26 outubro 2013

Os pobres de Paulo Portas




"Paulo Portas diz que os mais pobres não se manifestaram no protesto convocado este sábado pela CGTP e que juntou milhares de pessoas.” (dos jornais, 20 de outubro de 2013)

O livro de Ryiszard Kapuscinski “Mais um Dia de Vida: Angola 1975” é interessante a vários níveis, entre os quais retenho dois: por nos trazer um período fundamental da história fundacional do actual estado angolano e pelo retrato inesquecível de Luanda durante o êxodo dos Portugueses. Uma cidade composta por muitas cidades: a cidade de madeira que cresce nas ruas e se desloca para o porto, composta por uma multidão de caixotes que se amontoa e onde tudo se acumula; a cidade de pedra, vazia, espectral, que é a que resta quando a Luanda colonial se esvazia nos barcos para encerrar o ciclo marítimo dos lusíadas; a cidade efémera e vergonhosa que os brancos em debandada ergueram nas vizinhanças do aeroporto. A descrição de Kapuscinski é fantástica, sonâmbula. O autor, um polaco surpreendente, foi um dos poucos jornalistas estrangeiros que continuou em Luanda e a partir daí se deslocou para as frentes de combate. Podemos imaginá-lo, um homem grande da Europa central, indiferente ao perigo e ao cheiro miasmático da morte, numa aposta sem sentido consigo mesmo, cada vez mais solitário na grande cidade.
Há um momento em que ruma a Benguela, cruza barreiras atravessadas nas estradas e encontra a cidade dos brancos. “Zonas residenciais vazias, um luxo indescritível, um excesso estonteante de espaço para chegar, cem metros depois, ao deserto onde crescem os povoados africanos, adobe e bosta, contraplacado e chapa, sobrelotados.” Apesar do chocante contraste, os negros não ocuparam as casas abandonadas e sem guarda. O jornalista interroga-se sobre os motivos desta atitude e adianta a sua explicação: tal ideia não lhes passou pela cabeça. Os muito pobres, diz ele, “não procuraram retirar proveito pessoal, material, da nova situação de forças criada pela descolonização, porque para eles era inconcebível outra forma de vida diferente, aceitando o seu casebre e a sua tijela de mandioca como o único mundo que alguma vez hão-de conhecer ou almejar.”
No filme que relata a ocupação da Torre Bela, a herdade dos Duques de Lafões que em 1975 foi ocupada por camponeses ribatejanos, há imagens que persistem. Entrando num salão, mulheres rurais abrem os aparadores de vinhático e vêem, com um misto de espanto e admiração, as toalhas de linho imaculadas, dobradas, escrupulosamente passadas a ferro. E não lhes tocam, não as põem em utilização, não as retiram das gavetas. Às Segundas ao Sol é um inesquecível filme de 2002 de Fernando Léon de Aranoa, em que Javier Bardem é Santa, um operário despedido quando a crise atinge os estaleiros das Astúrias. Uma noite, Santa e dois amigos sem trabalho vagueiam pela cidade e introduzem-se, furtivamente, nos jardins de uma casa abastada onde a namorada de Santa é babysitter. Com os patrões fora e as crianças a dormir, ela abre-lhes as portas da cozinha e ciceroneia-os no interior. No quarto de vestir, exibe o interior de um armário. Santa olha, estupefacto, os vários pares de sapatos de mulher alinhados e, depois de uma luz se lhe acender nos olhos, exclama, sem qualquer ironia: - Ah, o marido tem uma sapataria, não é?
Nos vários círculos da exclusão, os pobres de Paulo Portas ocupam, como os negros dos bairros de Benguela, os lugares mais profundos, secretamente irrevogáveis. Pertencem, assim pensava Kapuscinski, a um mundo que não muda, que Salazar interpretou superiormente e tentou confundir com a alma lusa. Este miserável perfeito só existe no subconsciente de Paulo Portas e nesse lugar é, curiosamente, o único elemento parado, voluntariamente desprovido, feliz com a sua miséria. Está num estádio inferior ao da resignação. A resignação pressupõe um incómodo, o desconforto de se imaginar uma outra realidade e, mesmo como possibilidade remota, a sua inclusão nela. A resignação tem em si, paradoxalmente e de forma ardilosa, a proto ambição de mudança, porque é potencialmente provisória, precária, instável. Essa ousadia está completamente ausente da pobreza de Portas.
Os pobres de Portas são os condenados da terra antes da Internacional, as vítimas da fome perpetuamente agradecidas à amabilidade enlatada da Dra. Isabel Jonet. Os pobres de Portas são o povoléu agrilhoado e agradecido, a arraia-miúda confundida com “a convergência do sistema de pensões”, a gentalha aturdida com “o regime geral”, o escorralho adormecido com “a condição de recurso”, a relé que “não aparece na televisão”. Os camponeses da Torre Bela são insurrectos interruptus. Hesitaram no momento da sua libertação. As suas mãos e a comida que decerto prepararam mereciam a brancura das toalhas de linho, das quais desistiram. Santa e os camaradas asturianos foram derrotados pela deslocalização, a flexibilização e a crise das economias europeias, mas entraram sem culpa no quarto dos patrões. Mas nos círculos mais exteriores – e esta verdade fere a testa dos opressores como uma espada de fogo – há seres cada vez mais livres, alguns e algumas dos quais são tão livres como Paulo Portas.

Mais um Dia de Vida: Angola 1975, Ryszard Kapuscinski, Tinta da China, 2013 
Às Segundas ao Sol, Fernando Léon de Aranoa, 2002 
Torre Bela, Thomas Harlan, 1977.

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2 Comentários:

Blogger paula disse...

Bom texto.

domingo, outubro 27, 2013  
Blogger luis reis disse...

Maravilhoso.

segunda-feira, novembro 25, 2013  

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