Lilith
Às cinco horas de uma tarde do fim de Novembro as ruas que levam
ao Canal Saint-Martin enchem-se de gente que recolhe as crianças nas escolas.
Hoje, a água do canal já reflecte as luzes e, numa ponte, dois rapazes fumam
marijuana. Um pequeno grupo conspira à volta de uma carroça decorada com
autocolantes amarelos que anunciam uma manifestação alternativa. Na padaria
vende-se pão, brioches e bolos escandalosos com morangos e creme chantilly.
Pelas janelas entreabertas, ao rés-do-chão, vêem-se oficinas familiares com
costureiras, mulheres como eu, que brunem roupa, lojas discretas de
pronto-a-vestir de contrafacção. Um casal ri alto e caminha sem destino
aparente. Dois amigos, um homem e uma mulher, hesitam à porta de uma casa
silenciosa. Um pai ouve o filho a contar como passou o dia, uma mulher
debruçada num carrinho de rodas cantarola para um bebé sonolento. Uma rapariga
entra num café, senta-se, despe o casaco, solta o cabelo, pousa os óculos.
Junto ao Colégio Louise Michel, a porteira olha-me com preocupação: - Não pode
entrar- dispara. Não se percebe se tem medo de mim, se de alguém que pode
chegar a qualquer momento, por detrás dela. Nunca fiz tenção de entrar no átrio
do Colégio Louise Michel, onde ainda ecoam as correrias das crianças cujos pais
tardam. Vejo a porteira em sobressalto, a Marianne atrás dela com um decote tão
generoso como o meu, a lápide recordando as crianças judaicas do bairro
deportadas para os campos de morte, a leste, mais de quinhentas ali no X ème,
é o que está escrito. Digo à porteira que o medo dela não tem razão de ser e
que Louise Michel é um nome de mulher livre. Recomeço a caminhada, cruzo de
novo o casal peripatético, ela é muito alta e jovem, ele já velho e
espalhafatoso, fala e ri sonoro para uma audiência imaginária que, dos
passeios, lhe dará certamente razão na disputa que arrasta com a jovem de andar
desengonçado, sorrindo agora com desaprovação, como se sorri a um louco ou a
uma criança que nos foge.
Numa ponte, um casal sobe os degraus de acesso à
plataforma e dir-se-ia que sobem para os plátanos ou para o céu de chumbo de
Paris, no Canal Saint-Martin. Perto do Hospital Saint-Louis, uma mulher para,
junto à montra de um ginásio decorado com manequins estereotipados, de bicípites
inchados, cabelo como o Tintin enquanto jovem, T-shirt de manga curta a
rebentar nos peitorais oleosos. Vejo esta gente que amo serenamente, os homens,
as mulheres e as crianças das orgulhosas cidades ocidentais, os filhos dos
fuzilados da Comuna, dos deportados da Nova Caledónia, dos canaques e dos
cabilas, e tenho uma alucinação benigna, a ilusão de partilhar a vida deles, de
poder entrar nos quartos mal iluminados da Rue Saint-Maur, iguais àqueles onde
me deito nestas tardes, putain de vie, mas onde encontrasse por fim gente de
verdade, crianças a quem pudesse ajudar a arrumar os livros, um homem que
pagasse mas me quisesse contar a sua vida que de certa forma resume todas as
vidas. E chegada aqui, ao coração privado desta crónica, ao ponto em que a Rue
Saint-Maur se afasta do Hospital e se cruza com a pequena Rue du Buisson,
encontro-me no momento de máxima liberdade desta escrita e deste passeio. É o
fim do dia, um cartaz numa parede descola-se e mostra, em tons de cinzentos,
uma mulher acariciando o torso decepado de um velho que sorri. Le détournement.
Chamo minhas a estas palavras com que escrevo, completamente fora do contexto e
sem nomear as fontes, as que Louise Michel ensinava às crianças das escolas
livres, livres como ela, livres como eu, ou aos camaradas anarquistas, o texto
escondido no meio das frases, no espaço interior da escrita, no bairro árabe,
corte de cabelo a três euros, fruta barata, música chamando à oração, botas
pretas de cano alto, cadáveres de aves decompondo-se, entre a estação de metro
da Gare de L’Est e Belleville, entre o anoitecer e o jantar, entre a empresa do
genoma humano e o mercado de legumes, entre a Rue des Récollets e a Rue
Oberkampf, entre os miúdos à saída da escola e vocês, mortos de quem já posso
falar, enfim mortos, putain de vie, posso enfim nomear os que amei, putain de
galère, e como me amaram e tiveram, os excessivos sentimentos que lhes
dediquei, contrariando a razão e os bons conselhos dos que apesar de tudo
tiveram reconhecido sucesso, e bem longe dos bairros populares ou mesmo aqui,
na loja de bicicletas ultraleves ou dobráveis, pneus coloridos, alforges de
marca, engenhosos cadeados de segurança, clandestina, c’est pas vraiment que
j’aie toujours envie, aqui no ângulo morto das câmaras fixas e dos micro
direccionais, aqui de luvas para não deixar DNA, palavras luvas onde soa a
senha da revolta, bandeira negra, oh Louise, Louise, if it's true / tell it,
tell it to me, vamos vingar todos os meninos levados nos comboios para leste,
como se pôde escrever poesia depois deles, escrever sobre comboios, cuidado,
aproxima-se o fim do texto, o sítio onde vou de novo ficar a descoberto, talvez
aqui me leiam outra vez, Rue de La Fontaine du Roi, estou a ser filmada, tiro
as luvas, porto-me bem, “não corras riscos, caminha devagar”, c’est la façon a
moi de faire la guerre, na direcção do metro de Belleville, em
campo-peito-aberto.
Louise Michel (Rebel
Lives), Nic Maclellan (org), Ocean Press, 2004.
Tom Waits, Tell it to
me, 1998
Etiquetas: A bicicleta de Russel, crónicas do i
1 Comentários:
Foto magnífica. Autoria?
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