A coruja das torres vai voar
No
princípio do verão alugámos um quarto numa daquelas Escolas primárias do
Centenário que a míngua demográfica esvaziou, as Câmaras venderam e, neste
caso, a iniciativa de um jovem casal de arquitectos reconverteu em um minúsculo
hotel rural. A Escola conserva a traça e os símbolos antigo-regime e está agora
dividida em cinco quartos e uma sala comum para refeições. A Maria e o Duarte recolhem
a salva, o rosmaninho e o poejo, preparam todos os dias um pequeno-almoço
requintado, sentam-se num degrau a ler Conrad numa edição amarelecida da
Penguin, que de vez em quando o vento
desfolha e arrasta até aos hóspedes.
Isso
ainda não podíamos saber. Era o nosso primeiro dia no local e regressávamos de
jantar, perto da meia-noite. A lua de Agosto, quase cheia, subia,
escandalosamente grande, no céu de Portugal. Tínhamos as janelas abertas e o
motor do carro soprava, silencioso. Logo após o portão imponente da propriedade
que leva o nome do lugar, quando, depois de uma curva, a subida se inicia, vi
um pequeno vulto na estrada e travei. Poucos metros à frente, imóvel, brilhando
na noite, estava a coruja.
Pelo
porte, estatura e plumagem, devia ser uma coruja das torres. Tinha há anos surpreendido
duas semelhantes, num celeiro abandonado de uma aldeia das Beiras, onde vi pela
primeira vez o insólito tapete de regurgitações preparado para a postura dos
ovos e me deslumbrei com a envergadura das asas, a cor da penugem, o disco cordiforme, o estranho afastamento dos
olhos que são como duas contas sem órbitas, o voo sem ruído, tornado possível
pela densidade das rémiges.
Apaguei
as luzes do carro, à espera. Pensei que ia ver mais uma vez aquele voo, o
momento em que ela abre as asas e se transfigura, de uma pequena figura de 35 centímetros
numa ave de inesperado porte e envergadura. Mas continuou imóvel, fitando-me.
Cegou
depois do encadeamento -foi o que pensei. E devagar, com medo que o ruído
quebrasse aquele encanto, abri a porta do carro e saí para a noite, sem deixar
de a encarar. Algum tempo depois, a luz da lua quase cheia no céu de Portugal
tornou-se tão intensa que ela voltou a destacar-se na noite: a brancura do
disco facial prolongando-se pelo corpo, o hipertelorismo, a penugem mosqueada
debaixo das asas recolhidas.
A
coruja e eu, separados por dez metros, olhando-nos em silêncio.
Dois
seres, apenas.
Nunca
me senti superior a uma coruja. Nunca coloquei, entre mim e outro animal, a
estúpida questão da superioridade. Uma das razões porque nunca acreditei no
catecismo, foi porque não me parecia possível um acto de criação que tivesse o
ser humano como último destinatário, ou especial beneficiário. As árvores “que
nos dão a sombra e a madeira, os frutos
e a seiva”, os animais “que nos dão o couro e o leite, os chifres e o
estrume”… Sempre me pareceu uma cantilena fascista como a de um país multi-continental e multi-racial
espalhado pelo mundo e tendo a maior altitude no Monte Ramelau. Uma narrativa
pueril, ingénua e em que, mesmo naquele tempo, já ninguém, que eu respeitasse,
acreditava.
Eu
e a coruja, a coruja e eu. Nenhuma transcendência. O sentido oculto deste nosso
encontro não é nenhum. O que dá sentido à vida da coruja é exactamente o que dá
sentido à minha vida. Basta-nos, a ambos, existir. Mas existir assim.
Capturando e engolindo 25 ratos e musaranhos numa noite ou provando vinho
regional alentejano, consoante o caso. Regressando à torre da igreja, à
chaminé, à trave do celeiro ou ao quarto tão simples e apesar de tudo cheio de
dignidade da antiga Escola Primária onde a Luísa e eu nos vamos deitar.
A
coruja e eu. Apesar de tudo tenho o carro, embora o motor esteja desligado, e
deva seis prestações e o valor residual.
Tenho os faróis. Apagados. As roupas leves de verão. Estou calçado. O vinho
regional alentejano, 14,5 º, ajuda-me a sentir membro desta grande irmandade da
existência. E tenho livros. Que me ensinaram a conhecer-te, coruja das torres, Tyto alba,
da Ordem dos Strigiformes e da Família Tytonidae.
Agradeço intimamente aos investigadores, aos biólogos e aos que perscrutam as
aves no céu de Portugal, apenas para as conhecer, classificar, proteger, evitar
o extermínio provocada pelo desconhecimento e pela ignorância, o urbanismo e os
pesticidas. Mas agora queria estar aqui despido desse conhecimento, que em
breve de nada servirá. Nenhuma superioridade, camarada coruja. Nenhuma vontade
de domínio, aniquilação ou posse. Na minha infância de madeira e pedras vi bem
poucos animais, além dos da minha espécie, acantonados na Avenida onde
vivíamos. Tive sorte em nunca ter tido fome e ter evitado os grupos
predatórios. De nunca ter vivido em estado de necessidade. Mas sempre, como
aqui, me senti teu igual e dos seres que lêem Conrad nos degraus de um hotel
rural.
Vai voar, um de nós vai voar.
Abrir as asas emplumadas, as asas claras salpicadas de pontos negros, cuja
envergadura atinge um metro, e voar.
Casa de Campo de Cabeça da Cabra, hotel rural, 7520-128 Porto Covo
[ Luís Januário, crónica publicada no Jornal i de 31 de Agosto de 2013 ]
Etiquetas: A bicicleta de Russel, crónicas do i
1 Comentários:
Faz bem ler textos destes.
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