29 outubro 2012

As Três Graças e o Aconchego

Hoje o sol nasceu atrás da serra da Lousã, com todo o esplendor. Os maníacos da mudança de hora devem estar a preparar a costumada operação bianual. Interrogo-me como estas coisas acontecem. Que organismo em vias de extinção reúne para cumprir a directiva da mudança de hora do Outono. Com a queda do Estado-como-o-conhecemos virá o dia em que ninguém terá tal responsabilidade e continuaremos na hora de verão, ou na hora de inverno pelo verão fora, e ao fim de algum tempo cada um terá a sua hora solar aproximada e coincidiremos vagamente.Estou a ler uma biografia de Sartre e Beauvoir da autoria de Hazel Rowley. A meio já estava cansado com a inesgotável energia sexual que se desprende do par. Quantas horas tinham então os dias da França para aqueles iluminados poderem estudar, debater e produzir filosofia, dar aulas a adolescentes, passear pelos Alpes, viajar a Marrocos, cumprir o serviço militar, escrever e reescrever ensaios e romances, e ao mesmo tempo milhares de intermináveis cartas que destinavam às vítimas e à posteridade? E o tempo dedicado à sedução, de que Sartre se julgava mestre absoluto, bem como à sua preparação e execução final. Segundo Rowley, o desenlace, em contraste com os preparativos, era inesperadamente breve. A noite prolongava-se com preliminares infindáveis a que chamavam as “carícias”, e que por vezes, só por vezes, davam lugar às“ obscenidades”. A divisão do tempo que descrevo pode ser artificial e enganosa, reflectindo o estado incipiente do lirismo autoconfessional e do relato erótico , hoje tão comuns mas que na época davam os primeiros passos titubeantes. Um pouco como a provinciana de Para Roma com Amor, do último Woody Allen, as raparigas chegadas a Paris dormiam com Sartre por ele ser a celebridade que se adivinhava, apesar de ser vesgo, “cruelmente baixo”, de pele sebosa e marcada pelas pústulas e comédones do acne e as surpreendesse com a prática do coitus interruptus. Custa a crer como o tempo podia dar para toda esta actividade, aqui grosseiramente simplificada, entre o Hotel Mistral na Rue Cels, o Royal Bretagne em Montparnasse, lençóis e cobertores como pequenas bandeirinhas que iam cobrindo o mapa de Paris e, todos os anos transbordavam para tendas e celeiros. E sobretudo, como sobrava tempo para a mais preciosa das pedras do puzzle sentimental, aquela que o casal sublime dedicava a si próprio. Embora tencione escrever uma crónica sobre este tema, o ponto em que me encontro, antes do existencialismo, é pouco inspirador. Penso então em mulheres diferentes da Beauvoir que foram notáveis e são notáveis, nobres, desinteressadas do reconhecimento dos contemporâneos e da posteridade e que, todas à sua maneira, são perfeitas. Curiosamente têm nomes antiquados, como Simone, e um aparente desinteresse pelo sexo. Falo de Madalena, Adelaide e Leocádia. Madalena é linda, quando nos detemos sobre as particularidades do seu rosto, mas realizou-se numa procriação difícil da qual resultou um bebé frágil e exigente e o desemprego. Adelaide tem uma notável actividade social, que leva a cabo sem desfalecimentos. Leocádia entregou-se inteiramente à sua profissão, e veste o hábito civil das noviças, onde só a pele do rosto e das mãos é pública. Madalena, embebida em hormonas que facilitam o amor materno e a santificam para o seu homem e para todos os homens, está adiada enquanto mulher mas é nesse parênteses da sua vida sensual que o seu bebé progride. Adelaide é cerebral, previsível. O seu gabinete é um reduto de esperança para os desesperados, a sua voz suave, o seu discreto sotaque beirão, desarmam os excitados e agasalham os deserdados. Ela atemoriza os juízes negligentes, recorda-lhes prazos, diz-lhes que a ignomínia não passará despercebida. Personifica um princípio de justiça que permanece, enquanto à volta tudo desiste e se demite. Quando for tempo de restaurar um Estado de equidade, isso só será possível em torno de gente como ela. Adelaide atravessa o tempo dissoluto do fim do capitalismo especulador como as bibliotecas dos mosteiros medievais. É alta, de face clássica e escolhe roupa que esconde a sua feminilidade. Leocádia reúne à sua volta uma legião de admiradores, fascinados pelo seu exemplo. É abnegada. Embora seja crente, não se conforma com o destino ignóbil, com a adversidade da doença, a falta de meios, a desigualdade de tratamentos. Mulheres discretas como estas, reservadas, são a âncora dos meus dias . Por motivos difíceis de explicar, a melodia que delas escapa desenha um mundo feminino, pós beauvoiriano, onde me sinto seguro.

26 outubro 2012

23 outubro 2012

Cercos






Rui Bebiano, professor de História Contemporânea, anda em sites, chats, mailing lists e outras coisas – antes do FB e dos blogues – desde 1994. Ainda em ecrãs pretos com modems-torradeira. Manteve a Non!, uma editora electrónica absolutamente pioneira, de 1996 a 2002. Bebiano é hoje um esforçado cultor do FB, procurando, como sempre, dar à sua intervenção uma característica didáctica. Esta semana, oportunamente, durante a concentração de milhares de manifestantes frente ao parlamento, Bebiano editou um fragmento da reportagem de Robert Kramer, de 1975, quando, no auge da crise política que se seguiu ao 25 de Abril, um grupo de operários da construção civil cercou a Assembleia Constituinte, reunida em São Bento (www.youtube.com/watch?v=iFZ5on3HEiI).
Enquanto as forças políticas organizadas contavam as espingardas, uma legião de populares que acordara para a participação cívica exprimia-se como podia, descontente com a recomposição da exploração capitalista. A peça mostra-nos uma mulher humilde, sumariando à sua maneira a situação e dizendo que “o seu menino” estava entre os revoltosos que, presumivelmente, tinham entrado em S. Bento. Um homem insurge-se contra o primeiro-ministro, “que tinha mandado o país à merda”, quase todos fumam, uma betoneira gigante irrompe na rua, como um carro de combate, entre as alas dos manifestantes que a aclamam. Pendurado na composição, um homem levanta o punho em apoteose. Aqui é que está o povo, ouve-se gritar. Todos os entrevistados insistem que a sua luta é para acabar com a miséria, to end the misery for ever. De súbito uma coluna atravessa a multidão. Em passo apressado, como se tivesse um objectivo, uma missão, e a hora da sua execução estivesse marcada. Gritam cadenciadamente: viva a classe operária. E a mulher continua a falar com convicção, como se explicasse os sentimentos de todos, incluindo o seu menino, que esteve lá e ainda lá está. O povo não quer mais ser oprimido. E, noutro sector, outros gritos: Isto é que é/o povo que trabalha. São magros, homens, são os operários da construção civil. E uma mulher, a mãe. De noite acende-se uma fogueira. The struggle continues. Ainda uma voz, enquanto as chamas sobem, tendo como pano de fundo o Palácio de S. Bento: eu tenho dentro de mim a revolução. As imagens são cinzentas, desfocadas, e ao vê-las, apesar da distância, instala-se em nós uma grande angústia, como se por detrás daquela esperança se perfilasse uma grande ameaça. As pessoas são simples, determinadas. Homens de pele escura, muitos têm barbas ou bigodes crescidos. Caras chupadas da silicose. Saúde oral duvidosa. Alguém agita um megafone na varanda do palácio.
Esta semana, 37 anos depois, ao apelo presumível dos sms juntaram-se milhares na mesma rua. Os canais de televisão estavam todos ocupados com a antevisão de um importante jogo de futebol, pelo que sei pouco dessa concentração que visava marcar posição face ao Orçamento, cuja votação se preparava. Mas à hora em que Rui Bebiano editava o filme de Kramer circulava já uma fotografia inusitada (www.jn.pt/PaginaInicial/Politica/Interior.aspx?content_id=2833829).
Um grupo de jovens, alinhados junto à barreira da polícia, despiu as roupas. Vê-se, em grande plano, um homem com o equipamento bélico das forças especiais e, num plano inferior, duas jovens de seios nus e braços erguidos. O fundo é constituído por mascarados anónimos, com a face de Guy Fawkes, o secular símbolo de luta contra a tirania, que desde V de Vingança se multiplica nas manifestações do Ocidente. O corpo das duas raparigas contra a couraça de combate, de frente para a escadaria do palácio beneditino, constitui-se como uma declaração invencível. O corpo nu, desarmado, reforçado pelas mãos levantadas, unidas. Tudo o que temos, o nosso corpo, a marca incorruptível da nossa individualidade, o que fica quando somos despojados do que trazíamos. A nossa pele luminosa contra a opacidade da força bruta. O corpo desarmado, o nosso Corpo Especial tornado pura pele e as máscaras sorridentes que derrubaram um déspota e devem inquietar os sonhos dos acantonados de S. Bento.
Quatro planos. O de Guy Fawkes urdindo o plano salvador. O dos corpos nus, a nossa linha da frente, a fronteira que opomos às grades da polícia. O plano da barreira policial, sofisticada, mostrando aos incautos que as forças repressivas da democracia, na fase do Estado de excepção, cresceram até à deformidade da ficção. E, intramuros, reservado, autista, defenestrável, o corpo dos funcionários dos partidos do Orçamento.
O corpo nu da mulher captado pela objectiva de Catarina Cruz transforma o polícia num elemento de uma performance que resume a história dos dois últimos séculos e irrompe nesta noite de Outubro como a betoneira no cerco de 1975.


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19 outubro 2012

Autobrochelências

18 outubro 2012

Brochelências






Borges : “Ele é muito bom”

Só Gaspar acredita em recessão de 1% em 2013





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17 outubro 2012

Serena encontra Ian Hamilton no The Pillars


 

 
Na critica literária, ou cinematográfica, é suposto não se revelarem aspectos concretos do livro ou filme em recensão. Quase todos estão de acordo que  a alusão directa à intriga é de mau gosto, e existe mesmo uma expressão que caracteriza os grosseiros que a praticam. James Woods, a propósito de  Ian McEwan, chamou manipulação à capacidade que o romancista tem para esconder factos relevantes da ficção, ou de os ir soltando ao sabor das conveniências e tendo sempre como pano de fundo o controle absoluto do leitor. Esta manipulação autoral  seria, para Woods, um defeito, uma característica de menoridade. Para Ian McEwan, pelo contrario, é o coração da narrativa literária. Nestas crónicas não pretendo senão chamar a atenção de textos, de qualidade diversa,  através dos quais se teceu a malha  onde se inscrevem os mapas do meu mundo. E para isso não tenho de obedecer a regras nem interdições. O último livro de Ian Mc Ewan pode ser lido como uma ficção de espionagem do final da guerra fria, uma  autobiografia, uma crónica da Grã Bretanha dos anos 70, na época dos atentados do IRA e da greve dos mineiros, quando um primeiro ministro esgotado é substituído por outro que iniciava a estrada da demência. Ou ainda, como um romance sobre a literatura. O livro intitula-se Mel em português de Portugal, Serena, em português do Brasil e  Sweet Tooth, na língua em que foi escrito.  Serena é o nome da narradora. Serena Frome, que rima com plume, a linda filha de um bispo anglicano que em Cambridge, num Verão de amor, é recrutada pelo professor Tony Canning para o MI5, o decrépito serviço de informações inglês   As opções editoriais portuguesas para a escolha dos títulos são sempre um motivo de perplexidade.  Porquê Mel? O título original, Sweet Tooth  remete para  o poeta inglês do século XVI, Edmund Spenser, que escreveu The Faerie Queene, um poema épico. O título brasileiro, para a inesquecível narradora, de quem Ian McEwan poderia agora dizer, justamente: Je suis Serena Frome.  Curiosamente, a edição brasileira da Companhia das Letras, talvez devido à presença do autor em Paraty, antecipou-se ao lançamento do livro em Londres. A capa da Cape mostra uma mulher de silhueta atraente e vestido curto, num corredor sombrio, hesitante, sentindo-se perseguida, enquanto ao fundo se recorta, como no quadro de Velásquez, a sombra inquietante de um homem. Já a capa portuguesa da Gradiva, de aspecto antiquado, tem 2/3 preenchidos com um grande plano de uma mulher sensual com o rosto atravessado por madeixas louras. Este grafismo desalmado levanta uma questão que , de várias formas, surge  muitas vezes associada aos livros de Ian McEwan: será aquilo literatura de aeroporto?
Os romances de Ian Mc Ewan desencadeiam uma pulsão de leitura rápida, uma dependência, uma necessidade de mergulhar e  permanecer dentro do seu universo criativo, uma identificação com os personagens, semelhante à que a literatura de aeroporto desencadeia nos leitores que constroem best sellers.
O outro traço ambíguo de Ian McEwan é a perfeição técnica do estilo e da construção ficcional. Mesmo quando os temas são sexo escaldante, adultério, traição, o estilo é quase académico e a emoção controlada e um pouco distante. É no entanto fácil de perceber que ele se vê, e é de certa forma, um herdeiro da grande tradição do romance inglês e continental.
Em Mel, esta proximidade a referentes fortes tem momentos emocionantes. Como quando Serena e o seu avençado, o escritor Tom Haley, encontram Ian Hamilton no bar The Pillars.
Corria o ano de 1974. Ian Hamilton, escritor, crítico, publicista, revisor, apoiante entusiasta do Tottenham Hotspur, acabara de criar the new review, assim, com minúsculas, uma publicação original que durante cinco anos publicaria os jovens lobos britânicos que lograram passar pelo seu crivo exigente. O verdadeiro escritório da the new review era um pub da Greek Street, The Pillars of Hercules. Aí, reuniram-se, de forma inédita no panorama literário da Grã Bretanha, Martin Amis, McEwan, Craig Raine, James Fenton, Bradbury e muitos outros.
O centro dessa animação era Ian Hamilton. Recentemente a Faber editou uma colectânea de poemas seus e na capa podemos imaginar o homem que Serena encontrou e a quem, afinal, dedicou tão pouca atenção. O cabelo caído na testa, penteado para a frente, com a franja que os beatles tinham popularizado 10 anos antes. Uma cara bogartiana, diz Alan Jenkins que prefacia o livro. Um maxilar vigoroso, escreve Serena, na ficção de McEwan. A face de um capo di capi, diz McEwan. O casaco de tweed, uma blusa preta de malha, sem gola, calças de bombazina, as mãos enormes cruzadas e o antebraço apoiado numa mesa onde se vê uma bela edição de um livro sobre Robert Lowell . O olhar perdido, como se murmurasse:
“.It’s Spring and I am sick at heart/ Again, but not because of her.”

Mel, Ian McEwan, 2012, Gradiva e Collected Poems, Ian Hamilton, 2009, Faber and Faber Ltd


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16 outubro 2012

A retribuição das dádivas







Goldman Sachs obteve um resultado líquido de 1,51 mil milhões de dólares no terceiro trimestre de 2012



 



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12 outubro 2012

Saracoteiam-se os Pretendentes






Ângelo Correia: "Quem é que hoje vai para o Governo? ... ganha-se pessimamente,

Bagão Félix: "É bastante difícil, mas há pessoas que têm sentido patriótico...",


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# CONVITE






 

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11 outubro 2012

Brochelências






"É graças ao senhor Vítor Gaspar, a quem agradeço todos os dias por ter tornado as coisas mais fáceis", afirmou,

 
 

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Uma Ética para a Revolução






O ministro da Saúde pediu ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida um parecer sobre a fundamentação ética para o financiamento de três grupos de fármacos: retrovirais para doentes VIH+, medicamentos oncológicos e medicamentos biológicos para doentes com Artrite Reumatóide.
No preâmbulo do Parecer, o Conselho explicita um pouco o contexto deste pedido: o famoso Memorando da Troika exige que se baixe de 1/3 os gastos com medicamentos relativos aos valores de 2010. Estes três grupos de medicamentos constituem uma fatia importante dos gastos com medicamentos do SNS e é escusado lembrar o impacto de qualquer medida restritiva num conjunto de situações como o das doenças oncológicas que constituem, entre nós, a segunda causa de morte.
Deste pedido não vem nenhum mal ao país nem ele constitui motivo de espanto. Recentemente o Ministério da Saúde criou Comissões e pediu a outras já existentes pareceres sobre temas como a reformulação da rede hospitalar, a Carta Hospitalar, a Carta Hospitalar dos cuidados às crianças e adolescentes, a reestruturação da Urgência Hospitalar, por exemplo. Estes pedidos ocuparam dezenas de pessoas que, como sucede em todas as comissões, constituíam uma mistura um pouco monótona de gente experiente e qualificada, apparatchiks da actual coligação e novos e velhos ingénuos esforçados. Produziram documentos de valor desigual, por vezes com alguma publicidade. Até à data, o ministro a todos uniu com o mesmo destino, um olímpico desprezo, destruindo, com gestão corrente, as boas intenções que alguns comissários decerto tinham.

A forma de que se revestiu o pedido do Ministro e sua fundamentação não foram revelados pelo Conselho de Ética, o que constitui a primeira perplexidade, ou incómodo ético, se preferirem. A que propósito o ministro pretende um parecer ético relativamente a medicamentos, cujo licenciamento implicou exigências estritas da Autoridade nacional do Medicamento, o vetusto Infarmed. Esses medicamentos possuem claramente definidas as suas indicações. Existem já medidas de melhoria da qualidade da prescrição, visando a racionalização da terapêutica, através do uso de protocolos e de normas clínicas em matéria de prescrição de medicamentos e de meios complementares de diagnóstico e de terapêutica. (as célebres NOCs que, à sua maneira, a Direcção Geral de Saúde tem vindo a elaborar em colaboração com a Ordem dos Médicos). O ministério tem possibilidade de recorrer a auditorias terapêuticas, a avaliações da relação custo-benefício de intervenções terapêuticas, ao controle da prescrição por sistemas informatizados, a medidas no âmbito da Entidade Reguladora da Saúde ou eventualmente de institutos independentes. Até onde é que quis ir, com este balão de ensaio lançado ao Conselho de Ética. Conhecendo o pendor revolucionário do Executivo era legítimo temer que se tratava, no campo da Saúde, de um equivalente da alteração da TSU nas empresas.

O Conselho aceitou o jogo, dando como adquirida a imposição a restrição orçamental imposta pelo Memorando, e produziu o tipo de documento que se espera destas entidades: inócuo, obscuro, hermético e redondo.  Conformou-se com um cenário inquietante não apenas de “desistência de gastos adicionais, como de substituição, desinvestimento ou suspensão de serviços ou intervenções suportadas pelo SNS”. Tudo poderia ter ficado na neblina em que esta navegação decorre se, na sua formulação, não tivesse utilizado uma palavra: racionamento. Que de imediato adjectivou: racionamento explícito e transparente.
Apesar disto esta palavra levantou razoável celeuma na opinião pública ainda existente. Embora alguns comentadores tenham vindo a terreiro argumentar que racionamento era um conceito do jargão gestionário que quereria afinal significar racionalização, uma onda de temor percorreu os mais atentos. Afinal, o Conselho possui distintos membros, médicos e não médicos, para quem a palavra significa o mesmo que para o comum dos leitores: limitar a utilização. Esta leitura simplista tem pelo menos duas razões evidentes. A primeira já foi dita mas repete-se. O Conselho Nacional de Ética aceita discutir os termos do racionamento de medicamentos para doentes oncológicos, VIH + e reumatológicos, decorrente do corte de 1/3 imposto pela troika? A segunda é etimológicamente inevitável. Pois não é o encomendador conhecido como um racioneiro, um encarregado de contabilidade respeitado pela sua celebrada acção raçoeira?


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08 outubro 2012

04 outubro 2012

03 outubro 2012

02 outubro 2012






A esmagadora maioria continua no activo, estando à frente de grandes empresas.



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01 outubro 2012

Brucia continuamente






Em “Os Anéis de Saturno”, W. G. Sebald escreve que “numa época remota, nas noites de Verão da minha infância em que, do vale, observava as andorinhas a voar no crepúsculo, ainda bastante numerosas naqueles tempos, imaginava que eram as rotas que desenhavam no ar que sustinham o mundo”.
E em “Vertigens. Impressões”, o narrador de All’estero, que confusamente se instalara em Limone sul Garda, diz : “Sentei-me a uma mesa junto da porta da esplanada, espalhei à minha volta os meus papéis e apontamentos e tentei estabelecer linhas de conexão entre acontecimentos muito afastados uns dos outros que me parecessem ser da mesma ordem.”
Um mundo sustentado pelas rotas das andorinhas e onde acontecimentos da mesma ordem, mesmo afastados entre si, estabelecem linhas de conexão. Eis duas pistas para o mundo de Sebald.
Incontáveis enumerações. Descrições precisas de viagens, passeios, percursos, rotas, deslocações aparentemente sem sentido. E de pequenos acontecimentos, relatos, vidas insignificantes. Em All’estero, o narrador parte para Viena. Aí decide tomar o comboio para Veneza, não sem antes ter passado um dia com Ernst Herbeck, de quem sabemos “que passou 34 anos numa instituição psiquiátrica, após o que foi dado como curado”.
Caminham os dois ao longo do Danúbio e Ernst, que inevitavelmente faz recordar Robert Walser em Herisau, ouve com “o paciente desinteresse de quem há muito conhece com todos os pormenores o que lhe comunicam”. Nas aldeias, de regresso, não há ninguém, pois os habitantes estão fechados em casa “entretidos com pratos e talheres”. Passam por ruínas que lembram ao narrador “um crime horrendo” nunca nomeado, um “medonho monumento”.
Quando no fim do dia se despedem, Ernst saúda com um gesto largo que faz o narrador escrever: “Isto fez-me pensar numa pessoa que tivesse passado longos anos no circo.”
Viaja então para Veneza e, no comboio, sonha com um quadro de Tiepolo. À chegada barbeia-se numa casa perto da gare, interna-se em ruelas interiores, com a angústia de quem se afasta do Gran Canale, até avistar San Macuola e tomar à pressa um vaporetto. Reconhece, deitado num banco, Luís II da Baviera, il re Ludovico. No pequeno hotel de Dorsoduro onde se aloja encontra uma mulher em quem deposita esperanças infundadas, pois ela afunda-se numa doença estranha, a peste que assolava Este, no quadro de Tiepolo, ou uma variante grave de gripe. Lê o livro que relata a fuga da prisão de Casanova e as reflexões deste sobre “o claro entendimento”.
Enredado em espantosas coincidências, que uma vez mais residem na forma como os textos de Ariosto e Virgílio permitem a Casanova a elaboração de um manual de fuga, o narrador embarca com um estranho Malachio, astrofísico em Cambridge. Passam em Mestre sob “a luz declinante do mundo” e, frente à Giudeca, o barqueiro mostra-lhe o Incineratore Comunale, “um bloco de betão de um silêncio de morte por baixo de um leque de fumo branco”. Então, o narrador de Sebald faz a pergunta que não o larga, a indagação que percorre, quase sempre em surdina, todos os seus livros: “Perguntei se também incineravam de noite, ao que Malachio respondeu: ‘Sì, di continuo. Brucia continuamente.’”
Alguns anos depois voltou a Veneza, de Veneza a Verona, e acabou por parar em Limone, onde se alojou no Hotel Sole, nas margens do lago, gerido na ocasião por uma tal Luciana Michelotti, de 44 anos.
O que agora vou contar ocorreu no dia 2 de Agosto, na esplanada do Hotel Sole. Voltemos ao início desta crónica. O narrador está agrupando acontecimentos da mesma ordem, mesmo que afastados temporalmente: uma mãe pestífera, uma mulher doente num quarto em Dorsoduro, o homem que vem de Viena e o mestre que vem da Alemanha, o trabalho incessante dos fornos, a prisão e fuga de Giacomo Casanova aos 30 anos. O homem escreve, consulta os seus cadernos, a escrita sai-lhe fluente. Luciana está atrás do balcão a olhar para ele, tem 44 anos e riem-se de cada vez que os olhos se cruzam. Ela aproxima-se com um Fernet e os jornais do dia, que espalha em cima da mesa, passa os olhos por uma notícia local e, em seguida, toca-lhe no ombro.
Talvez tenha pousado uma mão no seu ombro. Ele sentiu a doçura de uma mão pousada no seu ombro. Um breve instante. Um instante que mudou o mundo, aproximou os voos das andorinhas, a chuva que cai sem cessar em Dresden, desde a hedionda noite dos incêndios até hoje, em Dresden, a suavidade, a elegância, a ternura de uma mão que toca, quase toca, talvez tenha tocado o ombro.
Há uma esperança nova para o mundo. Talvez se apague o fogo nos horrendos edifícios, talvez o mal possa ser derrotado, a peste, a doença que o fez perder a mulher em Dorsoduro.


W.G.Sebald, Os Anéis de Saturno e Vertigens.Impressões, Editorial Teorema.
James Wood, A Herança Perdida, Quetzal

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