27 janeiro 2010

Pippa Lee





Vem isto a propósito do filme de Rebecca Miller que leva o nome de Vidas Privadas de Pippa Lee. Uma jóia da cultura novaiorquina chic, com Pippa, uma mulher da tormenta, entre três gerações, sobrevivente de si própria, mas refém do nadador-salvador. Vi este filme mergulhado numa sensação complexa: de estranheza, divertido assombro. Quando havia católicos de esquerda eu admirava-lhes uma expressão facial que era asssim: como se estivessem a agradecer a deus uma graça que não chegaremos a conhecer. É esta a minha cara quando vejo Robin . E também Blake Lively. E já agora Rebecca Miller. Nunca vi a minha cara nessas ocasiões. Mas se as caras traduzem estados de alma a minha devia dizer: divertimento, beatitude, tranquilidade, surpresa e agradecimento. Pelo facto de haver mulheres como estas, tão desprovidas do pensamento maquiavélico dos símios, tão recolectoras, tão excitantes, tão lindas. Mulheres que são como a música de Mozart, a pintura de Piero della Francesca, a fotografia de Lisette Model e a escrita do melhor Coetzee. Levando, como mostra a fRMN, sangue para várias partes do nosso cérebro, acendendo neurotransmissores que nos fazem sentir bons, fortes na nossa fraqueza, cúmplices daquela leveza. Com elas mundo será sempre um lugar quente e colorido, uma estrada que vai para o faroeste, para Salta, norte da Argentina.

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26 janeiro 2010

Une question – que faire ? –, une réponse: rien.


Bartlebooth décida un jour que sa vie toute entière serait organisée autour d'un projet unique dont la nécessité arbitraire n’aurait d'autre fin qu’elle même.





Pendant dix ans, de 1925 à 1935, Bartlebooth s’initierait à l’art de l’aquarelle.

Pendant vingt ans, de 1935 à 1955, il parcourrait le monde, peignant, à raison d’une aquarelle tous les quinze jours, cinq cents marines de même format (65 x 50, ou raisin) représentant des ports de mer. Chaque fois qu’une de ces marines serait achevée, elle serait envoyée à un artisan spécialisé (Gaspard Winckler) qui la collerait sur une mince plaque de bois et la découperait en un puzzle de sept cent cinquante pièces.

Pendant vingt ans, de 1955 à 1975, Bartlebooth, revenu en France, reconstituerait, dans l’ordre, les puzzles ainsi préparés, à raison, de nouveau, d’un puzzle tous les quinze jours. A mesure que les puzzles seraient réassemblés, les marines seraient « retexturées » de manière à ce qu’on puisse les décoller de leur support, transportées à l endroit même où – vingt ans auparavant – elles avaient été peintes, et plongées dans une solution détersive d’où ne ressortirait qu’une feuille de papier Whatman, intacte et vierge.


Aucune trace, ainsi, ne resterait de cette opération qui aurait, pendant cinquante ans, entièrement mobilisé son auteur.


História do homem que pintou aguarelas e delas mandou fazer puzzles, 26
A Vida modo de usar, Georges Perec

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25 janeiro 2010

Tony Judt



Dr. Gica


Quando me interessei pelo gajo dos Doors ele já estava no Pére Lachaise, já o Ian Curtis se pendurara e o gajo dos Nirvana era só a Courtney Love inconsolável. Conheci Dora Hayes, a vocalista dos FinesHerbes no dia em que lhe diagnosticaram aquele cancro fatal. Quando lia Tony Judt - os textos luminosos sobre Camus, Kolakowsky, Koestler, Manes Sperbe, Primo Levi, o estado falhado dos belgas, a vitória negra da guerra dos seis dias- ele estava a ficar tetraplégico. Ontem na Pública a carta admirável em que, rigoroso, como se falasse da sua matéria de investigação, esse homem a quem devemos tanto do que sabemos sobre o século XX, nos deixa o seu rasto, com palavras seguras- um pó no sobrado até à porta escura.

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Je puis perdre, mais je gagne toujours





[*] O Jogo de Marienbad (efeito lenticular)

Si on représente les différentes combinaisons de jeu, on voit qu'il existe un chemin (on parle de kernel : ensemble de nœuds) de coups gagnants. Ainsi, un joueur qui se trouve dans une situation gagnante et qui connaît l'astuce est sûr de gagner à la fin. Le joueur qui ne commence pas est dans le kernel (S pair) et est donc sûr de gagner quelles que soient les actions de l'adversaire (pourvu qu'il connaisse l'astuce, i.e., qu'il reste dans le kernel). Son adversaire n'a pas son destin entre ses mains. Ceci est vrai que le jeu soit classique (dernière allumette = perdu) ou non classique (dernière allumette = gagné).

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24 janeiro 2010

Recordação das mulheres de Palermo



Quando nasci a minha mãe adoeceu e alguém prescreveu a nossa separação. O meu pai organizou os cuidados à minha mãe e eu fui entregue, por motivos que nunca me foram revelados, a um tio materno que devia ser considerado, na altura, o membro da família mais disponível para a minha educação. Este meu tio era professor do Colégio Progresso, na parte velha da cidade. Tinha sido expulso do ensino oficial e ganhava a vida a dar aulas, no citado Colégio, e explicações aos filhos das famílias abastadas. Tinha uma governanta de bigodes. Nunca lhe vi outra pele que a que sobrava ao buço e lhe tingia as mãos. Durante muito tempo pensei que no mundo havia homens, como o meu tio, mulheres como a minha mãe, e seres de trabalho como a Lucília dos bigodes. Cresci na cidade, entregue aos cuidados avunculares e ao Pelargon da Lucília. O meu tio ensinou-me tudo o que sei da vida: ginástica sueca, a história do Peter Pan, a Eneida contada às crianças, o Prontuário do materialismo dialéctico, o nó dos laços de pescoço, as principais entradas da grande Enciclopédia Larousse, a matemática e a botânica. Quando achou apropriado deu-me um Billiard para principiantes e um ano depois, quando deixou de fumar, entregou-me a sua colecção completa de cachimbos. Na minha infância não houve mulheres nem animais. Quando a Lucília começou a envelhecer contrataram a Benedita, para ajudar. Tinha 14 anos e enlouqueceu os estudantes da rua, que começaram a fazer jogos florais e acabaram com tentativas de assalto, no horário escolar do meu tio. Nesse ano tive varicela e fiquei em casa uma semana, até à queda das crostas. Um sábado de manhã a Benedita foi ao mercado, comprou um coelho bebé e quando a Lucília foi visitar as amigas enfiou-se na minha cama com o orelhudo. Ficámos debaixo dos lençóis, em silêncio, a ver o muro do quintal e uma réstia de céu encoberto, até a Lucília entrar e enviar a Benedita para “onde nunca devia ter saído”. A doçura das mulheres ficou para sempre associada às doenças benignas, aos animais, à evicção escolar, ao céu nublado e à punição.

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Uma máquina narrativa combinatória


[*] quadrado greco-latino (3D)


«Um dos comensais puxou para si as cartas dispersas, deixando livre uma boa parte da mesa; mas não as juntou nem baralhou; tirou uma carta e pousou-a à sua frente. Todos notámos a semelhança entre o seu rosto e o da figura, e julgámos compreender que com aquela carta ele queria dizer «eu» e se preparava para contar a sua história.»

O Castelo dos Destinos Cruzados, Italo Calvino

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23 janeiro 2010

Eu



Tive a pele normal e hoje brilha de secreção sebácea. Visto de cima, rareia o cabelo que parece ter-se deslocado para as narinas e orelhas, numa paródia de puberdade . Tiraram-me um rim e parte do coração. Vendi a casa do bairro operário e em breve deixarei a repartição onde, durante vinte anos, carimbei selos e declarações. Os mais novos corrigem-me e depois riem-se com alacridade. Tenho grandes visões mas sou impreciso nos pormenores. Lembro-me mal do passado . O meu pai morreu e já ninguém me chama pelo nome. Porque insisto em dizer eu. Eu. Eu quê? Eu quem?

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22 janeiro 2010

Jogo de talheres


[*] quadrado greco-latino com talheres de sobremesa e colher de café para quatro pessoas


«... os quatro criados, com os seus casibeques, os seus aventais compridos, os seus guardanapos brancos e as bandejas de prata, têm de subir ao palco, alinhar diante do pano vermelho e, a um sinal do pianista, levantar bem alto a perna cantando o mais desafinado e o mais alto possível, mas em conjunto:


Jantaram bem, ora didi, ora didi, ora digam lá?
Podem agora, podem agradecer
ao noss' Didi, ao noss' Didi, ao nosso Désiré,
que tem agora p'r'of''recer,
- é p'ra já! é p'ra já! -
o melhor que há, o melhor que há!



(História do criado de café, 61

em A Vida modo de usar, G Perec)


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21 janeiro 2010

Un Coup de Dés






UN COUP DE DÉS
JAMAIS
N'ABOLIRA
LE HASARD

(Coup de Dés, Mallarmé)

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20 janeiro 2010

A Pandemia segue dentro de momentos.




Triste fim o desta pandemia. Teve tudo: prime times, conferências, editoriais, planos de contingência. Teve uma Direcção-Geral por conta, áreas reservadas de hospitais, ambulâncias, laboratórios, quarto - escuro nas creches. Foi o momento de glória de epidemiologistas e especialistas de saúde pública. Cresceu à sombra da respeitabilidade da OMS. A OMS era, das instituições a que Pacheco Pereira, na época da euforia bushista, chamou olimpiânicas, a que conservava alguma respeitabilidade. Embora a respeitabilidade deva ser reavaliada periodicamente, a OMS teve na gripe A uma prova de fogo. E chamuscou-se. A pandemia foi-se, envergonhada de tanta benignidade. Poucas vítimas – 94 óbitos, dos quais 17 sem factores de risco, poucos doentes. O Estado fez o negócio pelos particulares. Construtores civis, empresas de pré-fabricados, indústria farmacêutica, encheram os cofres. E agora? Discretamente, os hospitais desarmaram as tendas. Alguns ainda esperam uma palavra da tutela. Comissões regionais de gripe, DGS, Ministério. Silêncio. O silêncio glacial dos deuses. Em Janeiro nenhuma Orientação Técnica, nem circulares, nem despachos. Que se ouça, também ninguém pergunta. Nos países democráticos os ministros são interrogados: justificaram-se as medidas? O que se segue? Continua em vigor o estado de excepção? Normalizou-se o funcionamento das Urgências hospitalares? Os responsáveis justificam-se e a opinião pública faz os seus juízos.
Aqui, nada. Os doentes, receosos, não se acusam. Que distância percorremos desde o casal de regresso de Torremolinos, sequestrado, a fazer Tamiflu não se sabe para quê. Passaram 6 Meses. Agora, gripe tornou-se uma palavra de mau gosto, que se pronuncia como pedofilia, pobreza ou desemprego. Os doentes dizem, baixinho, que estão constipados. As zaragatoas, as máscaras e as batas adormecem nos depósitos. Regressámos à nossa ingenuidade infecciológica pré-pandémica. Tussa lá à vontade para cima de mim, sopre na sopa da menina, dê-lhe beijinhos na mão e na boca do seu amor também.

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19 janeiro 2010

A Vida modo de usar



«A arte do puzzle começa com os puzzles de madeira recortados à mão, quando aquele que os fabrica se dá ao trabalho de colocar a si mesmo todas as questões que o jogador haverá de resolver.




Apesar das aparências, não se trata de um jogo solitário – cada gesto do decifrador de puzzles foi feito, antes dele, pelo fazedor de puzzles.»

La Vie mode d'emploi, Georges Perec

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18 janeiro 2010

Depois do Haiti. Escrever.

Como é possível escrever enquanto não assenta o pó em Port au Prince? Escrevemos porque não somos sensíveis. Escrevemos – sobre a trivialidade, porque o cheiro dos mortos não nos sufoca. A história não acabou. E não são os desempregados, os sem abrigo, os sem contrato, os órfãos nos asilos, as vítimas do BPN, os que dão à costa nas praias do lado de cá do Mediterrâneo, os internados nos hospitais, as vítimas da Justiça togada, os que estão a ser educados para o martírio nas madrassas e os que estão a ser treinados para os torturar, os agricultores entregues ao programa do Portas e aos subsídios de bruxelles, esses todos que em cada momento recomeçam, da primeira casa, o jogo sem glória. A actualidade da história é um grito antigo, que vem do Terreiro do Paço e das ruas de Lisboa, um grito enorme, e depois um gemido, um lamento, uma prece, mais uma vez uma prece sem sentido. Quem solta esse bramido são os homens, as mulheres e as crianças de 1755, iguais aos seus irmãos de Port au Prince, apenas 200 anos depois, os mesmos gritos, os mesmos símios, nós, o mesmo esquecimento que já vem, na voz dos entertainers, que nos reclama para outras, nenhumas, preocupações e em breve nos vai deixar escrever sobre o luar, o sexo e o esplendor do sexo.

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Depois do Haiti. Deus.

- Comeu-se demais na terra – gritava o pai dela. Comeu-se demais e morreu-se demais. Disse o Papa que o Núncio em Port au Prince tinha sobrevivido. - Graças a deus – disse o Papa. E graças a quem morreram os outros? Graças a quem sofreram? Graças a quem ficaram assim, gente sem nome nas ruas de Port au Prince, entregues à ignomínia das câmaras e da ajuda internacional, ao cheiro da carne putrefacta, à banalidade dos corpos insepultos, dos membros amputados? Que deus é este que se invoca para a graça excepcional e se iliba da tragédia colectiva? O ridículo deus pós – conciliar, o deus dos homens cultos, um deus sem lugar num Universo pequeno demais para o esconder, um deus inútil que já não ameaça nem castiga, um deus mais insignificante que a cúria romana e o Paparmani.

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Still Life, #3





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Ajuda ao Haiti



The Foundation Beyond Belief has recommended several organizations that have received high ratings from Charity Navigator and take a secular approach to their charitable work. We are reposting their list here so that you could find organizations through which you can support Haitian relief efforts. The links will take you to the Charity Navigator page for that organization, where you can find more information and make a donation.

Foundation Beyond Belief writes: "MADRE is a small organization with a high efficiency rating and a good track record in disaster relief that does not mix worldview with its charity. ActionAid International is an outstanding organization that is efficient, non-sectarian, and works with a small budget. International Relief Teams , AmeriCares , Doctors Without Borders , and Partners In Health all receive high ratings for the secular charitable work they do."

Our hearts go out to those who are suffering in Haiti, and we are happy to put our hands to work to help the survivors. Please feel free to share this information with your local groups, friends and family, in order to demonstrate our humanistic generosity in a time of great need

nota distribuída pelo grupo Bright

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17 janeiro 2010

Still Life, #2





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Haiti. Catástrofe

Várias catástrofes se abateram sobre a República dos escravos pretos: o terramoto, a ajuda internacional e os jornalistas. Um neurocirurgião americano corre à frente de uma câmara, à procura de uma vítima. Sempre em grande plano realiza um simulacro de exame médico, debita um diagnóstico e pede à enfermeira:- Antibióticos e uma gaze. Uma equipa de socorro brasileira, ao serviço da Globo, detecta uma mulher soterrada. Os jornalistas quase bloqueiam o acesso à vítima. Uma delas estende para o buraco, no solo, um microfone. Um médico, neurocirurgião, e uma jornalista. Aqui está a aliança soturna com que se entretém o mundo, a ajuda fraterna, a lágrima no sofá. A República dos escravos pretos, que cortou todas as árvores, onde julgaram ter nascido a doença ominosa do século XX, teve agora o golpe de misericórdia, pela mão das forças do subsolo ou de um deus que já ninguém reclama. Não há, nas redacções das televisões nem nas Associações médicas, quem recorde que não exibir o sofrimento alheio é o princípio de toda a compaixão.

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16 janeiro 2010

Still Life, #1





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15 janeiro 2010

Ver nos vidros

O 59




o meu primeiro tens de adivinhar
o meu primeiro é uma lista
o meu segundo são cores
da provença
o meu terceiro é prata
nativa
o meu todo é o 59

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14 janeiro 2010

Ver no vidro

13 janeiro 2010

It's not a question of yes or no





Death comes knocking at your door
You don't have to go
Asking for
You don't have to go asking what for
It's not a question
Of yes or no
You just go, oh no
Yes
It's no, it's no use
It's no use asking them why
Just die
Regulation passing by
Frequently I have to sigh
Gonna go [2x]
Be a square
Rhombozoid or trapezoid
I don't care [4x]
Here it comes
It's already there
Sit down and die
In your favorite chair

Jandek - Just die

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12 janeiro 2010

À frente vai Toots


Samuel, Toots, Fanny

Primavera em Hampstead, Londres, no início do século XIX. É a altura do ano em que as famílias se juntam nos parques e ficam a olhar os rios como farão do outro lado da Mancha, cinquenta anos mais tarde, na Grande Jatte de Seurat. Aqui, atrás de uma sebe, em Hampstead Heath, um rapaz pobre e uma rapariga que é estilista de moda beijam-se pela primeira vez. Toots, a irmã mais nova da rapariga, procura-os. Eles levantam-se, sacodem a erva dos fatos, e aparecem. Toots dá meia volta na direcção da área pública trazendo ilesa a reputação da irmã.. Eles dão a mão. Toots volta-se e paralisa-os com o olhar. Toots continua a andar. De vez em quando pára. E eles sempre suspendem o movimento e ficam como estátuas, um rapaz e uma rapariga que dão a mão num parque de Londres, protegidos por uma miúda que sabe o que faz. O rapaz é John Keats. Já escreveu o verso que diz A thing of beauty is a joy for ever. A rapariga é Fanny Brawne cujas cartas de amor (mas não todas) serão destruídas. Toots caminha à frente deles.




Bright Star, realizado por Jane Campion. Com Ben Whishaw, Abbie Cornish, Kerry Fox, Eddi Martin, Thomas Sangster.

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André Bonirre e Januário preparando a renovação do blog (para não falar da Menina Limão).

11 janeiro 2010

Eric Rohmer (1920-2010)


Adeus Maud, Claire, Chloé, Sabine, Arsinoé...

Tiraram as calças no Metro em Alvalade


André Bonirre

Tiraram as calças no Metro em Alvalade. Silenciosamente. E continuaram a viagem. Uns liam, outros ouviam música. Outros simplesmente olhavam em frente, como se faz no Metro, os olhos pegados num ponto que não há. Ficaram assim. Com as pernas que têm e as cuecas que trouxeram. As varizes, a celulite, os pêlos, o cetim, o veludo, o mate, o brilho, a Lycra, o algodão. Não trocaram olhares. Não se devem estabelecer cumplicidades. As cumplicidades remetem para um não-dito que é ilusão, construção individual que numa hora infausta se julga partilhada e em breve é programa com prosélitos e casa montada. Deixem-se ficar assim. Olhando em frente, impávidos , as vossas pernas no Metro em Alvalade, até que o momento acaba e tudo acelera para um tempo que é já outro.

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09 janeiro 2010

O Homem Silencioso & Companhia





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Um homem e um lobo





O homem é Mark Rowlands, basicamente um filósofo. O lobo já viveu a sua vida. Chamava-se Brenin e viveu 11 anos, mais 4 do que a vida média dos seus irmãos em liberdade. Desde as duas semanas de vida de Brenin que estiveram juntos. Correram juntos, comeram juntos – e Brenin foi, durante algum tempo, pesco-vegetariano- viajaram, deram aulas numa Universidade americana!, jogaram rugby, lutaram juntos. No final da sua vida, durante uma doença particularmente repugnante, Brenin conseguiu dormir com Mark, na cama deste.
Agora Mark escreve sobre esses anos , um livro que é uma reflexão sobre o que é ser humano, primata, símio e também ser lobo. Ora acontece que Mark não se orgulha da cultura, do modo de ser e das estratégias símias. Mark contrapõe o comportamento social símio- baseado na Teoria da Mente, no maquiavelismo, no embuste, no ludíbrio, na manipulação para obter mais sexo e mais poder- à vida na alcateia. A cultura símia, onde o passado e a projecção do futuro, omnipresentes, esmagam o presente, e o ser lupino, baseado no instante, no gozo completo, integral, total, do instante. Mark não gosta dos macacos e entende-se porquê. Ao longo do livro cresce a sua admiração por Brenin e ele constrói uma moral e uma religião do lobo, para o uso de humanos como nós.
Um livro excepcional sobre uma experiência excepcional. Que tornou um homem melhor, ao mesmo tempo que o aproximou da alcateia e o afastou da horda símia.




O filósofo e o lobo, Mark Rowlands, lua de papel, 2009

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07 janeiro 2010

Hoje muda a hora n A Natureza do Mal



Hoje muda a hora neste blog. Muda a cara. Muda o modo.
Não falamos mais de política- se política for a guerra do alecrim e da manjerona, da agenda dos partidos sistémicos, como diz o insano da ilha.
Não falamos mais de literatura. Os livros arderam de vez e as chamas dos livros não iluminaram o mundo.
Este blog é anti humanista, isto é, considera que o homo sapiens é uma desgraça evolutiva que não merece nenhuma consideração especial e deve ser tratado com as suas armas: a mentira, o disfarce, a traição, o engano, a bomba de napalm, o voto popular, o noticiário da televisão e a sodomia.
Este blog não tem valores: valores têm os banqueiros, os prestamistas, os encapuçados e a Isilda Pegado.
Este blog não tem nenhuma tradição, nenhum futuro. Este blog só aspira ao presente.
Este blog não vai cortar os pulsos, nem aspira à sagração da imprensa, nem ao Panteão da Cinemateca.
Este blog não se vai fazer explodir, nem trinta virgens o esperam no céu alteromundista.
Este blog só tem uma ambição: que uma vez ao menos, um breve momento, passes os olhos nas palavras ou nas imagens vertidas. E logo te esqueças. Tu, lobo, loba, tu.

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06 janeiro 2010

Lhasa no TAGV



Ela é uma menina. Um duende na clareira. A sua voz é um espelho velado. Ela erra pelas estradas da memória. Foi ao Líbano, de onde o outro saíu, expulso pelo desamor de um pai. E a Marselha, porto de chegada. Ela canta em castelhano, uma emoção. E em inglês, as histórias do filósofo: Soon this space will be too small. Gosto mesmo quando canta em francês. Já não estamos habituados a ouvir estas coisas: Je me sens coupable /Parce que j’ai l’habitude/ Je garderais/ Pour me guider/ Plaisir et culpabilité. E quando convocou todos os que se sentiam culpados para cantar o refrão, foi consolador ouvir o TAGV em coro. Também não espantava. Estavam lá todos. Até a rapariga loura do acaso da rua lá estava. E ela, a Lhasa: Sur la marée haute/je suis montée/ La tête est pleine/ mais le coeur n’a/ pas assez. Era assim que nos devíamos sentir sempre. É por isso este post(umo).


09 Julho 2004; Arquivos deste blog

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05 janeiro 2010

Rapaz em San Telmo




Leio Breve História da Argentina de Jonathan Brown (livros Prometeo). Depois de muitas voltas chego às perseguições da última ditadura (Junta militar de Videla, 1976). A coberto do Processo de Reorganização Nacional (o Proceso), brigadas de detenção compostas arbitrariamente por 6 a 20 torcionários ( as patotas), entravam de noite em casas das vítimas que constavam das suas listas , detinham as pessoas e saqueavam os bens. Móveis e objectos de valor apareciam à venda no mercado de San Telmo. Homens, mulheres e crianças desapareciam, depois de torturados.
Histórias terríveis, como as de outros momentos em que se suspendeu a razão e hordas de sádicos tiveram impunidade e uma justificação ideológica ou religiosa. Leio esta narrativa com o mesmo estado de espírito com que o ano passado li as das perseguições estalinistas. Paro sempre à borda da aniquilação moral. Nenhuma evocação, nenhuma manifestação de repúdio pelos algozes e de simpatia pelas vítimas, nenhum apuramento dos factos e punição dos responsáveis pode resgatar as vidas que se perderam.
Há anos, quando ouvia ou lia estas descrições, havia em mim um certo apaziguamento. Parecia-me estar a tomar posse de um conhecimento colectivo. De crimes que pertenciam a um passado que nunca mais voltaria, à pré-história dos homens e das mulheres actuais. Essa gente, à qual eu passara a pertencer no momento em que acedia a este saber eram os construtores magníficos de um mundo que viria. Eram bons, belos e instruídos e esperavam apenas a sua oportunidade para tornar o mundo como eles. Além disso, tornada colectiva, a memória reparava de certo modo as vítimas, retirava a glória aos vencedores e manchava-os de opróbio.
Leio agora a História da ditadura de Videla em grande solidão. Os jovens envelheceram, outros jovens vieram e o mundo mudou. Aquilo que leio, a história breve que Jonathan Brown escreveu, é como se fosse uma mensagem pessoal. Mesmo que lida por milhares é agora, para mim, para cada um de nós, uma mensagem pessoal. Calar-se-à comigo, connosco. Um saber imprestável, sem interesse para quase ninguém. Em breve parte de um arquivo morto que não impedirá nada, não melhorará ninguém, não impedirá nenhuma matança futura.

Breve Historia de la Argentina, Jonathan Brown, Prometeo Libros, Buenos Aires 2009

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Cartonera em Palermo

San Telmo

San Telmo

Colónia do Sacramento

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Confiteria Ideal