25 novembro 2011

24 novembro 2011

23 novembro 2011

A direita e a esquerda na caça ao snark






Publicado no jornal i de 9de novembro. Hoje, no mesmo jornal leia "Quando desaparecemos".


Pensei que podia ser útil escrever sobre a esquerda e a direita. No Governo Sombra, um programa da TSF, Pedro Mexia perguntou, retoricamente:
- Que há de comum entre José ...Lello e José ...Mário Branco?
Querendo com isso significar o vasto leque de registos , todos eles reclamando-se da esquerda, que podemos encontrar entre os nossos contemporâneos. Implicitamente, para Pedro Mexia , e provavelmente para José Mário Branco, não faz sentido procurar o mínimo denominador comum entre estes dois Josés, esse quid que seria a marca da esquerda. E não pode deixar de ter significado o facto de Pedro Mexia, tão cuidadoso na metáfora, ter escolhido o nome José, o obscuro carpinteiro do catecismo , como o nome do homem de esquerda. Zé-Ninguém, Zé dos Anzóis, o nome que depende do sobrenome e com ele adquire as inúmeras variações atribuíveis à esquerda. Mais tarde foi André Freire, num debate, quem disse que quando ouvia alguém declarando que não sabia a distinção entre esquerda e direita sabia que estava face a uma pessoa de direita. Antes dele, muitos anos antes, alguém tinha dito o mesmo e a dúvida sobre se uma verdade podia durar tantos anos fez-me estremecer.
Vi logo que poderia ser complicado escrever sobre um tema assim.
- É verdade- disse o coelho- porque não falas antes sobre as estações do ano?
Não é fácil a escolha. Aí está outro tema que suscita igualmente paixões e desesperos. Os partidários do verão nunca se reconciliarão com os do inverno. A primavera é a estação mais insuportável , desde o Romantismo. E o outono foi definitivamente capturado pelos anúncios das companhias de seguro e do viagra.
Agora que , com o aquecimento global, o outono e a primavera desapareceram, o tema das estações do ano já nem na creche é desprovido de risco.
- Isso e muito mais- disse a raposa.
Voltei a perguntar, numa reunião de família. A morsa declarou que a esquerda era a consciência ecológica, menos a Helena Apolónia. O esquilo disse que em cada momento sabia reconhecer o que era ser de esquerda. Mas a toupeira perguntou se o vinho que se servia, um Quinta de Falorca de 2004, era de esquerda ou de direita.
- Ser de esquerda é uma questão ética- disse o grilo.
- Estética – berrou a rã.
A morsa disse que não discutia o tema com os herdeiros das deportações , da dekulakização, das grandes purgas. O esquilo respondeu que era necessário comparar o Livro Negro do comunismo ao do capitalismo. Eu pensava que uma morte chegava e a morsa confirmou que, da perspectiva do morto, todas as mortes são equivalentes.
Sentada num canto, a raposa disse que não percebia porque é que a esquerda era obrigada a beber vinhos rasca, a vestir camisa aos quadrados e a passar férias entre o parque de campismo de Monte Gordo e Varadero, Cuba . A morsa afirmou, solene, que o ruído de funcionamento do motor do Porsche 911 era um hino às capacidades humanas, à perfeição da indústria automóvel e ao desafio tecnológico. Nesse sentido o Porsche 911 representava simultaneamente um valor de esquerda e de direita, dado que o preço o reservava às elites económicas mas não lhe retirava a componente de desafio aos atributos divinos.
- Já o Roger Vailland dizia que o ballet só floresceria entre a aristocracia e o comunismo- disse o primo fuinha, que até aí tinha estado calado.
- O Vailland que se fôda- insurgiu-se a marta. O Vailland sabia lá o que era o ballet-
- Devemos fazer uma pesquisa séria- disse a morsa. E começou pela Wikipedia. Escreveu “esquerda” e a resposta veio enviesada. Escrita por alguém de direita.
A direita é geralmente conservadora. Mas há uma esquerda conservadora. E a direita que tomou o poder em Portugal é revolucionária, está a destruir o pacto social do pós-guerra e utiliza o estado para o fazer.
- O pato social, é o que ela quer destruir. Comê-lo com uma arrozada- comentou o grilo que está sempre com apetite.
- Não me venhas com a reforma ortográfica- retorquiu a morsa. É de mau gosto. Não sei se a reforma ortográfica é de esquerda ou de direita, mas as piadas sobre a reforma ortográfica são como as metáforas futebolísticas. Não se aguentam, de fatelas.
Pensei que acabaríamos a escrever pakto com kapa, hipercorrigido, para não nos confundirmos com o pato assado. E lembrei-me desta história que o professor esquilo conta com mais piada do que eu:
- O bento faz mal às binhas- disse a rapariga. E depois de ser corrigida, confessou:
- Olha a porra. Claro que sei muito bem que é vinhas e vento. Mas acha que me vou fazer de fina em frente da turma?

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22 novembro 2011

21 novembro 2011

A Bem da Nação - «Governo vai devolver mais de 15 hospitais públicos às misericórdias»







"a actividade das misericórdias [que hoje gerem 18 hospitais] mais do que duplicará", Manuel Lemos, o presidente da União das Misericórdias Portuguesas (UMP)

"A gestão [das misericórdias] não é a do Estado. Se ficarmos com toda a gente, no fundo gastamos o mesmo", responde


“Hoje é um dia histórico"



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17 novembro 2011

Vozes no deserto: «Mas ter de ouvir funcionários, sei lá, de quinta ou sétima linha, não eleitos democraticamente, virem cá dizer o que temos de fazer... Por favor, poupem-me.»







...
«Eu gosto muito de ouvir o nosso Governo... Gosto muito de ouvir o sr. ministro das Finanças: ele é muito mais brilhante, mais competente e tem mais sentido de humor que os senhores da troika», Fernando Ulrich



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16 novembro 2011

Sindicatos e Comissões de Trabalhadores e Governo não estiveram reunidos pela noite fora







Banqueiros e Governo estiveram reunidos pela noite fora
O encontro entre os presidentes dos quatro maiores bancos privados – BCP, BES, BPI, Santander Totta – o primeiro-ministro e o ministro das Finanças teve início ao final da tarde e prolongou-se até altas horas da madrugada.



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15 novembro 2011

«Em geral, os Romanos acreditavam que os augúrios vindos da direita eram desfavoráveis e os vindos da esquerda, favoráveis; os gregos o oposto. E os Celtas?»






Roubini
Portugal "é um caso perdido" como a Grécia.

Álvaro Santos Pereira
"2012 certamente irá marcar o fim da crise."

Negócio do ouro já tem 5 mil lojas em Portugal.



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14 novembro 2011

Huntington no Salão || 6ª feira 21:30 salão brazil Coimbra





 



CONCERTO ANAQUIM 

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA 



[as receitas revertem para a Associação Portuguesa Doentes de Huntington]

 

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11 novembro 2011

O Coelho Branco






Costumávamos sentar-nos naquela mesa do fundo do café à hora em que aparecia o Coelho Branco. Não, não era bem assim. Era na esplanada, quando estava sol e a decisão de ir à aula da tarde enfraquecia. Nada disso, foi só uma vez, na Senhora da Fraga, ao fim do dia, quando nos sentámos os três a ver as escarpas que se abriam sobre o rio Côa. Sei, porque guardo a fotografia. Estás lá tu, de cara afogueada e o nosso guia a consultar os mapas. Devia ter-te beijado nessa hora, em que os beijos faziam o coração pulsar a 170 e nenhuma ave nos distraía. Talvez te tenha beijado. Os teus olhos , o modo como me sentava e o alheamento do nosso guia anunciavam qualquer coisa. Ou foi quando me levantei para ver os cavalos selvagens, semi selvagens sim, e o nosso guia dobrou o mapa e te abraçou, tão inesperadamente que não podias senão corresponder àquele avanço. Aliás, se te debatesses despenhavas-te, e tu nessa altura tinhas, mas nem sempre, eu sei, uma vertigem que surgia nas mais inesperadas situações e uma noite te fez cair nas galerias do velho Convento , quando o adaptaram a enfermaria, durante a epidemia da cólera que assinalou o regresso das doenças quase extintas. Esperávamos pelo Coelho Branco. O do Carrol claro, nas velhas ilustrações , um coelho vitoriano de fato e colete, zangado sabe-se lá com quê, um coelho que a miúda nos anunciara inesperadamente no fim de uma consulta. Não, não foi assim. A menina tinha três anos e não parava de falar da Rainha do Cocas. E de repente perguntou-me:
- Não tens medo do... Coelho Branco?
Ou simplesmente:
- E o... Coelho Branco?- e era a entoação, o modo como ficou quieta esperando a minha reação , que mostravam o medo que ela tinha do Coelho Branco
- O Coelho Branco aparece e desaparece muito depressa - explicou a mãe da miúda. Ou o pai, enquanto a mãe sorria. E tu entraste nessa altura no gabinete, procuravas a lâmpada frontal, ouviste a parte final da frase e sem interromper a tua busca disseste com voz de Gato das Botas:
- O Coelho Branco já vai sair. Só está à procura de uma lâmpada que alguém levou do meu gabinete.
A miúda fingiu que se assustava:
- Brrr, o Coelho Branco- disse ela.
- Brrrrr, o Gato das Botas- disseste tu.
E foi a partir desse dia que passámos a esperar o Coelho Branco no café, naquela mesa que estava sempre reservada aos viteloni, por desistência tácita dos estudantes mais normais, ou na esplanada, se fazia sol, ou na praia de S. Martinho, quando começava o bom tempo, ou nas escarpas da Senhora da Fraga , onde eu, ou foi o nosso guia, inesperadamente te beijei, meu Gato das Botas, a saudade que eu tenho de te beijar assim?

09 novembro 2011

O parafuso milimétrico


O filme é de um romeno chamado Radu Muntean e passa atualmente numa sala de Lisboa. No início, um homem e uma mulher conversam, deitados numa cama. Nem os seus corpos, nem nada do que dizem é particularmente interessante, merece ser filmado e exibido como objeto artístico. Depois, seguem-se 19 longas cenas da vida quotidiana. O cenário é Bucareste, mas talvez pudesse ser qualquer cidade europeia. O homem é bancário. Uma das mulheres é médica-dentista e a outra advogada. Há também uma criança que vai iniciar uma correção ortodontica e é ligeiramente irritante. São todos ligeiramente irritantes, vendo bem. Imperfeitos, como se lhes faltasse qualquer coisa. Perfeitos, por milagre ortodontico, hão de ser apenas o maxilar e os dentes da criança. A criança por vezes parece engraçada, para logo chafurdar no enjoativo consumo barbie. As casas são quase confortáveis, o restaurante onde jantam é quase acolhedor. Uma das mulheres podia ser bonita e a outra quase nos enternece. Está frio, mas não muito. O homem está em grande sofrimento, segundo diz, mas suporta com razoável indiferença os soluços da mulher que vai deixar. O homem está de partida. Mas a nova mulher para quem parte, não se apressa para o receber. No meio de tudo, omnipresente e insidioso, como se fosse o símbolo da infidelidade masculina, está um telemóvel. É a presença da outra, onde quer que o homem vá, a caixa preta para onde ele sussurra na casa de banho pública, pesada como a arma de um crime. Manchada de sangue, do seu sangue culpado. Um sangue que se agarra à pele, não se lava, suja a camisa e o casaco, deixa marcas indeléveis na roupa e nas toalhas. O homem e o telefone são só um. Como a nudez da mulher de quem se diz que é jovem. Ou a cegueira da mulher-esposa. Ou a inconsciência da criança. Ou a impaciência e a rispidez dos velhos.
Não se passa nada. Ninguém diz nada que recordemos, uma hora depois. Ninguém solta uma gargalhada límpida e embora se chore, nenhuma lágrima é insuportável. Fala-se uma língua incompreensível de que os falantes de línguas latinas podem reconhecer algumas palavras ou ressonâncias. E, pelas conversas, apercebemo-nos de que o país onde isto acontece pode ter fronteiras com a Áustria ou com a Itália. A única casa com livros é a da mãe da mulher jovem, fora de Bucareste. Os livros são velhos, de capa dura. Foram lidos há mais de uma geração. Esta não tem referências literárias. No cinema da nouvelle vague francesa havia silêncios assim. Mas era um silêncio eloquente. Aqui, tudo o que acontece a esta gente, é em primeira mão, intransmissível, a-histórico e aliterário.
A sala onde o filme é projetado está habituada a estas insignificâncias. Os espetadores saem, silenciosos. São meia dúzia e, embora seja sábado, parecem os desocupados que vagueiam pelas sessões da tarde nos dias de semana. Nenhuma troca de olhares, nenhum brilho. Ninguém ficou para os créditos. Ninguém procurou as criticas que o exibidor, diligente, afixou nas paredes. Ninguém veio pelas estrelas, nem coteja a sua classificação com as dos críticos. Acabou ali a coisa rasa que nem chegou a acontecer.

Dizem que o cérebro dos homens é sedento de significados. Que segrega porquês, desde a primeira infância. Que tenta, a todo o custo, estabelecer nexos de causalidade, não apenas entre acontecimentos próximos, mas afastados e cuja relação é improvável. Nesse sentido este é um filme notável. Não apenas por se debruçar, sem ênfase, sobre a vida de homens e mulheres sem qualidades, mas sobretudo por não nos permitir qualquer possibilidade de identificação ou empatia.
E no entanto, sob a opacidade da superfície, alguma coisa se move, como a vida das paramécias. Na cena mais longa e mais conseguida do filme a mulher amante, médica-dentista explica, com grande cópia de pormenores, a lógica da intervenção que irá fazer à criança. Os interlocutores são o pai adúltero e a mãe, a mulher que ainda não sabe. No meio está a criança, reclinada e de boca aberta, naquela posição com que os dentistas neutralizam os clientes. A mulher está desatenta, aturdida pela minúcia técnica da explicação. A sequência é complexa, exasperante e ainda por cima interrompida por um telefone que toca, como agora está sempre a acontecer. A mulher que vai estragar a vida da outra propõe-se corrigir um defeito impercetível da estrutura orofacial da filha. Vai pôr na boca da miúda uma prótese metálica e apertar todas as semanas um parafuso milimétrico.

Terça, depois do Natal é um filme de Radu Muntean, em exibição no Medeia King


Publicado no jornal i em 2 de novembro de 2011 Hoje leia A Esquerda e a Direita à caça ..., no mesmpo jornal

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Carta da Associação Portuguesa de Bancos ao comissário Olli Rehn compara as regras do acesso à linha de capitalização às nacionalizações de 1975.

Governo e bancos em braço-de-ferro mas de braço dado.



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08 novembro 2011

O cravo e a ferradura







Ricardo Salgado: «Proposta sobre recapitalização pode ser "ajustada"».

«Não existem alternativas a este plano de austeridade» - Ricardo.

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07 novembro 2011

Não havia fim-de-semana, não havia férias, não havia feriados, não havia tão pouco pontes






«Para esse Moiral ... não havia fim-de-semana, não havia férias, não havia feriados, não havia tão pouco pontes em nenhumas circunstâncias», lembrou.

Para Cavaco Silva, «esse Moiral é o exemplo do trabalho que é preciso realizar para conseguir vencer e isso deve ser recordado nestes tempos difíceis que temos à nossa frente».

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04 novembro 2011

«Só vamos sair desta situação empobrecendo»






O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, assinou um despacho clarificando que basta que uma qualquer sociedade subafiliada esteja sujeita a IRC para que a distribuição de dividendos por uma SGPS à cabeça fique isenta de tributação.

 
[O sector financeiro entre 2000 e 2010 distribuiu mais de metade dos seus lucros em dividendos aos seus accionistas. Foram mais de 6 mil milhões de euros.]



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02 novembro 2011

Um gosto moral






O livro chama-se Homens em tempos sombrios. A edição portuguesa, da coleção Antropos da Relógio D' Água, vendia-se por 3 euros, há alguns anos, nos saldos que as editoras organizavam em algumas cidades. Como a edição é de 1991 os leitores devem ter sido, infelizmente, escassos. Na capa uma fotografia da autora, Hannah Arendt, numa reprodução de má qualidade. Não devia ter mais de 35 anos, nessa altura. Gosto dos olhos dela. Da metade sombria da sua face. Do contraste entre os lábios, que talvez se vão abrir para um sorriso e a tristeza infinita dos olhos. As mulheres de quem gosto têm muitas vezes este rosto.

Hanna Arendt escreve curtas biografias iluminando fragmentos das vidas de homens e mulheres apanhados na vertigem do tempo entre as duas guerras de extermínio do século XX. No caso de Rosa Luxemburgo, a execução em Berlim, num dia de janeiro de 1919 que inaugurava o triunfo da barbárie.
O texto sobre Rosa Luxemburgo é inspirado numa biografia de J.P. Nettl (Rosa Luxembourg, Oxford University Press, 1962).
É nesse livro, que Hannah não se cansa de elogiar, que surge a maior descoberta de Nettl, o grupo de iguais, judeus polacos, de cultura alemã, cujos padrões morais, na vida pública e privada, eram exclusivamente seus. Esses judeus, uma minoria extremamente reduzida, não pertenciam a qualquer categoria social, judaica ou não judaica, e assim escapavam a preconceitos convencionais, tendo criado nesse isolamento magnífico, o seu código de honra próprio. O denominador comum oculto desses que sempre se trataram como iguais- sem estender o tratamento a mais ninguém- foi a experiência basicamente simples de um mundo infantil em que se tomavam como pontos assentes o respeito mútuo e a confiança incondicional, uma humanidade universal e um desprezo quase ingénuo pelas convenções sociais e étnicas. O que os membros do grupo de iguais tinham em comum era aquilo a que podemos chamar gosto moral, algo muito diferente dos princípios morais- conclui Hannah Arendt.

Um gosto moral comum que nos permita tratar por iguais- que programa!
Por vezes parece-me fácil : quando vejo os manifestantes deste 15 de outubro, com quem desci uma avenida de Coimbra, por exemplo. Com alguns partilhei a infância. Outros são tão jovens que a trazem ainda consigo. E há na manifestação crianças e policias barrigudos, mostrando que apesar de tudo se confia na democracia. O pacto social foi rompido há pouco e nas cidades de província ainda não houve tempo para aplicar as novas diretivas. Só alguns jornalistas, pedindo sangue, mostram que já perceberam os sinais do tempo. Mas estes ruídos não me distraem da bondade da tarde. Um sol que acaricia, uma cidade deserta, ocupada por gente simples, que ainda não sabe desfilar. Não há agora, nas cidades de província, um lugar que represente o inimigo, onde se possa entregar um protesto ou uma petição. A Câmara parece fechada para sempre. A esquadra da polícia perdeu a cor e confunde-se com as ruínas de uma torre que há 70 anos autoimplodiu. O governo civil foi extinto. Os bancos estão fechados e parecem descapitalizados. É como se a cidade tivesse perdido simultaneamente os seus habitantes conformados e o poder culpado. E este fosse um senhor feudal longínquo, que se conhece pela passagem frequente dos coletores de impostos e uma aparição ritual nas cerimónias laicas. Ficam então estas caras que hoje parecem mais graves e com quem partilho um gosto moral. O senso moral, uma das Boas Fadas de Steven Pinker, que na História lutam contra a violência, mas melhorado porque cresceu desordenadamente com uma inseparável dimensão estética. Com alguns e algumas partilho Bon Iver e Mark Lonegan, com outros Neil Hannon e os Divine Comedy, com outros ainda, Watchmen, de Alan Moore and Dave Gibbons, Sangue do meu Sangue, a poesia de Ruy Belo, uma fotografia de Daniel Blaufuks. Um gosto moral. Agir como se acreditássemos que os olhos de alguns gatos viram deus, que a água, o ar e a terra são bens comuns, a propriedade é um roubo e devemos procurar a beleza ou pelo menos a ideia da beleza. Nunca nos resignaremos ao destino de Anna Karenina, nem perdoaremos aos que guilhotinaram Olympe de Gouge. Não seremos culpados do pecado original e venderemos sempre a alma pela sabedoria, ao diabo ou à FCT. Não esqueceremos que os inocentes penavam até há pouco no Purgatório, Dreyfus foi condenado mas batemo-nos pela sua reabilitação, Bartolomeu de las Casas descreveu, para nossa redenção, as atrocidades do colonialismo e ainda não reparámos a humilhação do Gungunhana exibido na capital do Império.

Rosa foi presa e levada da prisão para um destino atroz. Conduzida pelos fanáticos do Korpsfrei num carro, através das ruas geladas de Berlim, foi torturada, baleada, agrilhoada e atirada ao canal Landwehr. O cadáver só reapareceria seis meses depois e apenas no final do século se percebeu que o governo fora cúmplice dessa ignomínia.
Hannah Arendt disse de Rosa Luxemburg que, se ela não se tivesse afastado das suas origens, abandonado os Iguais, não teria ficado tão desarmada nesses tempos sombrios.
Temos de nos reconhecer, trocar sinais e de nos apoiar com abrigo wireless, alimentos, vinho, e iPads da última geração.

Publicado no jornal i de 20 de Outubro. Ler hoje a crónica O parafuso milimétrico.

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