Um vazio em redor
Fotografia: Luís Januário
Em 1933, ano da chegada de Hitler ao poder, um homem que
seria considerado como um dos maiores filósofos do século XX é eleito reitor da
Universidade de Friburgo e, na cerimónia de tomada de posse, profere uma
importante conferência sobre o papel da Universidade:
“Querer a essência da Universidade alemã é querer a ciência,
no sentido de querer a missão histórica do povo alemão enquanto povo que se
sabe ele-mesmo no seu Estado. Ciência e destino alemães devem, nesta vontade da
essência, alcançar ao mesmo tempo o poder.” Sacrifico a estética e traduzo
literalmente, sem coragem para tocar num hífen que seja, consciente de que tudo
nesta formulação de um texto programático faz sentido. Querer, missão,
essência, vontade da essência, povo ele-mesmo, no seu, alcançar o poder. É um
enunciado que remete para as lições académicas com que Martin Heidegger, o professor
de Filosofia, encantara as suas audiências. O filósofo alemão, nesse ano apenas
um entre muitos, mas em breve, nas suas fulminantes palavras, um dos dois ou
três filósofos de que a Alemanha realmente precisaria, mistura os conceitos de
O Ser e o Tempo – que, num outro contexto, viriam a estar na génese do
Existencialismo – com o programa nacional-socialista.
Imediatamente a seguir, de forma vertiginosa, o reitor de
Friburgo aplicou decretos do Partido nazi e inovou, com alguns da sua
lavra. Antónia Grunenberg,
directora de um centro de estudos da universidade de Oldenbourg e autora de um
pequeno livro que a editora Payot publicou recentemente em edição de bolso,
enumera algumas destas inovações: interdição das associações de estudantes
judaicos; introdução da certidão de pureza ariana; auto da fé dos livros da
cultura degenerada, como se fizera em Berlim; formação ideológica; treino
militar; saneamento dos elementos hostis à segurança do Estado; introdução da
saudação alemã.
Heidegger tinha como amigo e “camarada de combate” outro
filósofo de referência, Karl Jaspers, caído em desgraça pelo facto de ser
casado com uma judia.
Em Maio de 1933, Heidegger fez a última visita a Jaspers,
aproveitando uma conferência que proferiu em Heidelberg e a que Jaspers assistiu,
como o próprio escreveu, “sentado na primeira fila, as pernas estendidas, as
mãos nos bolsos e sentindo indiferença por todas as suas palavras” exaltadas.
Depois da conferência, Heidegger e Jaspers sentaram-se para uma conversa cheia
de equívocos. Jaspers interrogava
a medo, sem sinceridade, e Heidegger não respondia. “Como é possível que um
homem tão inculto como Hitler governe a Alemanha”? E Heidegger: “A educação não
tem importância. Olhem para as suas mãos maravilhosas”.
Na casa onde eu cresci havia um armário dentro do qual uma
estatueta de 25 cms de faiança das Caldas, da Fábrica de Bordalo Pinheiro,
representava o Fuhrer de braços abertos proferindo um discurso presumivelmente
tonitruante. Ao lado, tinha sido colocado um poema atribuído a Bertolt Brecht
que dizia (cito de cor): “Isto que aí está/ esteve quase a dominar o mundo.
/Mas os povos derrotaram-no. No entanto/ gostaria de não ouvir o vosso
triunfante canto/ O ventre de onde isto saiu /ainda é fecundo.” As maravilhosas mãos de Hitler estavam
fechadas e, embora não tivesse passado tanto tempo assim, a Segunda Guerra Mundial era já um
acontecimento da História. O que eu não era capaz de perceber, na época, era a
existência de um ventre muito mais fecundo. O que gerava intelectuais desejosos
de se deixarem fascinar por homens bestiais, de discurso sincopado, visões
simples e dicotómicas do mundo, peremptórios no seu irredutível maniqueísmo.
Gente culta e exigente,
conhecedora das grandes correntes filosóficas, que pouco tempo antes
debatia a questão do Ser e do Tempo, e da consciência do seu lugar no mundo, e
renovava tópicos como a angústia, a liberdade, a culpa e o destino, acreditando
estar a recomeçar a Filosofia. Gente desta deixa-se encantar pelas mãos
maravilhosas de um tosco defensor da superioridade racial de um grupo étnico
centro-europeu e da necessidade de esmagamento da “conspiração judaica
internacional”.
Nesse ano de 1933 milhares de jovens intelectuais alemães
que pouco tempo antes se sentavam no mesmo banco dos seus colegas judeus e, nos
cafés, debatiam a revolução mundial e o problema do bem e do mal, calaram-se ou
começaram a escrever ou a declamar frases ambíguas que justificavam a prisão, o
afastamento, o despedimento, o exílio, ou a eliminação física daqueles que eram
seus amigos, colegas e/ou interlocutores regulares até à semana anterior.
Hannah Arendt, pois que é dela que esta crónica no fundo trata, dizia na altura
que o problema principal não era “o que faziam os inimigos mas o que faziam os amigos”. E concluía lembrando
que se assistia a uma vaga de uniformização que não resultava do terror e
deixava, em torno de pessoas como ela, um lugar vazio.
Estes filósofos desapareceram do campo da filosofia, sugados
pelo ventre fecundo da traição dos espíritos intelectuais. Ajudaram os nazis a
executar um projecto sinistro. Tiveram o treino militar que almejavam. Foram
mobilizados. Ocuparam a Europa, que, à excepção da Inglaterra, se rendeu com
surpreendente facilidade. Caminharam nas frentes geladas da Rússia. Viram passar
os comboios carregados de gente para os campos de concentração, onde se
amontoavam, como gado, colegas da universidade. Cheiraram a carne queimada dos
crematórios. Morreram. Ou sobreviveram e, depois de alguns anos de uma
depuração benevolente, ajudaram a reconstruir o Mundo que somos, num silêncio
que durou 50 anos. Eles estão no meio de nós.
Deixaram uma grande lição esquecida, que as palavras de
Arendt relembram a quem as quiser recordar: nos tempos de transformação rápida
do mundo, os amigos desaparecem, sugados pelo brilho do vencedor e fica um
grande vazio à volta dos que resistem, ou foram marcados com a estrela
infamante.
Hannah
Arendt et Martin Heidegger, Antónia Grunenberg, Petite Bibliothèque Payot, 2012
Hannah
Arendt, filme de Margareth von Trotta, 2012
[ Crónica do Luís Januário publicada no LIV Jornal i a 9 Novembro 2013 ]
Etiquetas: A bicicleta de Russel, crónicas do i
2 Comentários:
Esta citação do Brecht: "O ventre de onde isto saiu ainda é fecundo", infelizmente também se aplica ao nosso Portugal.
Medo!
É muito sugestivo que neste início de século nos pareça cada vez mais oportuno relembrar tudo isto. Fecundo é com certeza, mas já estará algo a germinar?
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