Balcão com mão de mulher e copo
Robert
Doisneau (1912-1994) foi um fotógrafo francês que em 1950 ganhou a celebridade
com Um Beijo no Hotel de Ville, a foto de um jovem e elegante casal,
beijando-se, enquanto passa, em segundo plano, o tapete rolante da vida
quotidiana. Capa da revista Life, teve milhões de reproduções e decorou as
paredes da primeira geração do pós guerra, como símbolo discreto da nova moral
hedonista e despreconceituosa. Doisneau foi um fotógrafo de rua, como Kertész
ou Cartier-Bresson. Muitos anos mais tarde percebeu-se, e isso excitou
incompreensivelmente alguns, que a foto de O Beijo fora encenada, e a mulher
“modelo” a quem Doisneau cedera o negativo deu entrevistas e acabou por vendê-lo,
por soma avultada, a um coleccionador incógnito.
Uma
das fotos de Doisneau foi escolhida por John Szarkowski para o livro de 1973
intitulado Looking at Photographs.
Szarkowski, ele próprio um fotógrafo, foi curador do Museum of Modern
Art de Nova Iorque e aí responsável, durante 30 anos, pelo Departamento
fotográfico. Exerceu um magistério de influência sobre gerações de profissionais
e apreciadores de fotografia e escreveu textos, agora clássicos, sobre Eugène
Atget, Garry Winogrand ou Irving Penn entre outros. A imagem de Doisneau que Szarkowski seleccionou a partir do acervo
do MOMA para esta obra singular da história da fotografia, chama-se No Café, Chez
Fraysse, Rue de Seine, Paris (1958).
A cena é descrita soberbamente por John Szarkowski. Um homem e uma
mulher bebem vinho tinto no balcão de um café. Ela tem os olhos em baixo e uma
face esfíngica. Parece hesitar numa decisão, estar suspensa, por pudor, nos
segundos que precedem um assentimento equívoco ou uma recusa gentil. Naquele
momento ouve o homem. Ele está virado para ela, tem um fato de flanela grossa e
um lenço branco aflorando, negligentemente, o bolso do casaco. Apoiada no
balcão ela volta para ele o ombro esquerdo. O homem é baixo, fita a hemiface esquerda
dela enquanto fala. John Szarkowski detém-se neste momento de sedução, em que
um homem joga tudo. Diz, a certa altura, que este homem “não tem nenhuma
estratégia de retirada satisfatória”. E continua: ...”Pior do que isso, ele é
mais velho do que devia ser”...
( Worse
yet, he is older than he should be...).
Temos
então, num bar de Paris, captado pela lente de uma Leica, um homem “que não
devia ser tão velho”, tendo à frente um copo vazio de tinto Beaujolais,
Beaujolais nouveau, dirigindo-se a uma mulher com quem partilha um segundo copo
de vinho.
A
mulher está separada do homem pela face posterior e externa do seu braço flectido,
por cima do qual veste uma malha preta e um casaco de camurça. O sorriso dela é
melancólico, mas ele não pode vê-lo. Totalmente concentrado na face dela, na
sua hemiface esquerda, distingue apenas a comissura dos lábios, a saliência do
malar, a pálpebra sombreada, a sobrancelha erguida e, na periferia, os cabelos
finos, negros, desalinhados, divergindo de um ponto da testa ovalada. Um homem
pletórico, talvez calvo, apoiado no antebraço, totalmente virado para a mulher,
falando com os lábios cerrados, pesado, maciço como um velho pugilista. Há
alguma coisa dramática neste quadro. A tensão do homem contrastando com a serenidade
da mulher. O esforço contra a leveza. A claridade contra a sombra. O passado
contra o presente. A mão delicada dela tocando o copo sobre o balcão e as
mãos decepadas dele. Um homem arriscando alto, empenhado e talvez comovendo a
mulher com tanta determinação. Mas essa obstinação, a comoção que desperta, é
também a sua fragilidade. “Pior do que tudo”, como ouvimos dizer, “ é mais
velho do que devia ser”. E, por isso mesmo, condenado ao fracasso.
Voltamos
a olhar. O centro da composição é, afinal, a face da mulher, a zona de maior
luminosidade, de onde parte o olhar oculto dela. Dessa borboleta de luz
acompanhamos a direcção do seu olhar. Até ao copo de vinho. E desde aí, pela
mão clara, subimos ao longo do braço até ao olhar turvo do homem. Paramos na
mancha negra do chapéu. E quando voltamos a descer, refazendo o percurso em V
que o nosso olhar traçou na imagem, deparamos de novo com o rosto imóvel dela, o
pequeno sinal saliente no sulco naso-geniano. E nesse instante perdemos o
homem, fundido na penumbra de outros homens indistintos ao fundo. Ela fica
sozinha no Café da Rue de Seine,
agarrada ao balcão, depois içando-se para a luz como para o bordo de uma
piscina, depois ainda, abrindo as asas para voar.
Looking
at Photographs, John Szarkowski, The Museum of Modern Art, 1973. Eight print
2009. Distr. by Thames & Hudson Ltd, London
Etiquetas: A bicicleta de Russel, crónicas do i
2 Comentários:
Pois é, mais velho do que devia ser... Velhice essa, tal como os dois copos, um já "consumado" o outro em via de o ser, mesmo sendo Beaujolais nouveau, "improves desire but impeach performance"...como muito bem dizes, Luis: esforço/leveza, tensão/serenidade. C'est comme ça que sa se passe!
Abraço
PM
PS - Leica. O Bonirre não vai deixar passar!
Obrigado P. Leica, claro.
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