Wohin in Paris
O eixo franco-alemão, que dizem ser o coração
da Europa tal como a conhecemos, teve momentos de efusiva proximidade. Um deles
ocorreu em 11 de Junho de 1940. Após 40 dias de combates, deixando para trás 92
000 mortos e 200 000 feridos, as tropas alemãs desfilaram em Paris. A 23 de
Junho, Hitler visitou Paris na companhia de Arno Breker e Albert Speer. Speer,
o “nazi bom” de Nuremberga, hoje visto com indulgência, era o arquitecto do
Reich, mais tarde ministro do Armamento e talvez a segunda figura do regime.
Arno Breker era artista e escultor. Estudara em Paris onde conhecera Cocteau,
Picasso e Renoir. Uma das suas mais emblemáticas esculturas encontrava-se à
entrada da Chancelaria do Reich e representava dois daqueles rapazotes
neoclássicos com muito ginásio e crânio pequeno, figurando o Partido Nazi e a
Wehrmacht. Uma das fotos divulgadas na época, junto ao Trocadero, tem Hitler
rigorosamente ao centro, Speer à sua direita e Arno Breker do outro lado, com a
Torre Eiffel e o Campo de Marte ao fundo. Todos convenientemente uniformizados.
Só ao Fuhrer é permitido mostrar as mãos e ele cruza-as à altura do ventre, uma
delas empunhando uma luva branca. Tem a face dura que Erwin Blumenfeld
popularizou, justapondo um crânio que brilha nos malares ao inconcebível bigode
que vai de uma à outra narina. Speer está em posse de Estado-em-si, extasiado,
olhando o infinito, lá para os lados de Port Debilly. Breker é mais baixo e menos pomposo. Bivaque na cabeça, tem
nos olhos a candura, a fascinação e o empenho dos compagnons de route. É interessante que Hitler tenha
escolhido estas pessoas para a foto simbólica e não os generais que entraram à
frente da Wehrmacht ou ministros do Reich mais ligados à guerra, que
acompanhavam a visita. A ocupação da cidade-luz, meticulosamente planeada com
antecedência, foi sempre uma questão de prestígio cultural e intelectual. A
visita, se acreditarmos na narração de Speer, durou pouco mais de três horas.
Hitler adorou a Opera, o Panteão e o túmulo de Napoleão nos Invalides. Mostrou
a maior indiferença pela Place des Vosges e pelo edifício do Louvre. Terá
confidenciado a Speer que estava a realizar o sonho da sua vida.
Em Julho saía o primeiro número de Der
Deutsche Wegleiter fur Paris, um Guia entre Pariscope e Time Out, com o
subtítulo de Wohin in Paris, da responsabilidade do Kommandantur e inteiramente
destinado aos soldados ocupantes. Quinzenal, teve tiragens de milhares de
exemplares.
A leitura deste Guia, agora tornada possível
através de uma edição da editora Alma, é esclarecedora: durante 4 anos de
ocupação alemã, a vida quotidiana da capital francesa prosseguiu, em muitos
aspectos com uma aparente normalidade. Cinemas e teatros. Muito teatro, um
fenómeno difícil de explicar. Acreditamos que, nos bastidores de algumas salas,
se desenrolasse o drama que Truffaut encenou no Último Metro. Ou que o povo francês procurasse nos
palcos a dignidade amputada.
Mas na maior parte das vezes era apenas a
miséria do meio artístico a sobreviver com os seus novos clientes. Alguns
pormenores são chocantes, como o à-vontade com que Sacha Guitry, um actor e
encenador então muito popular, concede entrevistas à revista do ocupante, ou o
êxito da Orquestra Filarmónica de Berlim, e do seu jovem maestro Herbert von
Karajan, de quem o cronista afirma : “a imprensa francesa manifestou uma grande
admiração por este jovem, sobretudo pela sua interpretação de Wagner, e
prevê-lhe uma grande carreira” ( em 1969 Karajan seria chamado para dirigir a
Orquestra de Paris...).
A revista engrossou e das 16 páginas iniciais
viria a ter mais de 100, sobretudo à custa dos anúncios. Tudo se pode vender,
afinal. Os comerciantes franceses querem promover os seus produtos. Cabarets,
muitos cabarets, íntimos, caros, populares, “com charme, dança e fantasia”, “de
18h jusqu’à la fin”, com “25
artistas, 7 quadros, 10 décors, 100 trajes e as suas 15 Ingénuas... nuas”.
Fechados em Berlim, os cabarets floresciam em Paris, nesta repartição de
tarefas da nova Europa. Os patrões do espectáculo pagavam para se anunciarem,
como o governo francês colaboracionista pagava as despesas da Ocupação. Estas
despesas eram de 400 milhões de francos por dia, a que se somavam as verbas de
compensação, regulando as transacções comerciais entre industriais alemães e vendedores franceses. Os fundos eram avançados pelo Banco de
França ao vendedor, enquanto o comprador alemão transferia o dinheiro para a
Caixa de compensação alemã. Este dinheiro, uma espécie de crédito bancário da
França, era depois livremente movimentado pelo Estado alemão.
Na segunda quinzena de Agosto de 1944, dois
meses depois do desembarque aliado na Normandia, e já com a sublevação da
capital em marcha, um tal K.Th. escreve na última edição do Guia, um texto
melancólico e celeste sobre a retirada temporária, “por uma administração prudente”,
dos cavalos de Marly da entrada dos Champs-Élysées junto à Place de Concorde:
”assistiram à Revolução, viram o jovem Napoleão desfilando em plena glória,
depois o regresso silencioso dos vencidos. A vida elegante do segundo Império
desenrolou-se aos seus pés, e as tropas vitoriosas de Bismarck desfilaram à sua
frente. Viram partir os táxis franceses na Primeira Guerra mundial e, de novo,
um quarto de século mais tarde, os soldados alemães vitoriosos pararam à sua
frente para admirar a nobreza das suas formas, a impetuosidade controlada dos
seus movimentos”.
Wohin in
Paris? Où Sortir à Paris? 1940-1944, Le Guide du Soldat Allemand, Corinna von
List e Laurent Lemire, Alma Editeur, 2013.
O III Reich Por Dentro : Memórias, Albert Speer, Livros do
Brasil, 1969
Le Dernier Metro, filme, François Truffaut,
1980
Etiquetas: A bicicleta de Russel, Crónica do i
2 Comentários:
Já agora, em complemento bibliográfico, recomendo vivamente o livro "And the Show Went On. Cultural Life in Nazi-Occupied Paris", da autoria de Alan Riding e publicado em 2011 pela Duckworth. É talvez o estudo mais exaustivo sobre a postura dos artistas e intelectuais franceses durante a Ocupação, com especial incidência em Paris. As evidências são, de facto, pouco abonatórias para certos nomes grandes das "artes e letras" francesas (Vlaminck, André Derain, Jean Cocteau, Montherlant, Sacha Guitry, entre muitos outros).
Mário, obrigado pela referência.
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