26 julho 2012

Somos Todos Expressionistas Austríacos



Anselm Kiefer, Man under a Pyramid, 1996


Eric Kandel nasceu em Viena em 1929, onze anos depois da queda do Império dos Habsburgos. Cresceu numa casa de Severingasse, perto de três museus. O Museu Médico de Viena, a casa de Freud e o Museu Belvedere. No Museu Médico de Viena conheceu o trabalho de Rokitansky. Com outros médicos famosos, Rokitansky, um anatomopatologista a quem alguns creditam a realização ou acompanhamento de mais de 100.000 autópsias, criou a medicina científica dos nossos dias, baseada na correlação clínico-patológica e na melhor evidência disponível. A Escola Médica de Viena foi, na segunda metade do século XIX, o centro da Medicina, ponto de partida de novas especialidades e pólo de atracção de várias gerações de estudantes de todo o mundo, muitos dos quais se viriam a destacar nos seus países de origem. Sigmund Freud foi o fundador da psicanálise. Mas foi igualmente quem primeiro chamou a atenção para a sexualidade infantil e o papel do inconsciente na percepção humana. Formulou uma teoria da mente e teve a ideia de que a psicologia científica teria de resultar do conhecimento do cérebro e do seu funcionamento. O Museu Belvedere é um bom local para se conhecer o movimento artístico que ficou conhecido como Expressionismo austríaco e que teve em Gustav Klimt, Oskar Kokoschka e Egon Schiele a máxima expressão. O que ligou uma Escola médica, a ciência da mente e o Expressionismo foi, para abreviar, uma cidade e um Salão. A cidade era Viena 1900, Viena fin de siècle, a capital cultural da Europa, nessa altura com dois milhões de habitantes e uma densidade nunca depois repetida de mulheres e homens talentosos e com bom aspecto. O Salão era o Salão de Berta Zuckerkandl. Adele Bloch-Bauer, imortalizada no quadro de Klimt. Hugo von Hofmannsthal e o romancista e dramaturgo Arthur Schniztler, que alguns acreditariam ser um nome literário de Freud . Gustav Mahler e Alma Mahler. O arquitecto Walter Gropius e Alma Mahler. Oskar Kokoshka e Alma Mahler. Wally e Egon Schiele. O filósofo Wittgenstein. Os arquitectos Adolf Loos e Otto Wagner. O cirurgião Theodor Billroth. Estes e outros, mais ou menos célebres, poetas e pintores, jornalistas, filósofos, estudantes, músicos, fotógrafos, médicos, investigadores, confluíam na Universidade e nos cafés, nos teatros e nas tertúlias dos salões. O salão dos Zuckerkandl era um dos mais célebres. Emil foi colaborador de Rokitanski, professor de Anatomia e uma das fontes de Klimt, talvez responsável pela viragem que o transformou de pintor inspirado em líder da Secessão, criador de um estilo fundado numa interpretação actualizada da biologia, da psicologia freudiana e das ciências médicas. Berta, a mais brilhante das mulheres de Viena, nas palavras de Johann Strauss o filho, era jornalista e crítica de arte e manteve o Salão em funcionamento cerca de 50 anos, até à anexação nazi da Áustria e à sua fuga para Paris. O Salão dos Zuckerkandl permitiu aquilo que hoje é condição e essência do conhecimento: a multidisciplinaridade, o encontro, conhecimento e confronto entre investigadores das mais distintas áreas, estes unidos pelo Modernismo, Freud e o fascínio pelas profundidades. Klimt e Schiele morreram no ano em que a gripe pneumónica acabou o serviço da Primeira Guerra Mundial e varreu da face da terra entre 20 a 40 milhões de pessoas. Freud teve de se exilar para Inglaterra onde acabou, entre a cocaína e o pior dos sofrimentos, vítima de um cancro desfigurante. A família de Eric Kandel também teve de deixar Viena, quando o fascismo austríaco tornou impossível a vida dos judeus. O pequeno Eric, com 8 anos, havia de crescer em Brooklin, estudar história e neurociências, psicanálise e biologia molecular, o sistema nervoso de um animal modesto e depois o nosso, a memória e os seus circuitos cerebrais. Em 2000, na sequência de um reconhecimento global, recebeu o Prémio Nobel da Medicina. Muitos anos antes em Boston, comprara uma litografia de Kokoschka, de uma série de retratos de adolescentes. O historiador de arte Ernst Gombrich disse-lhe um dia que Kokoschka era o maior retratista dos nossos tempos. Com Emile Zuckerkandl, neto de Berta e Emil, biólogo em Stanford e residente em Palo Alto, recordou as inúmeras notas que possuía do Salão. E ao longo de uma vida impar foi escrevendo um livro, The Age of Insight, o mais ambicioso de todos os livros, que parte da Viena de 1900, da arte em que se exprimiu a emoção inconsciente e que tinha atrás de si a psicanálise, para a psicologia cognitiva e a biologia da percepção visual e da resposta emocional à arte, através dos dados mais recentes das neurociências. Tudo isto numa linguagem correcta mas simples, criando a ilusão de que afinal estes temas centrais são acessíveis a todos, mesmo os que os Curadores e os epígonos de Damásio enxotaram das suas áreas reservadas. Um monumento de 32 capítulos, centenas de notas, comentários e referências bibliográficas excitantes, lindíssimas reproduções dos Expressionistas austríacos e das suas influências, incluindo o Beijo de Klimt e a quase paródia de Schiele, a boneca de Kokoschka , A rapariga e a Morte ou A noiva do vento. The Age of Insight: The Quest to Understand the Unconscious In Art, Mind and Brain, From Vienna 1900 to the Present , Eric R. Kandle, Random House, 2012 Este texto foi escrito a 17 de julho, em 67 minutos, esperando homologação na campanha conhecida como”dia de Mandela”.

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19 julho 2012

Beijos nas cartas



Erwin Blumenfeld Untitled c.1950


 publicado no jornal i (suplemento LiV)

No princípio era um beijo. O primeiro beijo. No ginásio, na última fila do cinema, na escada do prédio. Ela tem de passar pelas graçolas dos rapazes, quase sempre boçais, a pele baça dos rapazes, a palidez, ou pior, o sebo à espera do acne, os cortes da gilete, os bilhetes ridículos. Ele não merece. Nunca merece. Onde quer que uma rapariga beije um rapaz está uma criança a ser beijada por uma mulher. Uma criança blindada que quer experimentar, saber, coleccionar. Lábios em sangue contra lábios de cimento. A história começa mal.

Ele quer saber. Ela sabe. Ele tem os olhos abertos. Ela ensina-o:

- Fecha os olhos. Tens de fechar os olhos. Não se beija com os olhos abertos.

Mas como se aprende com os olhos fechados? Nunca tivera, durante tanto tempo, um rosto tão próximo. Sente-se bafejado pela sorte, premiado. Não sabe o que fazer ao bem que lhe coube. Não percebe como conseguiu aquilo. Desconhece o que se vai passar a seguir. É mentira que haja um livro de instruções gravado nas células. Quer ver a cara dela para lá das pálpebras azuladas. Quer sentir. Mas não consegue sair do banco do anfiteatro, da lente do microscópio, da mesa anatómica. Não sente nada, não percebe nada, ignora as cenas dos próximos capítulos. Tem de passar por aquilo.

- Batoteiro- diz ela. Fecha os olhos.

Havia duas mulheres na vida dele. Teresinha e Daisy. Teresinha era a sua noiva. Tinha anel de comprometida e tudo. Mal conhecia Daisy. Ela trabalhava na sua Companhia e, desde que estavam em open space que se viam todo o tempo. Daisy escrevia e desde há algum tempo que lhe deixava uns textos para opinião crítica. Não lhe desagradava aquela correspondência. Eram pequenos textos em prosa poética. Hesitava em formular uma opinião. Precisava de mais tempo, mais material. Talvez ela tivesse tido sorte naquelas formulações. As imagens eram certeiras mas podiam fazer parte de um repertório limitado. Ela não demonstrava pressa e a ele agradava-lhe esse vagar. As folhas de Daisy iam-se acumulando na gaveta da sua secretária e assim decorria o noivado com Teresinha.

Adorava Teresinha. Comprava-lhe queijadas ao sábado, sempre que lhe pagavam. A certa altura ela deixou de apreciar. Então ele beijava-a no pescoço, porque ultimamente os seus lábios lhe fugiam.

-Você está doente, Teresinha? -perguntava. E ela:

-Doente não. Estou-me sentindo estranha.

A escrita de Daisy era a de alguém que está-se sentindo estranha, mas que gosta.

Beijo, é assim que acabam algumas mensagens. O que deve ser diferente de beijo, com minúscula. As mulheres não deixam nenhum pormenor ao acaso. beijo e Beijo são, seguramente, coisas diferentes. E como é sabido há beijos, assim no plural, e beijinhos, beijinhos grandes e haverá seguramente beijitos, beijões e beijocas. E haverá Um beijo que se adivinha solene. E bj, b., beij, bjinho e o plural disto tudo.

E como já foi observado há agora quem se despeça sem se tocar ou aproximar, dizendo:

- Beijinhos- já de cara virada e a caminhar .

Olha para a estante dos seus escritores favoritos. J.M.Coetzee: quase um beijo em Summertime, na entrevista de Margot, quando fazem o circuito da quinta e a Datsun se avaria. Essa é a noite em que uma intimidade de uma ordem diferente estava escrita nas cartas (1). Mas ele é slapgat, frouxo, invertebrado e acaba por adormecer no ombro dela.

Segundo os chatos dos psicólogos evolucionistas o beijo, tal como o esfregar dos narizes dos esquimós, é um momento importante do conhecimento íntimo. Em que as mucosas se tocam, o cheiro é apreciado e através deles o estado de saúde e a qualidade dos genes. No ritual de acasalamento, o beijo é uma das estações que se seguem à apreciação visual e da voz.

Nos textos de Daisy há uma história assim, passada num país asiático, entre uma mulher local e um europeu. Encontram-se por acaso, todos os sábados à noite, nas escadas de um prédio em cuja cave se vende comida. Um dia a mulher abraça o homem ou consente que ele a abrace. A cena repete-se todas as semanas. Podem permanecer assim algum tempo, de pé, abraçados, imóveis, com as limitações da dimensão das escadas e dos sacos de comida nas mãos . Mas não o beija, nem se deixa beijar. Ele aprecia. Percebe que no código dela o beijo é interdito. Essa interdição, e a inesperada facilidade com que se deixa abraçar, levam-no a pensar que esse comportamento é, de certa forma, um elogio do beijo. Um hino silencioso ao beijo. Como não entende a língua dela e ignora os costumes, tem de avançar às suas custas. Sente-lhe o corpo, procura-lhe os lábios. Ela foge com o rosto. Julga que foi rechaçado e larga-a, ela abraça-se a ele. Acredita ouvir-lhe um gemido e tenta outra iniciativa. Ela não consente. Até que se deixa ficar assim, entre excitado e confuso, pensando que esta mulher é como o seu país e alguma poesia. Não precisa de compreender. Não faz nenhuma ideia do que significam. Basta-lhe gostar.

Lembrou-se de Rilke nos Cadernos de Malte. Era mais ou menos assim: Chamei pela minha juventude e ela voltou, e sinto que continua a ser tão difícil como outrora e que de nada serviu ter envelhecido.

(1) But tonight an intimacy of quite another order is on the cards

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18 julho 2012

Os pés das Filhas de Marília





publicado no jornal i (suplemento LiV)

Como qualquer outra pessoa apercebo-me de que muitas mulheres usam agora, nos meses de verão, os pés nus. A exposição desta parte do corpo pode, seguramente, ser observada a partir de diferentes pontos de vista, alguns dos quais me escaparão completamente. Ela foi tornada possível com o desenvolvimento dos cuidados especiais podológicos, da indústria do calçado e da ideologia pós feminista: cremes dedicados, utensílios especiais de higiene, exfoliação , vulgarização e acessibilidade aos pédicures, podologistas e podiatras e, por outro lado, produção de belos exemplares de sandálias que conciliam a nudez com a actividade profissional da mulher. A exposição do pé nu em sandália constitui uma notável afirmação cultural e biológica da mulher libertada. Sendo o pé feminino mais pequeno do que o masculino a acentuação dessa diferença constituiu, no passado, um sinal de feminilidade que, em alguns casos assumiu aspectos trágicos. Durante mais de mil anos as crianças e adolescentes chinesas de alta linhagem foram submetidas a uma tortura metódica e sistematizada até obter uma deformidade podal incapacitante, apelidada de Lótus Dourado. Na versão original de Cinderela, as filhas da madrasta não hesitaram em decepar o halux para que os pés coubessem no ridículo sapato que o príncipe reservava à futura rainha. António Lobo Antunes, na Explicação dos Pássaros, um livro de 1981 que podia ter-se chamado Casei com uma Comunista ( e suicidei-me), descreve assim os pés de Marília : nunca topei com pés tão grandes…, de unhas achatadas e largas, semeados de gretas, pés de palmípede na outra ponta do lençol, (p29) ou, pés enormes de camponesa, de dedos muito afastados, quase róseos (p 101) . Marília, filha de um guarda republicano, uma mulher de poncho vermelho e socas veementes, em oposição à Tucha da Lapa, a primeira mulher, cujos pés pequeninos nunca são descritos.


Ora o que as mulheres contemporâneas fizeram foi recusar essa redução. A palavra de ordem passou a ser: pé em sola rasa. Liberto da contenção do calçado mas sabiamente exposto, sem fungos nem bactérias, o pé feminino tornou-se uma zona preferencial de representação de feminilidade, independência e elevado estatuto.

O pé envelhece menos que o pescoço ou o ventre. O tónus dos músculos das pernas e dos pés conserva-se mais tempo e o facto desta zona do corpo ter menos tecido subcutâneo preserva-o de rugas e laxidão. As manchas senis são mais fáceis de ocultar. Como o escrutínio dos pés não é tão fácil, as mulheres menos jovens mantêm mais tempo uma aparência juvenil nessas zonas do corpo.

Gosto das mulheres capazes de usar sandálias rasas. Antes do mais dão uma saudável prova de confiança. Em si próprias e nos cidadãos que com elas partilham a existência. Depois mostram a escrupulosa higiene. Finalmente assinam um manifesto de feminilidade pós-biológica. Vejo que qualquer pequeno defeito lhes é perdoado e por vezes objeto de ternura especial. Como se a revelação de uma imperfeição suscitasse compreensão e afecto, mais do que afastamento ou reprovação. O neo-pé feminino pode ser grande. Os tornozelos estreitos, com maléolos bem salientes. O dorso do pé desce em declive não excessivo e adivinham-se algumas veias e tendões. A arcada plantar está bem marcada, quase cava. A parte anterior do pé pode alargar, mas só ligeiramente. Os dedos de tamanho decrescente, do primeiro ao quinto. As unhas ovaladas. O quinto dedo conserva uma discreta abdução, quando o pé recebe o peso do corpo, se apoia e prepara o impulso. O pé ocupa a sola da sandália e apenas esta, nem mais nem menos. A pele está ligeiramente bronzeada, ou pelo menos não lembra o inverno e a pele das galinhas.

Encontrando-me há uns tempos envolvido no estudo dos pés das mulheres tive de fotografar alguns exemplares para uma exposição. Tinha de procurar pés que pudessem ser expostos sem desencadear nenhuma reacção especial. Nem exercício erótico nem anatómico, nem gabinete de podologista nem anúncio de sapataria. Tinha de ser alguém que não fosse nem excessivamente jovem, para não permitir a mínima sugestão pedófila, nem demasiado idosa para afastar leituras sobre o envelhecimento ou a melancolia. A maior das limitações era obviamente o reduzido número de mulheres que eu conhecia nesta faixa de opções, a forma de solicitar a sessão fotográfica e, sobretudo, as prosaicas questões logísticas para a levar a cabo.

A minha primeira escolha recaiu em Carmo. Tem 27 anos, é saudável e não confundiria o meu pedido com a tentativa canhestra de obtenção maiores favores. Pedi-lhe mesmo assim:

-Preciso de fotografar os teus pés. Sim, os pés. Só os pés. Com alguma urgência, nos próximos dois dias.

Ela pareceu concordar. Só estaria disponível no segundo dia. Mas talvez pudesse, ao fim da tarde. Como estávamos no verão, o fim da tarde reunia ainda condições para poder fotografar com luz natural. Artur, o meu fotógrafo, não poderia obviamente estar presente. Deu-me demorados conselhos sobre iluminação, fundos e dificuldades que iria encontrar. Disse-me para treinar. Com quaisquer pés. Achei a última sugestão deselegante. Não se treina com nenhum pé, nem isso é coisa que se possa pedir. Irritado, Artur disse:

- Treina com os teus e com um espelho.

Nessa altura lembrei-me de que não tinha nenhuma ideia precisa de como eram os pés de Carmo. É uma loura interessante mas não me lembro de alguma vez lhe ter visto os seus pés. Presumo que são lindos, ou a reacção teria sido outra. Ou isso é indiferente, para as filhas de Marília?


(continua)





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13 julho 2012

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02 julho 2012

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