I shall never be alone
No dia em que percebi que N. não se emocionou com a descrição das “ múltiplas vivências” de Jacques Austerlitz na Liverpool Street Station, que era, diz Sebald, um dos lugares mais lúgubres de Londres antes das remodelações do final dos anos oitenta, N. deixou de contar para mim. O pior era que estava a milhares de quilómetros de casa e a quinze dias do final de férias. Encontrava-me em férias com N. e D. com quem, surpreendentemente, partilhava alguns poucos recursos e um enorme equívoco.
Ainda tenho a folha de anotações dobrada em quatro onde escrevi a frase: “Whatever happens, I shall never be alone. I shall always have an affair, a railway fare, or a revolution.” Já me esqueci de quase tudo: a circunstância que me levou a escrever aquela frase, onde a li ou ouvi. É de Stephen Spender, sei. Não a considero uma grande frase e não me lembro de alguma vez a ter citado ou de ter havido uma ocasião sequer em que a pudesse ter referido com propriedade. O papel pertence à recordação que tenho dessas férias, de N. e de D., e da discordância fundamental, que não foi apenas relativa às desventuras de Austerlitz, mas começou com elas.
Parece-me poder ouvir agora N., se por acaso descobrisse o papel amarrotado (N. não conhece a primeira versão da frase de Spender e não serei eu a revelá-la):
- An affair. Que coisa ridícula. Própria da sub-cultura pueril, da sub-gente. Sub, sub, sub. N., titular de uma invejável carteira de casos, reais e imaginários, estabelecera uma divisória entre o seu passado aventuroso e o respeitável presente. Os casos, agora, são sempre os casos dos outros. Diz a palavra “casos”, sempre no plural, com os lábios esticados, como se o z que se arrasta pudesse queimar.
A railway fare. Sempre N.: - Outra vez InterRail? Outra vez, essa desprezível lamechice de estações e partidas, perdidos e achados. Liverpool Street Station, a Centraal Station de Antuérpia, lagrimita fácil, tudo tão superficial, efémero, lower middle-class.
E finalmente, pior do que tudo, a revolução. N. persignava-se como se enfrentasse ao mesmo tempo as hordas da comuna, os marinheiros de Cronstadt amotinados ou os spartakistas a cheirar a suor.
Escondi o papel de Spender no fundo de umas calças que não voltei a vestir e onde agora o encontro, um papel sem data que escapou à revista habitual, no qual a letra miudinha – como se quisesse desaparecer, não ser lida – pede desculpa por existir.
À noite jantávamos numa cantina de turistas com um buffet gigantesco. Eu escolhia um prato, sentava-me e esperava. N. trazia entrada, sopa, um prato principal e sobremesa. Quando chegava, com D. como sombra , já eu tinha perdido a fome. Censurava as minhas escolhas. Não vira eu o curry? Não reparara no chutney? Não vira a infinidade de especiarias que não vira porque não conhecia e, como é sabido, só se identifica o que se conhece. Por onde é que andara até então? Finalmente tinha alguém que me ensinasse o que era chutney e onde estava o curry e o pudding e o custard. Esse alguém era N. que nessas férias me ia ensinar, como já ensinara D. .
D. sentava-se ao lado de N. e de frente para mim. Nunca me dirigia a palavra, embora falasse sem cessar de trivialidades. Os telemóveis da Orange, os iogurtes get one buy one free no Sainbury’s, os sais de banho da Lush. Se eu interpelasse D., o melhor que obtinha era um grunhido, um esgar, uma interjeição, uma palavra inaudível. Nunca me olhou nos olhos, frontalmente. Ou se por acaso o fez, foi em breves momentos de guarda baixa, retomando rapidamente o modo habitual, de silêncio combativo e nauseado.
Nessas refeições intermináveis, N. dividia-se entre a necessidade de me tratar mal, sabendo que assim agradava a D., e uma prudente neutralidade, que não exagerasse a tensão.
I shall never be alone. Oh, como eu queria estar sozinho. Entretinha-me a catalogar mentalmente os vizinhos de mesa: o presidente da Câmara da Matosinhos, esposa e afilhada, a rapariga da bengala, o garagista e a família – mulher e filho já no negócio –, a rapariga que ataca em Liverpool Street, as miúdas anoréticas em mesas paralelas às das miúdas cheiinhas que chamam anoréticas às de peso mediano. Os rapazes tatuados, cravados de piercings, nem todos visíveis daqui. A senhora que lê no kindle.
- Deve ler Sebald - ironiza D. E depois levanta-se da mesa e segue N. que vai procurar um reforço de sobremesa afundada de custard. Amarelo.
Saio para o cais e durante algum tempo vagueio em torno da exótica bandeira. Penso em Jacques Austerlitz e nessa “sensação de estar isolado e de sempre ter estado, esse aturdimento, essa sensação nele latente e que há muito procurava declarar-se.” Sei que estou a demorar e que serei admoestado à chegada. Deixo-me então ficar, junto ao pavilhão, à espera de ser descoberto e punido. N. dirá então que me comporto como uma criança, enquanto atrás se perfila, em altivo silêncio, o regozijo de D.
Foi assim, mas pior, como sempre.
Etiquetas: A bicicleta de Russel, crónicas do i
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