobrar-te o Total Faturado incluindo a Taxa de Exploração DGEG- eh pá tu é que pagas a taxa de exploração? DGEG? E o Imposto Especial de Consumo? São só 55 cêntimos, não devias ser fariseu, hipócrita, fuinha, unhas-de-fome, até por 55 cêntimos reclamas, nem 55 cêntimos estás disposto a dar especialmente, e em letras tão pequeninas, há-de ser para um serviço público. E o IVA a 23%, os valores indicados não incluem IVA. E o Aceso às Redes, 2,56€, e é por ser para ti, independente do comercializador, isto é, do Mexia, dos chineses. Quer dizer que eles são inocentes, são obrigados a facturar isto, pá. Querias acesso às redes à borla. Queres tudo, pá. Já te viste a aceder às redes como quem acede às maçãs, ou à praia, ou aos financiamentos. Está tudo? Tens pressa? Lê até ao fim. Extinguiram as tarifas reguladas, percebes? Acabou-se a mama. Foste tu que quiseste. Não estavas atento? Não estava no programa? Não te avisaram? Avisaram tudo. Agora tens de optar por um comercializador em mercado. Estás a ver que podes optar. Pagas o acesso aos comercializadores mas podes optar. Bem, não te esqueças dos custos do interesse económico geral, os CIEG, estás a ver, 1,41€, quase nada, o interesse geral tem poucos custos, embora tu é que alombes com eles. Podes optar, caramba. Queres que te façam a leitura no vazio ou fora do vazio. Queres ponta ou cheias?

Conferências de Lisboa, Anselm Jappe, Antígona 2013
 


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2 Comentários:

Blogger sombra e luz disse...

que belo murro no estomago!...

quarta-feira, agosto 07, 2013  
Blogger Unknown disse...

Trabalho na EDP e sou sujeito a um longo trabalho simbólico em prol das opções de gestão e dos próprios gestores da empresa. Das políticas nacionais de energia e dos próprios dirigentes políticos. Um poder simbólico que se exerce por via da comunicação interna (TV interna, rádio interna, revista interna, rede social virtual interna) e que transborda para o exterior naqueles anúncios vermelho-chinês. Às vezes sinto-me indignado, outras vezes muito revoltado com a inércia interna e externa, isto é, com o facto da dominação simbólica cumprir brilhantemente o seu papel. Obrigado por este texto tão lúcido e agitado.

segunda-feira, agosto 12, 2013  

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