11 novembro 2013

Um vazio em redor


Fotografia: Luís Januário


Em 1933, ano da chegada de Hitler ao poder, um homem que seria considerado como um dos maiores filósofos do século XX é eleito reitor da Universidade de Friburgo e, na cerimónia de tomada de posse, profere uma importante conferência sobre o papel da Universidade:
“Querer a essência da Universidade alemã é querer a ciência, no sentido de querer a missão histórica do povo alemão enquanto povo que se sabe ele-mesmo no seu Estado. Ciência e destino alemães devem, nesta vontade da essência, alcançar ao mesmo tempo o poder.” Sacrifico a estética e traduzo literalmente, sem coragem para tocar num hífen que seja, consciente de que tudo nesta formulação de um texto programático faz sentido. Querer, missão, essência, vontade da essência, povo ele-mesmo, no seu, alcançar o poder. É um enunciado que remete para as lições académicas com que Martin Heidegger, o professor de Filosofia, encantara as suas audiências. O filósofo alemão, nesse ano apenas um entre muitos, mas em breve, nas suas fulminantes palavras, um dos dois ou três filósofos de que a Alemanha realmente precisaria, mistura os conceitos de O Ser e o Tempo – que, num outro contexto, viriam a estar na génese do Existencialismo – com o programa nacional-socialista.
Imediatamente a seguir, de forma vertiginosa, o reitor de Friburgo aplicou decretos do Partido nazi e inovou, com alguns da sua lavra.  Antónia Grunenberg, directora de um centro de estudos da universidade de Oldenbourg e autora de um pequeno livro que a editora Payot publicou recentemente em edição de bolso, enumera algumas destas inovações: interdição das associações de estudantes judaicos; introdução da certidão de pureza ariana; auto da fé dos livros da cultura degenerada, como se fizera em Berlim; formação ideológica; treino militar; saneamento dos elementos hostis à segurança do Estado; introdução da saudação alemã.
Heidegger tinha como amigo e “camarada de combate” outro filósofo de referência, Karl Jaspers, caído em desgraça pelo facto de ser casado com uma judia.
Em Maio de 1933, Heidegger fez a última visita a Jaspers, aproveitando uma conferência que proferiu em Heidelberg e a que Jaspers assistiu, como o próprio escreveu, “sentado na primeira fila, as pernas estendidas, as mãos nos bolsos e sentindo indiferença por todas as suas palavras” exaltadas. Depois da conferência, Heidegger e Jaspers sentaram-se para uma conversa cheia de equívocos.  Jaspers interrogava a medo, sem sinceridade, e Heidegger não respondia. “Como é possível que um homem tão inculto como Hitler governe a Alemanha”? E Heidegger: “A educação não tem importância. Olhem para as suas mãos maravilhosas”.
Na casa onde eu cresci havia um armário dentro do qual uma estatueta de 25 cms de faiança das Caldas, da Fábrica de Bordalo Pinheiro, representava o Fuhrer de braços abertos proferindo um discurso presumivelmente tonitruante. Ao lado, tinha sido colocado um poema atribuído a Bertolt Brecht que dizia (cito de cor): “Isto que aí está/ esteve quase a dominar o mundo. /Mas os povos derrotaram-no. No entanto/ gostaria de não ouvir o vosso triunfante canto/ O ventre de onde isto saiu /ainda é fecundo.”  As maravilhosas mãos de Hitler estavam fechadas e, embora não tivesse passado tanto tempo assim, a  Segunda Guerra Mundial era já um acontecimento da História. O que eu não era capaz de perceber, na época, era a existência de um ventre muito mais fecundo. O que gerava intelectuais desejosos de se deixarem fascinar por homens bestiais, de discurso sincopado, visões simples e dicotómicas do mundo, peremptórios no seu irredutível maniqueísmo. Gente culta e exigente,  conhecedora das grandes correntes filosóficas, que pouco tempo antes debatia a questão do Ser e do Tempo, e da consciência do seu lugar no mundo, e renovava tópicos como a angústia, a liberdade, a culpa e o destino, acreditando estar a recomeçar a Filosofia. Gente desta deixa-se encantar pelas mãos maravilhosas de um tosco defensor da superioridade racial de um grupo étnico centro-europeu e da necessidade de esmagamento da “conspiração judaica internacional”.
Nesse ano de 1933 milhares de jovens intelectuais alemães que pouco tempo antes se sentavam no mesmo banco dos seus colegas judeus e, nos cafés, debatiam a revolução mundial e o problema do bem e do mal, calaram-se ou começaram a escrever ou a declamar frases ambíguas que justificavam a prisão, o afastamento, o despedimento, o exílio, ou a eliminação física daqueles que eram seus amigos, colegas e/ou interlocutores regulares até à semana anterior. Hannah Arendt, pois que é dela que esta crónica no fundo trata, dizia na altura que o problema principal não era “o que faziam os inimigos mas o que  faziam os amigos”. E concluía lembrando que se assistia a uma vaga de uniformização que não resultava do terror e deixava, em torno de pessoas como ela, um lugar vazio.
Estes filósofos desapareceram do campo da filosofia, sugados pelo ventre fecundo da traição dos espíritos intelectuais. Ajudaram os nazis a executar um projecto sinistro. Tiveram o treino militar que almejavam. Foram mobilizados. Ocuparam a Europa, que, à excepção da Inglaterra, se rendeu com surpreendente facilidade. Caminharam nas frentes geladas da Rússia. Viram passar os comboios carregados de gente para os campos de concentração, onde se amontoavam, como gado, colegas da universidade. Cheiraram a carne queimada dos crematórios. Morreram. Ou sobreviveram e, depois de alguns anos de uma depuração benevolente, ajudaram a reconstruir o Mundo que somos, num silêncio que durou 50 anos. Eles estão no meio de nós.
Deixaram uma grande lição esquecida, que as palavras de Arendt relembram a quem as quiser recordar: nos tempos de transformação rápida do mundo, os amigos desaparecem, sugados pelo brilho do vencedor e fica um grande vazio à volta dos que resistem, ou foram marcados com a estrela infamante.


Hannah Arendt et Martin Heidegger, Antónia Grunenberg, Petite Bibliothèque Payot, 2012
Hannah Arendt, filme de Margareth von Trotta, 2012



[ Crónica do Luís Januário publicada no LIV Jornal i a 9 Novembro 2013 ]





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2 Comentários:

Blogger Fernando Torres disse...

Esta citação do Brecht: "O ventre de onde isto saiu ainda é fecundo", infelizmente também se aplica ao nosso Portugal.
Medo!

terça-feira, novembro 12, 2013  
Blogger JARRA disse...

É muito sugestivo que neste início de século nos pareça cada vez mais oportuno relembrar tudo isto. Fecundo é com certeza, mas já estará algo a germinar?

quinta-feira, novembro 21, 2013  

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