O Misantropo ou uma raiva terrível
Fotografia: Luís Januário
Terça-feira. Às nove da noite chove na festa académica. Uma escorrência suspeita flui ao longo da rua Tenente Valadim, ignora o semáforo que agora assinala os segundos decrescentes, mistura-se com o trânsito que desce da Praça para a Avenida. Nas escadas do TAGV amontoam-se grupos de estudantes. Estendem as capas para uma refeição tardia. Cada um tem uma caixa de cartão da McDonald’s. Como congressistas em grandes reuniões internacionais, partilham a mostarda e a cebola. Os miasmas da happy meal cruzam a rua, serpenteiam pelo Cartola e derramam-se nas pedras da Praça. Calçada à portuguesa. Aí os grupos dispõem-se de acordo com a proveniência geográfica, o ano de curso, a taxa de alcoolemia ou a zona de habitação: o grupo da Madeira, com a caloira Viviana que desde setembro está a fazer sucesso na página FB da secção Filatélica da AAC, balançando as tranças loiras; o 3º ano de Farmácia, agora em silêncio, bebendo pequenos goles de uma decocção de dente-de-leão; a turma da Solum entoando um hino infantil, do filme Schrek III. Dezenas de pessoas, quase todas deitadas nas pedras frias. Alguns caídos, sem amparo, com saudades das famílias, das cerejas, das Amarelas e das Verdes, provisoriamente encerradas para sempre. Aqui e ali, na Praça, a silhueta de um carro de compras do Belmiro. Enormes, do tempo dos consumos excessivos, de polipropileno virgem, vermelho, rodas travadas. Os carros vieram do Coimbra Shopping, contornaram o Estádio, subiram os Combatentes, arrastaram-se ao longo do Botânico até aos Arcos, onde uma patrulha da Polícia Municipal fez vista grossa, foram guardados nos parques anexos às velhas faculdades da Alta e depois cheios de garrafas de litro e meio com aqueles líquidos de cores orgânicas, entre pilhas de cerveja Sagres, coca colas e shots caseiros de vodka adulterado. Os carros do supermercado fizeram a Latada até ao Parque, foram-se esvaziando e estão agora cheios de barulho metálico e lixo, latas vazias e vidros. Círculos heróicos atiraram alguns carros ao rio, ou atiraram-se ao rio com os carros, espantando as gaivotas que, como um estudo premiado demonstrou, voaram de Dublin ou do Mar Egeu até ao Mondego e estremecem no Parque da Canção, afeiçoadas à Queima, à Latada e à ETAR do Choupal.
Junto à Sereia, dois mini-carros rápidos dos Serviços recolhem lixo. Como as crianças aprendem desde que há aulas de Matemática, se os carros apanham 2 decâmetros cúbicos de lixo em meia hora e os estudantes produzem 3,5 acres-pés por hora, os carros que agora circulam junto à Sereia só limparão a Praça lá para o Natal, ou no dia 30, às 17:30h, dizem os finalistas de engenharia.
Filinto: Tendes má opinião da natureza humana
Alceste: Sim, ganhei por ela uma raiva terrível …
Um indizível ódio diz, no filme Alceste à bicyclette, o actor que ensaia O Misantropo, a peça de Molière, com um amigo que se autoexilou na ilha de Ré, agora ligada a La Rochelle por uma ponte de 3 km, a mais comprida de França.
Quinta-feira. Noite amena. Nas escadas do TAGV, as mesmas capas. O mesmo cheiro penetrante das cebolas com que o McDonald’s confecciona agora os hamburgers. O mesmo derramamento de líquidos fermentados. Os mesmos grupos dispersos pela Praça. Mas, olhando com atenção, a coreografia é diferente. Há um grande ajuntamento ostentando um impecável equipamento desportivo. Outro grita, cadenciadamente, um estribilho de combate. Caminhando entre estes grupos tem-se a sensação de que esperam algo. A chegada das famílias, as chuvas do outono, a libertação dos dirigentes presos, a afixação das pautas, o fim das propinas, a actuação de uma banda funk, uma carga da polícia, o Papa Francisco. Parece aproximar-se um acontecimento que não chegará a acontecer.
Filinto: Todos, pobres mortais?
Alceste: Odeio todos os homens. Uns por serem perversos e malévolos. E outros por aceitarem a maldade.
Sábado. Os estudantes desapareceram. À noite, as escadas do TAGV estão limpas e vazias. Ninguém nas ruas. Da praça 8 de Maio até ao D. Dinis, no Quebra-Costas e na Rua das Fangas, na Couraça e na Portagem, não há vivalma. A Praça está deserta como esteve à tarde, quando alguns apelaram às vidas que queriam de regresso. Não veio ninguém. Não se vê ninguém. As pedras brilham ao néon, pegajosas se alguém as pisasse. Mas ninguém as pisa. Kapuscinski, em 1975, dizia que este estranho fenómeno acontecia em Luanda e por todo o país. Parava a guerra, no dia de sábado. De um lado e do outro desapareciam os combatentes. Não estavam em casa nem nos restaurantes, nem nos clubes, nem nos cafés. Não estavam nos cinemas, nem na praia. Nem nas barreiras, nem no recrutamento. Tinham desaparecido. Nenhum conflito, nenhuma agressão, nenhuma comemoração. Nada. Ninguém. Na tela do TAGV, perante uma plateia composta, Alceste atravessa de bicicleta os campos alagados da ilha de Ré, com o traje dos gentis-homens da corte do rei Luís XIV, pensando em Celimena
Morbleu! Faut-il que je vous aime?
e pedala para o pátio da casa onde se reúnem actores, empresários e os outros elementos da companhia. Aí chegado, irrompe entre os convivas e quando estes se viram para o escutar, como os bandos na Praça se aquietavam para uma revelação que não chegou, recita-lhes, com a bela voz que os palcos de Paris não voltarão a ouvir:
Enquanto for vivo, traidores, não me tereis convosco.
O Misantropo, trad. Luís Miguel Cintra, editorial estampa, 1973 ou trad. Vasco Graça Moura, Bertrand, 2006
´
Crónica de Luís Januário, publicada no LIV Jornal i de 2 de Novembro de 2013
Etiquetas: A bicicleta de Russel, Crónica do i
0 Comentários:
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial