31 março 2008

Avô Arnaldo




70 anos. Felizmente, esquecemos.

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31/03/08

Um post :
Avenida do Uruguai




Um livro





e uma pequena esperança



para começar uma semana.

30 março 2008

Um Pacheco pré-metacínico


Antony Gormell


O artigo do Público de José Pacheco Pereira de hoje é instrutivo sobre os limites do debate político. Durante a semana a posição de JPP sobre o Iraque tinha sido invectivada de vários lados, particularmente por Rui Tavares (excelente artigo no Público de terça-feira). Hoje JPP cria uma nova categoria para legitimar as acções dos líderes políticos. Não é necessário que se conformem com a realidade. Basta o autoconvencimento. Não interessa que o Iraque detivesse ou não meios bélicos especiais. Bastava que Bush, Blair, Aznar ou o futuro Barroso disso estivessem convencidos. O convencimento dos líderes democráticos é um critério suficiente para decidir a guerra e a invasão de um país soberano, à margem das instâncias de mediação internacionais. Pacheco, que é um dos poucos apoiantes da invasão anglo-americana que ainda não reviu totalmente a sua posição de há cinco anos, começa a sua crónica com uma teorização maquiavélica sobre a boa e a má mentira para depois nos apresentar esta sua teoria pré-metacínica. A teoria não é perfeita. Fica por explicar como é que o convencimento da detenção iraquiana de armas de extermínio semelhantes às dos aliados ( e da aliança entre Saddam e Bin Laden) se baseava em informações tendenciosas e selectivas dos serviços secretos americanos. E fica por responder uma questão fundamental: e se os líderes democráticos do Irão se convencem de que os USA, o Reino Unido, a França, detêm meios de extermínio massivo, sei lá, a bomba atómica, e decidem invadir-nos?

ver também aqui.

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Tibete




A seita autista que arrasta o nome do Partido Comunista Português manifesta algumas peculiaridades. Uma delas é o estranho desinteresse pela sorte da classe operária chinesa: já não falo em horários de trabalho, direitos sindicais, regalias sociais mas de coisas básicas que lhes preexistem e têm a ver com a dignidade da existência. A outra é a política de dois pesos duas medidas quando se fala de povos oprimidos. A sorte do povo do Tibete não lhe merece nenhuma comiseração. O comunicado do PCP sobre a actual vaga repressiva no Tibete envergonha qualquer ser decente. A este propósito a leitura dos comentários do Arrastão é instrutiva.

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Crítica literária



José Eduardo Águalusa considerou Agostinho Neto um poeta medíocre, como o Francisco José Viegas relata (ver também Rui Bebiano). O Jornal de Angola discordou. Se Águalusa me ouvisse, gostava de lhe dizer que não acho prudente discutir literatura com gente que tem tantos argumentos.

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Ev'ry time we say goodbye


Annie Lennox


de cada vez que acabamos de ler um livro é como se morrêssemos um pouco. como na música de cole porter.
estou a arrumar os papéis de 20 anos a ensinar literatura —se é que a literatura se pode ensinar. papéis (imensos), pesados dossiers pouco elegantes onde repousarão por tempo indeterminado notas, críticas, extractos e comentários das aulas que dei e vendi durante 20 anos. provavelmente não acrescentei nada à vida dos que me ouviam. não acrescentei com certeza senão não estaria agora a ter que arrumar estas folhas. sofremos o fim da história da literatura, sofremos e bebemos teorias mais ou menos niilistas da morte da arte, desde hegel que nos atordoamos com a paragem da história, a morte da arte, do autor, da personagem, do leitor, já morreu tudo o que por vezes ressuscitou ao terceiro dia, e agora temos a paragem cardíaca da literatura. não da criação literária, mas do ensino da literatura, da possibilidade de se falar de livros com letras impressas que nos contam histórias de outros seres vivos, que nos põem a nu o que sentem ou pressentem humanos como nós. livros que têm cheiro e peso e ocupam espaço (muito) e ardem e se perdem e envelhecem e são comidos por larvas (não obrigada).
a minha empregada que diz que não quis continuar a estudar porque era muito nervosa e não aguentava o que lia, preferia saber menos do mundo e viver regradamente entre a fábrica onde começou a trabalhar aos 14 anos e a casa de renda económica dos pais, de onde nunca saiu. não queria saber o que está nos livros e não compreende como posso eu estar a ler até às 5 da manhã para recomeçar ao acordar. pensa, no seu nervosismo do mundo, que não pode haver nada de tão importante nos livros. nada que nos possa salvar. senão já teríamos sido salvos.

tudo isto porque arrumo o escritório e mudo de profissão sem mudar.

//sent by Rosaarosa

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28 março 2008


27 março 2008

Larvas não , Obrigado.



ÉProPó, Lda.

Pentecostes


Pipiloti Rist


Estou a beber um vinho muito bom e a pensar que quem mo deu não volta a dar nada parecido assim. Nunca poderei descrever o vinho que bebo, porque detesto falar de qualidades organoléticas, estágio em casco de madeira, aromas de frutos vermelhos, tintos afirmativos e encorpados , espessos e gordos, ou dos taninos afinados que escondem o toque floral da bergamota. O léxico interior da vitivinicultura é tão irritante como o do futebol ou da medicina. Concordo que este tema não tem interesse, literário ou outro. Mas pareceu-me que tinha. Hoje de manhã reparei que não havia andorinhas no céu. Apesar de ser primavera, quase Abril, Pentecostes . Agora que saboreio este vinho, vejo as luzes da periferia da cidade, a zona a que chamavam o Alto dos Barreiros, a Cumeada, os vagaluzes da serra da Lousã., penso de novo que isto talvez faça sentido. Penso em ti Amélita, quando perguntavas porquê, porquê, no dia em que o teu homem caiu fulminado, tão violentamente que a autópsia relatou uma fractura na escama do temporal e no rochedo, ossos duros e difíceis de partir. Perguntavas porquê e não era o relatório da autópsia que querias, artérias entupidas em territórios desconhecidos. Querias outra coisa. Tinhas aquilo a que John Gray chamou a doença humana, a necessidade de atribuir significados.
Ontem de manhã, no quiosque dos jornais, à hora do almoço, uma mulher aproximou-se e fez-me uma pergunta verdadeiramente surpreendente. O meu filho- disse ela- se lhe mostramos filmes ou fotos em que ele aparece em pequeno, desata a chorar. A mulher era magra, com o cabelo curto e pintado de ruivo, embora acredite que a pergunta possa ser formulada por morenas de seio farto. O miúdo, agora com 9 anos, chora em silêncio, afectando um desgosto profundo, de cada vez em que se reconhece infante. Ela quer saber se é grave, se se deve preocupar e porque é que existe tal comportamento. Perguntas de mais para aquela hora da manhã.
Há um momento de grande reconciliação com a falta de sentido de tudo. Um momento em que nos vemos de fora e as luzes das eólicas, as janelas iluminadas na Cumeada, nas casas das famílias do Alto dos Barreiros, a ausência das andorinhas, o monge budista de Lhasa que escreveu no papel deixado à Clara uma frase que ela não sabia ler, e depois fugiu, tudo isso, se inscreve num mundo que é perfeito, por nada fazer sentido e tudo se equivaler na sua sem-razão.
Eu sei que esta sensação, estas imagens, este bem-estar é mais devido à estimulação cerebral pela anóxia de uma zona que não vou nomear para não afectar conhecimentos que não domino, uma metalinguagem tão irritante como a do vinho.E este saber, irritante para ti, Amélita, não diminui a intensidade da sensação, nem a sua deliciosa inutilidade.

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25 março 2008

Pra quem pergunta, admirado, "tu vês a sic radical?!"

"Este jovem é o que se chama um homossexual.
Em Inglaterra há pessoas que são heterossexuais.
Eu sou bissexual.
Na minha idade não se pode ser picuinhas."

"A Pequena Grâ-Bretanha" de Steve Bendelak


//sent by sms Rosaarosa

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Se casares, Amélita



Amélita se te fores casar, camarada, não denuncies o pasteleiro, não dês nomes Amélita, o oferente desse vestido que te cai tão bem nos ombros e nas ancas, Amélita não lhes fales das flores, não bufes Amélita, não chibes o fotógrafo, o fogo de artifício, os charutos, a música, o catering, a limusina, a animação. Eles vão querer listas, Amélita. Não houve convidados, não houve quintas nem restaurantes. Não houve bolo de noiva, nem os talheres bateram nos pratos, nem choraste, nem pensaste que ias ter de dormir toda a noite e todas as noites da tua vida com este rapaz assustado, Amélita. Se te fores abaixo, Amélita, não assines as declarações prestadas.

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20 março 2008

Dia do pai


Anna & Bernhard Blum

Hoje vou de comboio, para sul que é de onde vem a tempestade. É lá fora que está muito frio. Aqui dormem quase todos. Se há mulheres não é nesta carruagem. É dia do pai, um desses dias cruéis para quem não tem pai, nem filhos que se lembrem. Um homem tenta segurar a cabeça como as crianças que julgam que vão morrer se adormecerem. O serviço púlico passa o Eládio Clímaco e num instante chegamos à inclemente estação que o Calatrava deixou a Lisboa. No regresso reconforto-me com a crónica do MEC, tão bonzinho o MEC já com uma perna nova. E depois com palavras simples. Como folar, tão próxima da infância, tão próxima de um follar sem censura nem outra consequência que a mútua diversão. Não há música no comboio de regresso. Se houvesse seria uma área de La Walli. Esta divagação foi, no entanto, interrompida por uma voz que pede um médico. Pede-se um médico à carruagem bar. Eu levanto-me. Atravesso três carruagens e embora tropece, os passos parecem decididos. Abrem-me portas. Peço informações ao revisor. Foi um miúdo que se sentiu mal. Está no chão, pálido, a tremer. Ajoelho ao seu lado. Seguro-lhe no pulso. É das poucas coisas que sei fazer. Segurar no pulso, procurar a artéria que bate no pulso. Contar. Perder a conta. Voltar a contar. Perguntar coisas simples. O miúdo está em pânico. Quer saber porque é que treme assim. Eu quero saber quem é ele. De onde vem. Com quem está. Que fez durante o dia. Quando é que se sentiu assim. Para onde vai. De que cor são os seus olhos míopes. Onde está o pai dele. Digo-lhe para não respirar assim. Digo-lhe para não ter medo. Lembro-me do meteorologista que vi de manhã e digo-lhe:- Estamos a afastar-nos da tempestade. A caminho da cidade de Bernardim Ribeiro. Foi do que me lembrei. - Bernardim Ribeiro. Um homem que inspira confiança. Estamos a caminho de casa. Em casa está o teu pai. Se não estiver, está a chegar. Há-de chegar, o teu pai.

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18 março 2008

Do crepúsculo da Europa



Bem me parecia que dali não podia vir felicidade. Para além de quase só
conhecerem o cinzento e os tons desmaiados do sol da meia noite, os
pobres-ricos dos finlandeses falam aquela língua rude que pudemos ouvir e na
qual o sentido de humor não parece estar muito à vontade. Ou melhor, eles
até têm algum sentido de humor, mas dizem tudo com uma cara tão séria que só
nós é que nos rimos. Bem, sorrimos. Estariam a dizer mesmo aquelas coisas
que líamos na tradução? Se calhar aldrabaram-nos...
A língua é que os trama. Não bastava o clima e a distância que enterra 1/4
do seu território acima do círculo polar ártico o que já de si é a imagem do
inferno, ainda têm uma das línguas mais lixadas da europa. Lixada mesmo,
porque parece lixa na madeira.
Imaginem só que o finlandês é da família das línguas urálicas (o que, para
começar, não augura nada de bom) e não entra nessa vastíssima caldeirada do
indo-europeu (tal como o basco que parece uma língua de onomatopeias e
cliques infantis trazida por Ets).
Mas isso ainda é o menos!
O pior é que tem 15 casos! 15! Alguns com designações e funções mais ou
menos parecidas com as do latim ou do grego clássico, mas outros
verdadeiramente extraordinários!
É o que acontece com o caso ESSIVO - caso do adjunto adnominal de parte - e
cujo uso linguístico mais parece uma dor abdominal. Têm também casos com
nomes arrepiantes como o INESSIVO, ELATIVO, ILATIVO (nem me atrevo a dizer
quando e como são usados - esperemos que eles próprios, os casos, o
saibam...).
Mas os campeões ex aequo são, sem dúvida, o caso ADESSIVO, sim adessivo,
(adjunto adverbial de lugar externo - que é onde eles, finlandeses, todos
queriam estar: dali para fora), e o caso ABESSIVO - adjunto
adverbial/nominal de ausência, exactamente meus amigos, de ausência,
imaginem que têm um caso para a ausência e a que puseram um nome que resulta
do cruzamento entre abcesso o obsessivo! E isto pronunciado em finlandês que
ainda deve soar mais abessivo. Era o mesmo que termos em português o género
masculino, feminino e género saudade, por exemplo, ou, género improviso...
Para compensar tanta ausência, solidão e vontade de dar de frosques, têm um
caso COMITATIVO (de companhia, um complemento de dama de companhia, enfim -
e têm também a NOKIA) e o caso INSTRUTIVO (de instrumento, que me parece
mais interessante pelas possibilidades sexuais que insinua).

Para remate, a cereja em cima do bolo, ou melhor, do gelado: nos verbos não
há tempo do futuro! Estava-se mesmo a ver que eles não têm a ideia de
futuro, não sabem se lá chegam, com tanta tristeza e tanta indiferença de
uns pelos outros. Ali é que se vive verdadeiramente a sentença salazarista
do "ninguém sabe o dia de amanhâ!"
Em contrapartida têm 4 modos verbais ditos "populares" e um outro, o
EVENTIVO, que só aparece no KALEVALA, o poema épico dos finlandeses. Este
eventivo é para a eventualidade de alguém querer escrever a continuação dos
"Lusíadas" lá do sítio. Inventam bem, inventam.

Fiquei foi um bocado abalada com o facto do finlandês ter 4 formas para o
infinitivo! Eu que tinha tanto orgulho em termos, muito acima das outras
línguas mais próximas, 2 infinitivos que são tão difíceis e inúteis de
explicar aos estrangeiros que estudam português e aqueles sacanas dos lapões
batem-nos aos pontos com 4 infinitivos! Não sei como vou dormir hoje com
este desgosto linguístico.

Bom, confesso que me diverti mais e ver estas coisas na net do que a ver o
filme, mas também não iria à net fazer uma consulta sobre a língua
finlandesa senão fosse o filme. Entretanto, pelo sim pelo não, vou passar a
evitar o nome de Aki Kaurismaki. Uso o caso EVITISSO.

Ps: Fui à sala e está o Graça Moura há horas a vociferar contra o acordo
ortográfico. Apesar de suado e com os dentes negros de tabaco a precisarem
de uma urgência ao higienista, apesar do ar apopléxico de quem salva os
"Lusiadas" a nado, bem pode o homem dar-se por contente: se o acordo fosse
para uniformizar o finlandês (suponho que o do norte, sul, este e oeste da
Finlândia) haveria de se ver grego. E pelo aspecto dele, pouco apolíneo...

Boa nôte!


/sent by Rosaarosa

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17 março 2008

Pedro Mexia na Cinemateca



Pedro Mexia é o novo sub director da Cinemateca. A nomeação é do novo Ministro da Cultura e a sugestão, segundo o Público, partiu de João Bénard da Costa. A este jornal, João Bénard declarou que lembrou-se de Pedro Mexia para subdirector por ele «ser de uma geração mais nova, o que é muito importante». A observação é finíssima e mostra que era justa a petição que há três anos assegurou a continuidade de Bénard da Costa na direcção do cargo, apesar de ter ultrapassado o limite de idade.
Que Pedro Mexia tenha as maiores felicidades, que faça um bom trabalho, nos dê bom filmes e que este cargo público o não envelheça.

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Olá, Luigi/Lucchino/Loduvico!

Ainda bem que não postaste aquela coisa dos engenheiros e arquitectos. Era
tão privado que só tinha interesse para 3 ou 4 pessoas ao contrário das
letras habituais que interessam a 6 pessoas.
É o que dá não comer e não beber: fica-se sem interesse nenhum. O ramadão
termina amanhã, graças a buda!

Ps: és dos que já foram aos arquivos da PIDE, dos que dizem que não têm
tempo para lá ir ou dos preferem não saber por ser passado enterrado?
E o Bonirre terá lá ido? Devem ser curiosas as RDA News...

Um beijo anacoreta (isto é, uma ideia de beijo)
R.




//sent by Rosaarosa

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John Gray e os ateus evangélicos

Este fim-de –semana no Guardian, John Gray, um dos meus pensadores fascinantes, investe contra Dawkins, Dennett e os filósofos ateus que têm animado a recente polémica sobre as religiões. Eu concordo com o anti humanismo de Gray e a denuncia que ele faz do antropomorfocentrismo, que continua a impregnar o pensamento contemporâneo. Também acho que ele sacrifica por vezes o rigor à tentação polemista. Mas o artigo, que já tinha sido aqui referenciado pelo António, é muito estimulante.
Primeiro porque John Gray cunha, para os novos ateus, o epíteto de ateus evangélicos, querendo dizer que eles provêm da cultura cristã e acreditam no poder salvífico e universal das suas ideias. Depois, porque acho que tem razão quando diz que não foi só a fé religiosa a grande responsável pelos massacres contemporâneos e que os ateístas esquecem a repressão secular levada a cabo por Mao, Hitler e Staline, Pol Pot e o regime da Coreia do Norte. Finalmente, quando escreve

There is a deal of fashionable talk of Islamo-fascism, and Islamist parties have some features in common with interwar fascist movements, including antisemitism. But Islamists owe as much, if not more, to the far left, and it would be more accurate to describe many of them as Islamo-Leninists.


De John Gray vai ser editado em paperback na Penguin, em Abril, Black Mass: Apocalyptic Religion and the Death of Utopia

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16 março 2008


As Wilson Sisters

Jorge Coelho cometeu ontem a proeza de recuperar a famosa metáfora estalinista do calhau. A nossa unidade monolítica, disse Coelho na sua maneira directa e simplória: quando toca a doer estamos unidos que nem uma pedra. Unidos que nem uma pedra, como Campos e Pires de Lima em volta do líder seráfico, no centro do Pavilhão, os sacrificados do jogo democrático, os que foram apeados para que nada mudasse, para que Lurdes Rodrigues, força força companheira Lurdes, mas sobretudo os bons invisíveis, pudessem continuar.

A frase da semana


George Grosz



Eu defendo um projecto de mundo e eles outro.


Abel Pinheiro
(Expresso 15.03.08)

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14 março 2008

Son qual nave ch’agitata


Peter Henri Emerson


Da ópera Artaserse , Johann Adolf Hasse e Riccardo Broschi

Acabou um inverno enorme, longuíssimo, que parece ter durado vários anos de pesadelo gelado como a travessia da estepe russa e Lara perdida.
Três longos anos a tiritar sem nos atrevermos a olhar para fora do nosso corpo com receio de quebrar os ossos mais íntimos.

Agora, nos primeiros dias de primavera, a qualidade do ar, os cheiros intensos e adocicados que estalam por detrás da papilas, a espessura da luz, o embalo dos gestos mais afoitos e dançantes, a especial vibração do vento morno em carícias firmes, a ondulação do ar que se desdobra diante dos nossos olhos, pela longuidão do dia até à serenidade levemente ébria do fim da tarde, tudo é um hino à facilidade de viver, a essa coisa simples e firme que é a certeza dum pôr-do-sol seguido de uma noite cálida e de um nascer de um novo dia radioso.

Tenho esta nostalgia eslava perante a sagração da primavera.


sent by//Rosaarosa

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Arrumar as botas


Peter Henri Emerson


À noite ao descalçar as botas
ouço nas ruas as vozes das raparigas.
Não volto a calçá-las tiro o edredão
arrumo a roupa de Inverno nas arcas
espalho as bolas de naftalina nas gavetas
que vão guardar a roupa do Inverno
limpo a salamandra e penso o que vou fazer
à lenha que sobrou
o que vou fazer aos cronistas do Inverno
aos livros do Inverno aos sentimentos
que me entulharam o peito do Inverno
às notícias dos vossos amores desavindos
ao silencio dos amigos que partiram
aos pratos de substancia do Inverno
à fluoxetina e aos betabloqueantes e aos outros
medicamentos do Inverno aos peixes mortos
às galochas às manchas de sangue nos lençóis
aos filmes do Inverno aos políticos
e aos padres do Inverno à ciência
e à filosofia do Inverno
Agora que chegaram os junquilhos amarelos
te levantas para o primeiro comboio
da manhã e viajas sempre para o Norte
e nas ruas se ouvem as vozes das raparigas

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12 março 2008


Qi Zihlong


O estranho caso dos dois irmãos ruminantes
animou a minha tarde
Houve também Amélia debruçada
no pomar
espalhando os fertilizantes
no pomar
E ainda a votação do sindicato
de enfermagem
pouco participada por sinal
Não vi ninguém votar
e as membras da mesa liam Alice Vieira
enfastiadas e diziam assim não vai nascer
nas nossas filhas o amor da leitura

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10 março 2008

A dificuldade do silêncio





Guardar silêncio,

utilizar o silêncio como instrumento de comunicação, o silêncio absoluto, não uma pausa entre as frases, um espaço entre sons, mas uma ausência que dura,

é uma tarefa difícil.

Como é que sabemos que está lá?
o que se calou. Como é que sabemos
o que quer dizer o seu silêncio?
O mesmo que ontem? O mesmo
que queria dizer quando se calou?
Ou mudou? Ou quer falar
e não pode, não consegue? Quer falar
e não sabe? Quer falar
e secou a garganta? Ou está a falar
e não ouvimos? Está a falar
alto demais
e o seu grito confunde-se
com estes barulhos a que chamamos
o seu silêncio?

David Chalmers, filósofo e neurocientista, faz meditação com um método cuja indução consiste em dizer uma palavra até ela perder qualquer significado. Assim alguns silêncios que começam fortes e percutem as têmporas e parecem insuportáveis se vão esbatendo, até serem um sussurro, o eco de uma palavra, o vento lá fora. O problema de um silêncio que dura, é que só uma voz, uma frase escrita, um som, uma aparição o podem desfazer. Falta a palavra que mereça um silêncio assim. Falta a cor, o cheiro, o gesto, a nota.


(imagem retirada da National Gallery, YBA's)

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Duas Histórias


Cornelia Parker

Há um diálogo entre Ryszard Kapuściński e John Berger em que o polaco diz que havia , até meados do século XX, uma história da humanidade, e depois duas: a real e a que os media constroem. A segunda é construída por jornalistas ignorantes e preguiçosos, num clima de concorrência desleal pelas audiências. Eu não sei o que seja a história real. Não tenho nenhuma visão de conjunto da humanidade. Ás vezes, quando ouço Vattimo dizer que existe um sentido para a história e que esse sentido é a diminuição da violência, tenho umas breves epifanias. São como as abertas nos dias de Inverno. Sabem bem, mas não confiamos e sabemos que não vão durar. Além de não ter nenhuma visão geral também não tenho nenhuma visão particular. Acho as pessoas, em geral, muito sérias, muito preocupadas em perceber, em arranjar razões para coisas tão simples e saudáveis como protestar contra a tirania dos iníquos, passearem juntas, encher as ruas com os seus corpos enquanto vivas. A manifestação dos professores, já que falamos disso, foi óptima. Juntarem-se, irem de excursão à capital, falarem uns com os outros, darem os braços, vestirem roupa simpática, dançarem, comerem juntos, inventarem canções, tudo isso é estimável. Não era preciso gritarem os slogans da organização. Não era preciso o Mário Nogueira, o Paulo Portas, o Louçã. Mas talvez o Kapuściński tenha razão. No meio dos professores, entre o frango e as conversas do autocarro, numas mãos que se tocam de forma especial, talvez esteja a verdadeira história. E o Nogueira, o Portas e o Louçã talvez sejam, afinal, a história contada pelos jornalistas preguiçosos.

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07 março 2008

Sms da hora do almoço (irmãs bronkê)

T. Vai haver um colóquio sobre a agustina, onde será apresentado o livro
"Da plurivocidade vocabular em agustina aos galimatias do medialecto."

R.E não se pode exterminá-lo? Chamem o governador da califórnia!
Calling all cars! Calling all cars!

R. Essa fica ex aequo com um naco saboroso que tenho aqui de reserva:
"dinâmica metamórfica e impura de uma ana-prolepse catacrética"- não digo de
quem é sobre quem é, nem sob tortura de leitura da obra completa à
desgarrada do farsolas e de el saramago.

Pronto, está bem, digo: é do fernando guerreiro sobre a adília lopes.


//com rosaarosa

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Cinco horas


Jenny Saville


É a hora em que os verdugos obtêm confissões
e em que a noite parece não ter fim
Quando no sétimo círculo os infelizes
pedem água e os demónios
lhes dão líquidos sulfúricos
E nenhum pássaro se atreve
Nenhum sonho embala a humanidade
Nem os peixes imóveis dos aquários
E o empresário tem a morte
natural conveniente
E as putas da ajuda da noite
voltam a casa e os filhos parecem inocentes
parecem dormir parecem ter
futuro

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04 março 2008

sms rosa

Eu sei que num país com uma longa tradição racista como os eua vai ser presidente primeiro um negro e não uma mulher. É mais fácil um camelo passar pelo buraco duma agulha do que uma camela entrar pela porta da frente da casa branca. Só pela mão do marido.

sent by sms //rosaarosa

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Maria Gabriela Llansol



Ler o texto da Alexandra Lucas Coelho aqui

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Trash


Zhang Huan

Apagamos as mensagens
apagamos e apagamos
para onde vão estas
mensagens que se não deixam
apagar
estão no sétimo círculo estão
onde se vê a nova
beleza de Beatriz estão
no céu das crianças
que se perderam
quando as apagamos
o lixo do lixo
volta sempre

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03 março 2008

Os livros ardem mal com RAP



Hoje às 18h no TAGV, os Livros Ardem Mal com Ricardo Araújo Pereira.

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02 março 2008

Três: No quarto à espera



O homem está no quarto de um hotel de El Paso. Um quarto no fundo de um corredor. O homem foge de uma perseguição implacável. Leva consigo, sem saber, um transmissor que o denuncia. De noite o homem não dorme. De noite, à hora da noite em que todas as coisas se simplificam, o homem percebe tudo. Mas já não vai a tempo. Sabe que o outro já está perto. Já está no corredor iluminado que leva ao seu quarto, vai entrar pela porta, vai vê-lo nos olhos. É esta pequena vantagem que o anima.

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Dois: Atrás do homem vai o cão

O homem não consegue dormir. Deixou um moribundo à sede e vai levar-lhe a água que lhe negou. Deixa a pick up no alto da estrada e faz a pé o mesmo trajecto da tarde, até ao círculo dos mortos. É o fim da noite castanha dos desertos do Novo México. O traficante está morto, não precisa de água. De repente o homem percebe que não está sozinho. No topo, onde deixou o carro, brilham as luzes potentes de outro carro e ouvem-se, indistintas, as vozes de outros homens. Em breve descerão para ele. Ainda está a tempo de se esconder, de fugir, de disparar a arma que traz consigo. Tem os movimentos presos. Vê as luzes que se aproximam, ouve as vozes. Protege-se atrás da carroçaria de uma van e depois, já ferido, foge. Corre, entre as balas. Corre tão depressa que nasce o dia, uma luz crua antes do sol. Corre à frente das balas, à frente do cão que vai ser largado. Corre até à água, mais profunda do que parece, a água salvadora, a correnteza da água do Rio Grande. Atrás do homem vai o cão.

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Um


Eric Ogden (Time)


O caçador furtivo disparou e falhou o tiro. O antílope tremeu nas patas mas rodou sobre si próprio e conseguiu acompanhar os outros, ao longo do deserto, uma sombra que se dissipa como as nuvens. O caçador calça a bota em que apoiou a arma e desce para o descampado. Há sangue na areia e ele segue-lhe o rasto com um binóculo. Esperamos ver um antílope em dificuldades, que se atrasa do bando. E de repente, por breves instantes, vemos outro animal. Está ferido, afasta-se, voltando para trás um olhar acossado. É um cão dos traficantes de droga da fronteira. É o diabo das representações medievais, vai voltar, sem pescoço, vai voltar, a sua baba, a sua determinação silenciosa, a bocarra que abre no pórtico da igreja de Saint Trophime de Arles, nos túmulos de dom Pedro e dona Inês, conhece o cheiro das nossas roupas e vai voltar.

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No aniversário do Público

Se o Público fosse um jornal decente tinha uma crónica com o Super Psico Sá. O homem tem uma voz que para mim não funciona. Mas na tarde em que o conheci ele, perorava ele para um auditório onde pontificavam algumas mulheres com ar de commitment do santo Graal e eu deixei-me embalar. Era como se tivesse perdido quase todas as reservas da razão masculina e estivesse ali, no doce enleio de uma canção que engana. Não gostei dessa minha fraqueza. Mais tarde encontrei-o num auditório de tias reaças, variante santanista, e o homem foi reaça. Era a época em que as tias santanistas levantavam bem alto o pau da bandeira e ele fê-las sentirem-se bem, deu um alento às suas convicções. Lembro-me de um jeito especial de embrulhar um produto reaça em papel da ideologia levezinha. Aí percebi. O Super Psico Sá tem um sentido agudo das audiências e fala para as audiências. É um Zeilig que quer agradar. Especializou –se em falar para as mulheres. Tal como as mães desenvolveram os agudos cantantes com que falam para os infantes assim ele aperfeiçoou aquele tom enjoativo entre o divã e a sessão hipnótica. Usa-o para tudo. Alguém disse que era assim que os motários lêem a literatura dos rótulos de vinho, num jantar mais requintado. Como está sempre a falar, às vezes concordo com o que diz. Consolo-me pensando que é uma questão de probabilidade.

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