Uma certa palavra
Uma vez escrevi que era mais livre do que Pacheco Pereira porque podia escrever uma certa palavra. As bravatas pagam-se, mordendo a língua. Não podemos escrever sobre o que é verdadeiramente importante. Já tive medo do escuro. Do escuro e dos barulhos que vinham da escuridão, na casa da Avenida Sá da Bandeira. Hoje sei que, durante as brincadeiras, as crianças encenam estratégias anti-fóbicas através das quais, controlando parcialmente algum risco, ou com um risco muito mais imaginado que real, enfrentam os temíveis monstros da infância. Mas não defrontam verdadeiramente o inimigo, apenas uma das suas mais benignas aparências. O combate anti-fóbico da infância lembra-me sempre as campanhas da Direcção Geral de Saúde (DGS) contra a gripe, o sarampo ou a raiva. A DGS escolhe um perigo menor, ou improvável, e atira-se a ele como ao Armagedão. No fim de tudo, meses depois, desperdiçámos energias e saberes contra os moinhos, como um cavaleiro trágico, mas sentimos o sopro que reconforta os vencedores. Hoje posso falar do medo do escuro na casa da Avenida, mas não posso ir até ao fundo, à zona autotélica onde de facto falta a luz. Tal como representamos o que nos amedronta de uma forma aceitável, aproximamo-nos do nosso interdito através do jogo simbólico ou abordando temas colaterais.
Esta noite, por exemplo. Escrevo no restaurante Sereia do Mondego enquanto espero pela Margarida, uma colega de trabalho, bebo um copo de vinho e leio a ementa. O vinho é um Galhofa 2009, o mesmo a que já fiz referência quando disse que o senhor Júlio enuncia o dilema entre os dois vinhos da casa, como o Hamlet no início do solilóquio. - Cadão ou Galhofa? - pergunta ele, uma vez mais. Mas hoje, confere-lhe uma solenidade um pouco fora do habitual e, depois de enumerar os dois termos da decisão, Cadão como Ser e Galhofa como Não-Ser, acrescentou: - Fraga da Galhofa. Fraga, articulado em voz baixa, como se estivesse a recordar o nome próprio esquecido de uma celebridade, ou um título nobiliárquico na República. Distinção bem representada no rótulo que aponta a proveniência do néctar: Mêda, o ano 2009, o produtor e a designação, Galhofa, em grandes caracteres, com a palavra Fraga em corpo minúsculo, quase secreto. Escolho então um prato que não está na ementa. Habitualmente o senhor Júlio diz que não há, propondo um substituto digno e regular. Mas hoje dirigiu-se para a cozinha, em sobressalto, e perguntou se havia o que eu sugerira, como se fosse uma urgência e o produto ameaçasse esgotar-se. Esta conjunção de factos – esperar pela Margarida, beber Fraga da Galhofa, ir comer um prato raro, uma iguaria que não figura na ementa – esse conjunto de coisas simples, tranquilamente possíveis e à beira de se materializarem, deu-me uma inesperada felicidade. E esbateu o sentimento com que iniciei este texto, que acompanhou a compreensão de que falávamos e escrevíamos não do que é verdadeiramente importante, mas de metáforas, de Lia em vez de Raquel (embora eu prefira a Lia), das Caraíbas em vez da Índia.
O filme A Late Quartet, aqui exibido com o título de Um Quarteto Único, é um filme médio sobre o momento em que um conjunto de pessoas se desmorona e cada um fica entregue a si próprio, aos seus ressentimentos e insuficiências. O que torna o filme sublime é o seu outro sujeito: a Op 131, nº 14 em C menor de Beethoven e o início de Burnt Norton, de T.S. Eliot, que o actor Christopher Walken, agora com 70 anos, declama em tom anti épico. O filme desenrola-se assim em dois planos: o superficial, com as vidas dos músicos a serem jogadas no tabuleiro das ocorrências quotidianas; e o profundo, no qual soam os acordes da Op 131 e os versos de Eliot, garantindo que todo o tempo é sempre o mesmo tempo irredimível.
Não podemos falar da morte. Mesmo quando, insensivelmente, mas de forma tão rápida, a morte mudou, no Ocidente, da negação à sua banalização, mediatizada, reificada, alternizada. Não podemos falar de quem somos, quando os corticóides nos deformam e nos antecipam a velhice, operando uma mutação final, resolutiva, da qual resulta um ser ridículo, decimal, onde nada relembra o fulgor que talvez tivéssemos tido, um dia, uma hora em que certamente brilhámos para alguém e para esse fomos verdadeiramente significativos, como para o nosso cão ao chegar a casa. E agora, o nosso eu caricatural, pós - quimio, pós-rádio, pós-corticóides, pré-paliativo, destrói toda a dignidade que o passado possa ter tido, refaz para uma última e desapiedada leitura o ser único, interessante ou ambíguo, inquieto ou ordenado que já fomos, seguramente fomos, mas assim não seremos lembrados, porque no julgamento dos outros esta carapaça de água e gordura, este mutante em exposição, resume e esclarece o passado, mancha sem remissão um curriculum vitae laboriosamente construído. Chegou a Margarida, e o seu cabelo cheira a Pantene, brilhante e leve, o champô, Florian Pantene, sedoso e compassivo.
Um Quarteto Único, de Yaron Zilberman, 2013 T.S. Eliot, Burnt Norton em Quatro Quartetos, Relógio D’Água, 2004
Etiquetas: A bicicleta de Russel, Crónica do i
1 Comentários:
"esperar pela Margarida, beber Fraga da Galhofa, ir comer um prato raro, uma iguaria que não figura na ementa" e a Academia a ganhar em Braga pela 1ª vez em 46 anos. Não há felicidade mas enquanto houver "momentos de felicidade" o que importa uma certa palavra?
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial