Agora que estamos em Dublin há oito dias começa a habitual confusão onomástica e fisionómica. Nas ruas mais animadas, distingo, entre a multidão, um vulto conhecido. Pode ser familiar: o meu vizinho da rua Verde Pino, um colega de curso, a secretária do ensino médico. Ou o Rui Batista. Há muitos anos que vejo o Rui Batista, eternamente jovem, com a melena asa de corvo e sorriso sarcástico, perpetuamente a caminho de um destino pouco óbvio. Ou actores e locutores, gente célebre da televisão, que consideramos íntimos, e quase nos espantamos quando se torna evidente que o reconhecimento não é recíproco. Quase sempre são mortos, os indivíduos que se cruzam comigo, nos lugares que visito. Pessoas que desapareceram, algumas há imenso tempo, e que agora se passeiam nas grandes cidades, entre as multidões, quase sempre sozinhos, ostentando um ar antigo, roupa anacrónica e penteados fora de moda,
vagueiam sem destino, de olhar perdido, mas tranquilo, como os turistas sem guia.
Vejo os meus amigos destinados a uma morte precoce, o Boléo, que morreu quando tínhamos quinze anos, o Fontão, de testa alta e confiança, o Néné, distribuindo a uma roda de admiradores a sua ironia desconcertante. O seis do 2ºA , o Sousa, a quem o padre de Moral incumbiu da difícil tarefa de me ir buscar para a missa de domingo. E com eles vem quase sempre a dona Beatriz, a minha professora de Português, caminhando com uma encantadora retroversão da anca. E o meu estranho professor de Francês, microgénico, e de voz profunda. Ela acreditava que eu seria grande, ele adivinhava já os defeitos que eu viria a revelar.
É para aqui que vieram – penso.
E faz sentido. Vejo-os de relance, meio encobertos por outros transeuntes, quase sempre afastando-se mim. Não parecem ter fome nem frio, como convém à sua condição. Não têm destinação. Mas ninguém parece ter destinação, nestas ruas de Dublin ao fim da tarde. Apenas procuram o que resta do sol, como toda a gente. Quando apresso o passo para os ver mais de perto e desfazer a confusão, desaparecem. Estando eu na esquina de Exchequer Street com St. Andrews, vejo-os subir a rua, a esta hora da tarde já ameaçada pelas sombras. Vejo como se aproximam do cruzamento onde estou, encostado à porta do Foggy Dew, e como se desvanecem quando entram num miraculoso cone de luz feérica, como tremem e se extinguem. No momento da extinção há uma fracção de segundo em que se definem com clareza. O senhor Garcia está mais magro, embora continue rotundo. O professor de Alemão, com o cachimbo vazio, avança pesadamente e é fotografado, sem que o note. A mulher que prodigiosamente o vê e fotografa, com a máquina à altura da face, nunca verá esta fotografia nem entra, por enquanto, nesta história.
Se falar sobre isso, se disser à Luísa:
- Olha, o Ivo.
E a ouvir repetir:
- Ivo, que Ivo ?
E lhe responder:
- O Ivo Cortesão, o meu professor de Francês no segundo ciclo.
A Luísa sorri, divertida e sem surpresa: - Que engraçado, já não via o Ivo Cortesão há vinte anos, quando ficámos lado a lado no comboio, numa ida a Lisboa...
E então vejo o meu pai. Entre todos os conhecidos que encontro em Dublin, ao sétimo dia, quando já decorreu tempo suficiente para sabermos de cor algumas ruas, alguns trajectos, os horários do comércio, os cais do centro da cidade, pode acontecer vê-lo.
Em Dublin ou em Madrid. Em Paris. Em Milão e em Londres. Nunca o vejo em cidades mais pequenas. Nunca se aproxima. Nunca olha de frente para mim. Está quase sempre de costas, caminhando na mesma direcção, sem pressa. Acontece que aqueles que se interpõem entre o meu pai e nós, caminhando devagar, como fazem os turistas sem programa, o ocultam totalmente, ou se viram para trás, sentindo o peso do nosso olhar. O meu pai nunca se volta. O meu pai com a gabardina branca. O meu pai com um casaco castanho. A sua cabeça brilhante. As grandes orelhas. O modo que ele tinha de atirar ligeiramente os pés para a frente, ao andar. O nariz quebrado de boxeur. Que não vejo. Pois não se vira. Nunca se vira.
Etiquetas: As sandálias de Boston