31 março 2005

AFAGOS EM MARCHA

Se já desenrosco em movimento a tampa da garrafa e bebo pelo gargalo sem me engasgar, descasco e como com asseio amendoins potencialmente afrodisíacos, se visto uma camisola por causa do frio ou a tiro por outras razões, viajo até Viseu com a mão no joelho e depois na perna dela, agora, com o novo Código da Estrada e as contra-ordenações brutais pelo uso do telemóvel para meros afagos auriculares, aperfeiçoei-me na escrita de SMS’s sem tirar as mãos do volante.

André Bonirre

30 março 2005

Coetzee

Quando Coetzee tinha 19 anos saíu da Africa do Sul para ser poeta. Algum tempo depois ele destruiu todos os poemas que tinha escrito excepto um. Esse poema chama-se O Pescador de Lagosta Português:

As mulheres dos pescadores de lagosta
já se acostumaram a acordar sozinhas agora,
há séculos seus maridos pescam ao raiar da aurora;
mas é o sono delas tão agitado quanto o meu.
Se se foi embora, vá de vez juntar-se ao pescador de lagosta português.


Em Youth, o narador Coetzeeano orgulha-se de ter introduzido uma expressão tão mundana, exactamente o pescador de lagosta português.

Campo de Santana

Por volta de 1860 o paisagista francês Auguste Glaziou veio ao Rio pago por D. Pedro II, e entre outras coisas ajardinou o Campo de Santana. Ontem a marinha montou um hospital de campanha no Campo de Santana. De madrugada havia gente a dormir na fila, no início da tarde distribuíram-se senhas no meio de grande tumulto. Dentro das tendas estavam quatro médicos, alguns enfermeiros e muitos fuzileiros navais. Sheila Lopes, inconformada, foi suavemente contida pelos militares, a foto mostra. Os médicos foram reforçados. Chegaram mais quatro. Durante a tarde, mais de 600 pessoas foram atendidas, disse o almirante. Algumas só tinham fome. À noite, as três mil da cauda da fila voltaram para casa.
O prefeito cortou as verbas para os cuidados primários. Ele manifestou-se preocupado pela sorte dos marrecos do Campo, se persistir este afluxo de gente.

O fim no princípio

Se 1450 marca o início do ciclo de vida do sistema-mundo actual (Immanuel Wallerstein) o seu fim deve ser visto deste lugar de chegada: a Serra do Mar, os ipôs e as quaresmeiras em flor, o jatobá e o pau-ferro.

Os limites do desejo

O narrador Coetzeeano de Youyh: Scenes from provincial life II, um rapaz sem nome, muito igual a ele mesmo, diz que teria gostado de ir para a cama com a Emma Bovary, de ter ouvido o famoso cinto a assobiar, como uma cobra, quando ela o despia. Ao recordar o desejo juvenil Coetzee acrescenta: mas será que Ezra Pound aprovaria?

JP2

Querer falar e não o conseguir pode ser fonte de grande sofrimento. A questão é que JP2 se comporta, nesta circunstância, exactamente como podíamos imaginar que o faria, se deus não existisse.

28 março 2005

Uma viagem de sonho

O meu amigo Guilherme adora História. Ou o tetaravô foi feitor no Ouro. Ou a família inteira emigrou, no século XVIII, para o Rio.
Era a sua viagem de sonho.
Marcámos na agência. Pacote completo.
Uma semana antes da partida, Guilherme disse que estava muito cansado depois da viagem a Los Angeles. Tinha duas conferências para preparar, que, absolutamente, não podia desmarcar, uma participação no júri de escolha do prémio PT plus, uma reunião do Conselho e as avaliações finais dos candidatos ad hoc.
Vim sozinho.
Estou a fazer a viagem de sonho do Guilherme.

S. Francisco

A prefeitura de S. Francisco abriu trezentas novas praças. Quase todos são novatos aqui. Eu ensino as ruas aos taxistas.

Em louvor da incerteza

A incerteza é a realidade central do universo, e não apenas da nossa actual situação histórica. Foi Ilya Prigogine quem disse. Há quase dois anos, o narrador do Mal de Montano, e nós depois com ele, bem clamámos por alguma certeza. Mas isso seria mortal para a nossa estrutura afectiva e psicológica.

Lourdes

Cleomara está-se alindando porque hoje é noite de quebradeira. Ela veio de Teoflotóni para BH e, ao cabo de três meses, arrumou um emprego. Wanderson vem buscar Cleomara ao apartamento onde ela vive com duas amigas. Descem a Tomás Gonzaga em direcção de Lourdes. Cleomara caminha juntinho a Wanderson e, na esquina com S. Paulo, pega-lhe a mão. Começa a chover e ela vira a cara para ele. É nesse momento que eu, enquanto me desvio para eles passarem, me interrogo sobre se o que está chegando ao fim é o meu ciclo de vida ou apenas a fase B de um ciclo típico de Kondratieff.

26 março 2005

Janson

Uma editora chamada Francis edita, no Brasil, os livros mais recentes de J. Gilberto Noll. Na última página os livros da Francis ostentam o seguinte texto:

Este livro foi impresso na fonte tipográfica Janson atribuída a António Janson, um holandês, que trabalhou em Leipzig de 1668 a 16687. De facto foi criada por Nicholas Kri(1650-1702), discípulo do do holandês Dirk Vosgens. A janson é um exemplo da influência de tipos holandeses na Europa antes do surgimento dos designs de William Casbon (1692-1766).

Cerrado Adentro

Subir o Pico do Itacolomi. Ver tudo de cima. A vertigem do tempo. E à descida perceber. Sair dos trilhos, quando as matas de galeria se adensam. E ir, cerrado adentro.

Senzala



Entro no prédio e começo a descer. A cave tem lojas pequenas de gemas e lapidação. Uma está fechada. Na outra, uma mulher dorme ao balcão, desamparada. Desço outro andar. Está escuro, mas ao fundo do corredor vê-se o vale por um janelo e o cerrado parece querer entrar. Mais abaixo o lance de escadas conduz a uma parede rebocada à pressa. Quando me volto está um sujeito em cima, que não ouvi chegar:
- Pereira. Você conhece o Pereira?
- Não. Não conheço. Já viu em cima?
O homem ocupa toda a largura da escada.
- Grande. Você é o Pereira, não é. O meu negócio é gemas e me mandaram arrumar um assunto consigo.
Estende-me uma mão, abre um sorriso, os dentes são a única luz daquele desvão.
Devo aceitar a mão do preto, estendida? Gritar? Não sou o Pereira. Quem ouviu os que aqui gritaram? Quem ouve o porco a ser sangrado?

De mão dada

Sexta à noite, na esquina da Praça Savassy, uma mulher diferente das outras porque quer fugir.
-Me largue, deixe-me ir embora, me largue a mão.
Esta mulher vai ser infeliz. Quer ir embora e não lhe larga a mão.

22 março 2005

Lenine

Fui a um conserto. Bonirre havia de se sentir feliz por me ver tão leninista, assim.Levo as Obras Escolhidas.

Notícias de Paula

Paula é agora massagista de relax, debaixo de uma amendoeira, em Leblon.

Os mínimos medos

Um dia Paulo Coelho estava numa clínica e sofria de ataque de pânico. O psiquiatra disse-lhe: concentra-te nos teus medos grandes e tem medo deles a valer para que os teus medos pequenos não te destruam. Não foi bem assim, mas o meu domínio da vida e obra de Paulo Coelho é ainda insuficiente para poder reproduzir o estilo bíblico do celebrado autor. Apreciei o conselho. Mas tentando retirar dele proveito próprio, descobri que vivo perfeitamente com os grandes medos e que são os mínimos que me apavoram.

Sejamos lusitanamente simples

Um cronista do Globo que dá pelo nome de Joaquim Ferreira dos Santos utiliza frequentemente a expressão lusitanamente simples. Ainda não apanhei bem o sentido, mas estou a treinar, em contextos variados.

Passeio nas ruas

De Rubem Fonseca a Companhia das Letras publicou uma grossa Antologia a que chamou 64 contos. Não tive tempo de encontrar A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, que abria o livro chamado Romance Negro (cito de cor). Mas nas ruas do Centro senti o apelo peripatético daquele que acho se chamava Augusto. A experiência não foi exaltante. As prostitutas tinham-se mudado todas para as praias do turismo sexual. As poucas que encontrei estavam alfabetizadas. O meu nome não é Epifânio.

18 março 2005

Escrita automática

Hoje sei
o teu nome
escreve-se em todas as teclas.

Na Sociedade de Mineralogia

O Mestre e o seu discípulo. Há meses que os encontro no Gabinete de Espectroscopia. Estão cada vez mais próximos, falam cada vez mais baixo e a voz embargada. Hoje o discípulo tinha o terceiro botão da camisa aberto e o Mestre tremia, ou seria da espectroscopia vibracional. A cristaloquímica dos silicatos, dizia o jovem. E o velho respondia, perturbado, que era preciso não sair da nanoescala. Mas a reflectividade, a luminescência, implorava o rapaz. E o Mestre, de costas para o equipamento e os olhos cravados no peito do discípulo: A difusão Raman, a partir das aquisições da exsolução dos feldspatos ternários. O rapaz quase soluçava quando saí da sala. Mas ainda lhe ouvi dizer: o crescimento…por transporte…em fase de vapor

17 março 2005

Correio dos Leitores

Sí, dices que es una tontería; pero habria que preguntar a los tetraplegicos.

O cozinheiro

Devo um esclarecimento. A minha aversão é ao industrial de restauração. Não ao cozinheiro. Tudo me aproxima do cozinheiro. O cozinheiro é um homem sensível, da savana e dos bosques. Aprecia, como o caçador, o gosto da carne. E tal como o recolector distingue o aroma e o sabor da salsa e do cravinho, dos cominhos e do gengibre. O cozinheiro arrisca, espera, junta. Sabe o difícil tempo de cozedura. Prova. O industrial de restauração é um bruto do asfalto, que prospera com a mais valia do cozinheiro. O cozinheiro é altíssimo no cimo do chapéu e usa um avental tão elegante que está sempre a ser copiado. O industrial da restauração tem uma carrinha de caixa aberta ou um jipe japonês. Quando o cozinheiro vem à sala, olha as mesas com solenidade e mesmo os brutos mastigam mais devagar. E se alguém for comido neste post, aí vai INE(s) uma pequena alusão não-literária, que seja o industrial de restauração.

16 março 2005

Post cheio de ódio

Há pessoas horríveis. Das Mulheres Socialistas já falei. Das Amigas dos Doentes deus me livre de lhes ver as ligas. Há as mulheres muito pálidas. Alimentam-se de poesia, estão sempre a transpirar sentimentos e afectos,e se as deixamos aproximar atiram-nos com citações do Paulo Coelho. Ou um equivalente, porque há mulheres destas em todos os estratos literários. Há as mulheres que não lavam a cabeça. Há as mulheres que dão entrevistas em que dizem: os meus pais proibiam-me de ler O Crime do Padre Amaro. E os pais nem conheciam esse padre, coitados, e até se orgulhavam das leituras incompreensíveis da filha. E há aquelas mulheres que parecem muito inteligentes até falarem, como aquela Júlia melada que entrevista o professor. Mas pior que tudo são os industriais da restauração. Acordam tarde. À noite são predadores. Mas a uma hora imprecisa da tarde enganam totalmente as mulheres que verdadeiramente me interessam. Parecem Rimbaud antes de ser negreiro. Até eu fico impressionado. Elas desfazem-se.

15 março 2005

Honra e Glória aos dois camaradas abstencionistas



A Assembleia Nacional Popular aprovou a utilização de meios não pacíficos contra os secessionistas de Taiwan. Havia 2 896 delegados na Sala. Votaram todos a favor. Menos dois.

Errata

Quando este blog começou escrevi, no meio de um entusiasmo proustiano: É o ano dos blogs em flor. É o ano dos decotes em flor. Era o que eu queria mesmo dizer, e não era capaz, obrigado Bruno.

Da dificuldade em controlar Una Pasión

O olhar reprovador do tio Heitor. Tu podes ser ouvido. Tens uma função de magistério. Aborda os grandes temas. O amor, claro. A morte, pode ser. Mas então a fraternidade? A luta contra a injustiça? O olhar trocista da Madi. Olha lá, tu e o teu amigo Bruno podiam-se juntar. Tu falavas de rabos e ele de mamas. Os dois de futebol. Era um blog de sucesso. O olhar suspeitoso do Navarro: Quem é a espanhola? Algum Erasmo? O olhar cúmplice da Beca. Tanto poema. Deves estar apaixonado. O olhar de censura da Caro. Não sei se são os teus genes se foi o teu ambiente. Mas tu és afinal um preconceituoso homófobo, etc, etc. É muito difícil gerir Una Pasíon Nociva.

14 março 2005

Amalia Bautista

Cuéntamelo otra vez

Cuéntamelo otra vez, es tan hermoso
que no me canso nunca de escucharlo.
Repíteme otra vez que la pareja
del cuento fue feliz hasta la muerte,
que ella no le fue infiel, que a él ni siquiera
se le ocurrió engañarla. Y no te olvides
de que, a pesar del tiempo y los problemas,
se seguían besando cada noche.
Cuéntamelo mil veces, por favor:
es la historia más bella que conozco.


Conta-me outra vez
Conta-me outra vez, é tão bonita
que não me canso nunca de a ouvir.
Repete-me de novo, os dois da história
foram felizes até à morte,
ela não foi infiel, ele nem
se lembrou de a enganar. E não te esqueças,
apesar do tempo e dos problemas,
continuavam a beijar-se cada noite.
Conta-me mil vezes, por favor:
é a história mais linda que conheço.

Mar Adentro



Vejo os olhos delas
À saída do filme.
Dizem: gostei,
Mas esperava mais.
Foi justamente por isso
Que Ramón não quis viver.
As expectativas delas
São sempre excessivas
Mesmo quando estamos
Tetraplégicos.

13 março 2005

Mulheres Socialistas


Sigmar Polke

Tenho poucas amigas. Mas durante a semana nenhuma me manifestou a sua repulsa pela preferência masculina do primeiro ministro no que diz respeito à formação do governo. O governo e a sua composição é um assunto de pouquíssimo interesse para as minhas amigas. As minhas amigas são secretárias de empresa, auxiliares de acção médica nos hospitais da capital da saúde, floristas, bancárias, balconistas com contrato a prazo. Ultimamente também conheço uma ucraniana que toma conta de uma senhora de idade, concorreu aos Correios e me procura enquanto não editam o primeiro dicionário técnico Ucraniano-Português. Interessam-se pela presença de mulheres no governo, claro. Se fossem ouvidas por uma cadeia de televisão eram capazes de dizer que defendiam a paridade. As coisas que uma pessoa é capaz de dizer quando fala para a televisão. Mas todas bocejariam se falasse de política. E nenhuma se classificaria a si própria como uma mulher socialista. Mulher Socialista não conheço. Nunca me apresentaram nenhuma. Gostava de conhecer, mas não tenho o prazer. Mulher Socialista inscrita no Departamento Nacional do Partido Socialista é para mim difícil de conceber. Acredito que existam. Às vezes escrevo do que não existe. Às vezes vivo do que não existo e sou nada, pó de nada, e sinto-me bem nesse vazio. Mas não é o caso ao escrever isto. Não me sinto bem. Deve ser a isto que chamam misoginia.

O governo das melheres socialistas


O governo de melheres socialistas que Mário Mesquita e Ana Sá Lopes hoje apresentam no Público tem evidentes qualidades: a experiência de Ana Benavente e de Elisa Ferreira, o tão esperado regresso de Edite Estrela. Surpreende a escolha de Teresa Alegre em detrimento de Matilde Sousa Franco.

Língua de bois

Todos os sábados (ou logo no dia seguinte se o trabalho na repartição é duro) procuro a coluna da Helena Matos no Público. Na primavera passada dei comigo a concordar com ela sete semanas consecutivas. Gosto dos livres pensadores, dos que, como na canção, se obrigam a fazer o pino para ver as razões do lado contrário. Cresci contra o pensamento único. A cartilha salazarista, o manual do Bonifácio, a missa de domingo, as conversas de família de Marcelo. E também a vulgata marxista do PCUS e das edições Avante. O artifício a que Helena Matos, com algum sucesso, recorre, é o de identificar posições de esquerda que caracteriza de forma difusa com o "pensamento único". Do ponto de vista simpático de heterodoxa, ela recupera quase sempre as posições mais conservadoras.
A recordação do 11-M dominou esta semana. A forma como o actual governo espanhol o fez, pareceu-me boa: prosseguimento do inquérito até aos aspectos mais recônditos, Cimeira de Madrid, cerimonial de luto pelas vítimas. A manipulação política que Aznar tentou fazer do terrorismo, é conhecida, e saíu-lhe caro. A Cimeira de Madrid fez o que deve ser feito: o combate ao terrorismo envolve uma forte e predominante componente política, que reforce o diálogo entre as religiões, o respeito entre as civilizações, o reforço da legalidade internacional e a salvaguarda dos direitos individuais. Mais ou menos o contrário do que a "legislação patriótica" americana, a intervenção militar no Iraque, a ocupação americana do Iraque estão todos os dias a fazer. Ora, numa semana como esta, que uniu os espanhóis nas ruas e sentou em Madrid aqueles por onde passa a luta que pode ser vitoriosa contra o terrorismo, o que fez Helena Matos? Investiu contra Zapatero, os jornalistas "de causa", e os reféns libertados no Iraque.
A jornalista sem causas indignou-se por " uma vez libertados,(os jornalistas ocidentais) a sua primeira preocupação é declararem que foram contra a intervenção militar do seu país". Matos leu mal os jornais da semana. A primeira preocupação da jornalista italiana que não cita (chama-se Giuliana Sgrena) foi escapar ao fogo mortal do amigo americano.

11 março 2005

Antologia de O Mal: Amalia Bautista

Enigma

No primeiro dia que saí contigo
disseste que era estranho o teu trabalho.
Nada mais. Contudo eu bem sentia
que a minha pele se rasgava feita trapos
sempre que as tuas mãos por mim roçavam,
e que os teus olhos eram como aços
que faziam ficar os meus doendo.
Daí para a frente sempre foi o mesmo:
orgulhavas-te com a tua arte,
mais subtil e directo cada dia,
e eu não compreendia nunca nada.
Agora sei. Conheço o teu ofício:
Atirador de facas. Atiraste
contra o meu coração a mais certeira.

Turismo Sexual

Como o casamento não corria compraram uma viajem à Tailandia. De manhã beijava-lhe os lábios de cimento. À noite punha-lhe a mão no sexo. Mão morta mão morta vai bater aquela porta.

Março

Voltam tímidamente. As aves do Sul, as tulipas dos bolbos e os umbigos das mulheres.

10 março 2005

Finalmente a noite

De manhã a angústia esfola a pele como aos carneiros a Benetton. A esta hora, o cansaço torna a vida agradável.

Tristeza não tem fim...

As últimas semanas deviam constituir um case study de organização política. Sem governo nem Parlamento, sem oposição nem magistério público dos intelectuais, o país viveu naquela doce inconsciência dos seres a quem basta existir para serem felizes. O crime, o vício e a virtude, por todo o lado se retrairam. E não fora a seca, a sanha condecoratória do Presidente da República e a campanha de Carrilho para a Câmara de Lisboa e teríamos experimentado um tempo parecido com o paraíso da Idéia anarquista. Tudo o que é bom tem de acabar. Há que encarar a realidade: os muito feios que me perdoem, mas o governo que aí vem é um susto. Tudo gente com ar agrário, de charuto escondido ou seios que lembram os soutiens das feiras. O despertar será de pesadelo.

Apêndice do novo eixo ou Broches a Bush

No Público de ontem Teresa de Sousa pergunta: Irá Portugal alinhar a sua política externa pela de Rodríguez Zapatero, transformando-se num apêndice do novo eixo Paris-Berlim-Madrid? Um apêndice do eixo Paris-Berlim-Madrid. Ora aí está um excelente programa. Não seria capaz de propor uma coisa melhor.

09 março 2005

8 de Março: Mulher na lavandaria


Os homens olham agradecidos para a entrada da lingerie na máquina e interessam-se pelo programa de lavagem.

8 de Março: Mulher a lembrar-se


Em Março o rio inundou as ruas da Baixa e levou os panfletos que o pai ia distribuir. As ruas ficaram negras, da tinta a escorrer das folhas acabadas de sair do copiógrafo. Mudaram-se todos para casa dos avós, um terceiro andar, na rua Direita. Vieram os bombeiros e a polícia. Eram tempos de grande sobriedade. Ela estava triste por não ver o pai, mas gostou daquele homem enorme que lhe pegava ao colo.

8 de Março: Mulher a ler


Não tinha visto o quadro de Richter. Era assim que gostaria de ser amada.

8 de Março: Mulher no Laboratório


Nunca os reagentes tinham cheirado assim: pão levedado, madeira nas serrações.

8 de Março: Mulher ao balcão

Um em cada cinco homens desejou-lhe um dia especial. Tem uma afeição especial aos que compram pão-de-forma

O Outro Nome

Canso-me às vezes deste nome. A Natureza do Mal. Há um poema do Cesariny em que ele fala do seu nome, e do tempo a vir, em que os nomes corresponderão deveras aos seres. Qual é o verdadeiro nome deste blog? E se animássemos isto com o nosso verdadeiro nome? Digam lá o vosso verdadeiro nome. O nome que hoje teria o vosso blog. Eu trocava o Mal por A Paixão Nociva. Ou, si fuera el nueve de marzo, La Pasión Nociva.

08 março 2005

Dia de Espanto



...quando passeiam de vestidos floridos
espantam-me os seus olhos, as pestanas e toda a ordem do mundo.
Parece-me que de tão grande e mútua atracção
Podia enfim resultar a verdade.

Czeslaw Milosz

O Retrato

Nem sempre foi assim; dantes enviavam o cadáver
(HCM no Alcatruz)

07 março 2005

Antologia de O Mal: Amalia Bautista

Al cabo

Al cabo, son muy pocas las palabras
que de verdad nos duelen, y muy pocas
las que consiguen alegrar el alma.
Y son también muy pocas las personas
que mueven nuestro corazón, y menos
aún las que lo mueven mucho tiempo.
Al cabo son poquísimas las cosas
que de verdad importan en la vida:
poder querer a alguien, que nos quieran
Y no morir después que nuestros hijos.

Laura


Gerhard Richter

Conheci em tempos uma mulher estranha a que chamarei Laura porque não me recordo de ter alguma vez conhecido uma mulher chamada Laura. Conhecer é a palavra menos apropriada para descrever o que me aconteceu. Estava numa bilheteira de cinema e a senhora que vendia os bilhetes desmaiou. Uma equipa de reanimação levou-a para lugar mais reservado e alguns minutos depois colocaram um letreiro que dizia: A bilheteira reabre dentro de quinze minutos. Voltei-me para trás e vi-a. Vi-a distintamente, como vejo as pessoas e as coisas à minha volta, sobretudo se são fora do comum, pela beleza, o exotismo, o brilho, ou outro sinal notório que Laura seguramente possuía. Laura, mas eu não sabia que ela se chamava Laura, e ela, como já revelei, não se chama assim, disse-me: - Já que temos de passar 15 minutos aqui podemos falar. E falámos, de todos os filmes em exibição, dos que já tínhamos visto e dos que tencionávamos ver. Sempre que me virava para a frente, para as costas do senhor de idade e para o aviso, ao fundo, que continuava a remeter para quinze minutos depois a reabertura da bilheteira, sucedia um fenómeno curioso. Esquecia-me da cara dela. Eu sabia que ela era interessante por aquela euforia que nos envolve sempre que conversamos com alguém interessante. Mas tinha de me voltar para recertificar coisas básicas: a cor dos olhos, a espessura dos lábios,o jeito dos cabelos, a altura das mamas. Esta perda de materialidade com a saída do campo visual, não me parecia relacionada com qualquer perturbação da minha memória recente, visto não abranger outros aspectos, tais como o conteúdo da nossa conversa. Era imanente à imagem dela. Despedimo-nos antes que o filme começasse, e eu agradeci ela ter dito:- Não somos obrigados a ver o filme juntos. De facto temia que confundisse a minha perturbação, que dizia respeito apenas à sua evanescência, com outro sentimento. Além disso acho insuportável ver filmes juntos. Já chega estarmos atentos à multiplicidade de sentimentos que o cinema em nós desperta. Ter ainda que vigiar o banco ao lado é algo a que nunca me acostumarei. Alguns meses depois encontrei-a no metro. Ela soltou um olá jovial e eu pensei que fosse a nova namorada do meu irmão, a minha dentista ou uma rapariga que me convenceu a mudar de operador de telemóvel. Era a Laura. Lembrava-me do nome, claro. E do filme.- Mas mudaste de corte de cabelo. Ou estás mais magra. Que não. Nem uma coisa nem outra. Aliás usara sempre o cabelo assim e tinha rigorosamente o mesmo peso. Lembro-me do que falámos. Olhava fascinado para ela à procura de um traço distintivo que me permitisse um reconhecimento posterior. Tive pena de ela não ser um quadro, para poder sacar do meu caderno de bolso e, com tempo, escrever a linha do nariz, a cor secreta dos olhos, a curva do pescoço, o alinhamento dos dentes, a projecção dos malares. Quando se despediu só conseguia lembrar-me da roupa. Escrevi no caderno, e é tudo o que guardo dela: Laura, O último Metro, casual chic. Laura não é o nome dessa mulher de quem nunca fixei um sinal. O último Metro devia ser o filme em que a funcionária da bilheteira desmaiou, foi há tanto tempo. Casual chic, o estilo. A terceira vez que encontrei Laura fui viver com ela. No escritório acabava os dias a tremer por não conseguir lembrar-me da mulher com quem ia ter, ao fim da tarde. Quando se cansou de mim, eu dela nem as mãos tinha aprendido. Nunca sonhei com ela, a menos que seja Laura a mulher cuja face, nos sonhos, não distingo.

06 março 2005

As escolhas de Marcelo (bis)

Na primeira aparição Marcelo tinha ganho as eleições e Ana Sousa Dias procurava um papel e um cabeleireiro. Hoje Marcelo elogiou o Governo do centro, deitou o mau olhado ao Prof Freitas do Amaral, continuou a lançar a campanha da Cavaquiana figura, meteu Ana Sousa Dias no bolso. Júlia nem reagiu. O seu papel é controlar o tempo, balbuciar umas evidências sem interromper o poderoso dispositivo crítico do Professor. No segundo episódio, Ana, com novo penteado ( e o mesmo cabeleireiro)resignou-se a ser Júlia. Em breve trará umas lembranças, umas cartas, um leitão para o Professor.

Kinsey



Entre 1938 e 1953 Alfred Kinsey e a sua equipa entrevistaram mais de 10. 000 homens e mulheres, procurando compreender a variabilidade do comportamento sexual humano.
Os interrogatórios podiam ter mais de 500 itens e registavam dados sociais economicos, físicos e psicológicos, histórias conjugais, , heterosexuais e homosexuais .
Em 1948 foi publicado Sexual Behavior in the Human Male. Philadelphia: W.B. Saunders, o primeiro Relatório Kinsey. E em 1953 Sexual Behavior in the Human Female. Philadelphia: W.B. Saunders.

A vida de Kinsey é recordada num filme. Importante para se perceber os anos do pós-guerra, onde um tipo de investigação deste tipo começava a ser possível, apesar do conservadorismo das Universidades, dos financiadores, apesar da Comissão de Actividades Anti-Americanas onde pontificava Hoover.
No filme emerge a figura composta por Liam Nielson, de um cientista obstinado, rigoroso, enérgico.
Importante para recordar a Escala Homosexual-Heteresexual

e uma ideia central para Kinsey: o mundo biológico é um continuum em cada um e em todos os seus aspectos.
Um filme a ver. Para se compreenderem os tempos, afinal tão recentes, em que a moral protestante culpabilizava o sexo e quase não havia um nome para as coisas.

05 março 2005

Metamamas

Quando o Bruno deixar de escrever sobre as mamas da Selma Hayek, as mamas da Selma Hayek perdem todo o interesse para mim.

O Véu no Estado Laico

Concordo Cris. É um pouco estranho impor a laicidade.Mas vi a reportagem da BBC. Uma rapariga, de véu, lia um texto. Atrás da rapariga havia um homem. Vigiava-a sem disfarce. Olhava para o texto como se quisesse assegura-se de que ela o reproduzia fielmente. Depois pegou-lhe no braço e afastou-a para longe dos repórteres. A mão do homem era uma tenaz.

Thirteen september, nineteen sixty nine

Como num quadro do Museu d’Orsay um louco em Metro Station. A testa brilhante, o olhar vivo, um sorriso que apela à cumplicidade. Periodicamente gritava uma data de 69. Thirteen september, nineteen sixty nine. A data do seu nascimento? Do seu guru? Do último LP dos Beatles? E soltava uma gargalhada que podia passar por saudável. A rapariga do piercing mudou de lugar com o saco da Macy’s. O homem que lê tem mais medo de mim. Depois passa um preto numa cadeira de rodas apontando para uma perna petrificada. De entre todos os que se amontoam na plataforma, escolhe o louco, e diz-lhe várias frases em tom colérico. Quando ele recupera aproxima-se de mim trauteando Popeye the sailor man como se fosse uma senha. Quando chega o metro mostra-se ausente e ao último toque entra subitamente na carruagem, e com exuberância começa a cantar uma canção infantil. Vai sentado nos bancos detrás. De vez em quando deita olhares furtivos sem que se descortine o alvo. Tem uma camisola bonita sobre uma T-shirt azul. O cabelo bem cortado e a barba bem feita. Um grande saco de desporto nos joelhos que começa a abrir muito devagar.
(Que mulher veste este homem? Há muitos homens vestidos por mulheres e nem todos loucos, gritando uma data em Metro Station. Conheço alguns. Distinguem-se pelos olhos, o espanto com que olham as mulheres, a fala sussurrada, a inocência. Não reclamam quando são injustiçados. São modestos, poupados, diligentes.)
Agora mudou de lugar. Para a frente de um banco onde duas raparigas acariciam botas tão novas que têm ainda as etiquetas de marca. Parece incomodado com o ruído e volta-se com movimentos coreografados do pescoço, como uma ave. Agora esse esforço parece tê-lo esgotado e respira fundo, com grande sofrimento.
(Quem é este homem? Quem espera por ele em casa? Onde aprendeu estas canções de infância? Que criança foi ? Que esperanças tiveram nele os pais? Quando adoeceu?)
Saio na Union Station e começo a subir as escadas quando ouço os tiros.

Antologia de O Mal: Natália Correia


Jannis Kounellis

...Eras mãe, eras virgem, eras cabra na cama.

Conceição Matos


Jannis Kounellis

...Mas eles Conceição vão/ lamber as botas/ comer à mão/ do novo Pina Manique/ com outra lábia/ com o mesmo tique.

Era uma canção de Zeca Afonso no marcelismo. Os que a cantaram não sabiam que Conceição era Conceição Matos, hoje recordada por uma entrevista e uma notável crónica de tortura, assinada pela jornalista Maria José Oliveira. Se todo o desrespeito pelos direitos humanos é detestável a violência organizada do Estado é a mais insuportável, sobretudo quando se faz de forma encoberta, no segredo das esquadras, nos calaboços, sem outro registo que o corpo das vítimas e aquele lugar interior onde as feridas não se apagam. A violência da PIDE/DGS tinha a cumplicidade do medo e do silêncio do país que fomos. Havia juízes e magistrados, professores de Direito, de Ética e de Filosofia nas Faculdades, padres e bispos nas igrejas de Portugal. Vigorava em quase toda a Europa a carta de cidadania que os vencedores da segunda guerra tinham declarado e sopravam ventos novos de Berkeley, Berlin e Paris. Mas aqui, nos dias de tortura de Conceição, e nos dias e anos que se seguiram, pesava como chumbo o silêncio e o medo. Conceição Matos tinha duas fés. Perdeu uma às mãos dos seus verdugos. A outra, quero crer que a mantém. Apesar de provavelmente à mesma hora, em cárceres que nunca foram nomeados, gente anónima ser violentada por verdugos tão repelentes como os esbirros de Caetano. Seja como for, a coragem individual de Conceição Matos é um património da nossa dignidade, da história do outro país que também somos.

04 março 2005

Ninguém

Já fui ao Google. Não sei o que pensa a esquerda portuguesa sobre o que se passa no Iraque. Desde as eleições no Iraque que não ouço nada. Não sei o que pensa a esquerda portuguesa sobre a resistência iraquiana. Nem sobre a guerrilha marxista da Colômbia. São questões muito complexas, eu sei. Não podemos fazer o jogo do inimigo. Eu vi Florence Aubenas com os joelhos entre os braços e uma cara de grande sofrimento. Ninguém viu mais?

Acordar

De manhã ao acordar
sei que sou feito
de matéria ordinária
Ambos sabemos
o meu cão e eu
Ele entra na minha manhã
como um spam
lambe-me a mão caída
de matéria ordinária
e eu sinto sempre
que não mereço o calor
daquela língua.

A poesia, estúpido



Foi possível a poesia depois do Holocausto. Um poema de Amalia Bautista pode dar-nos o alento para um dia mais. Lemos os sinais que nos dizem que perecemos. E o nosso destino colectivo parece confundir-se com o pessoal. Continuamos a falar. A rir. A fingir que acreditamos. A mijar de noite, como o homem de Larkin, atravessado pela idéia de que algures a vida continua, para outros, fulgurante. Lemos os sinais e quando julgamos compreender somos distraídos por um poema, um poema de Amalia Bautista.

Um blog

O sexo em Portugal é antes e depois do gajo que escreve o Murcon.
Biba!

03 março 2005

Antologia de O Mal: Amalia Bautista

Deixa

Deixa que te seduza a dentadinhas,
sente na pele as pétalas de rosa
que sabem ser seus lábios quando quer.
Escuta como chama e como cala,
entrega-te aos seus gestos, à ausência
de gestos, e derrete-te se podes
sem pudor, sem reparos nem vergonha,
perante o seu convite ou face ao teu.
Queima as normas de comportamento
e despedaça a boa educação,
estilhaça os costumes, reabilita
por uma noite ao menos a loucura.
Um último detalhe imprescindível
para que tudo saia em condições:
procura que não seja o teu marido.

Sem Perdão

«Leur liberté est la nôtre. Ne les oublions pas»

A cara de Florence Aubenas na tortura. A cadeia de televisão que edita o vídeo dos sequestradores. O deputado francês que se move no meio daquela gente. O silêncio. O silêncio.

Antologia de O Mal: Amalia Bautista


Gerhard Richter


O Inferno

Debrucei-me à janela do inferno
e não vi nada que me horrorizasse;
pareceu-me um lugar igual aos outros,
cheio de gente e coisas. Alguém
do inferno me disse para entrar.
Não me lembro quem era ou se eram vários,
nem o que me disseram lá de dentro,
ou se essas pessoas sorririam,
se haveria alguém a lamentar-se
ou se desconfiei por um momento.
Fui, e achei a porta do inferno,
abri a porta do inferno, entrei,
desde essa hora vivo no inferno.
É um lugar igual a qualquer outro,
cheio de gente e coisas. Todavia
sei que não pode ser senão inferno
porque neste lugar não estás comigo.

Amalia Bautista nasceu em Madrid em 1962 e foi divulgada recentemente nos 3º Trípticos Espanhóis, de Joaquim Manuel Magalhães, que traduziu. A edição é de Relógio D'Água

02 março 2005

Collapse


Acho que a maior parte das pessoas pensa, desde Cavafys, que quando os Bárbaros entraram em Roma os habitantes jogavam xadrez. Na véspera de cair às mãos de um bando de espanhóis embriagados os dignitários do império azteca aborreciam-se. Talvez houvesse divertimento e sexo recreativo na Torre de Babel, antes da ira de um Deus monoglota se ter abatido sobre essa maravilha da Antiguidade. Podiam as civilizações que se julgaram eternas ter recebido os avisos da sua decadência? Eram evitáveis as quedas das sociedades fabulosas que fomos construindo ao longo da História?
Jared Diamond,Professor de Geografia, antropólogo na Nova Guiné, o celebrado autor de Guns Steel and Germs, O Terceiro Macaco,Porque é que o sexo é tão bom?, publica agora Collapse, How societies choose to fail or succeed, ed Viking/Penguin, dezembro de 2004

01 março 2005

Saboteur


Comovo-me com todas as vitórias e entristecem-me todas as quedas. As convicções que sinto não chegam para a política, para a guerra, para o futebol ou para o amor. Quando a Sofia escreve, este blog tem classe. De certa forma Bonirre foi-se com Lopes e com o declínio da insularidade do Mal. A contribuição mais recente de André Bonirre para a blogosfera foi a criação do blog da vizinha (link em breve). Foi bom, mas não chega. PC faz a travessia do deserto da Física. Li algures que o universo é constituído por cinco por cento de matéria ordinária, vinte cinco por cento de matéria escura e setenta e cinco por cento de energia escura. O PC é matéria escura. A Sofia é energia escura em expansão. A energia escura não tem convicções. Basta-lhe existir à sua maneira. Eu sou inclassificável. Quando li As três Verdades do jesuíta Pierre Charron detive-me na classificação dos descrentes: Os “deístas, ou últimos ateístas” acreditam “num vago deus, impotente, indiferente, sem cuidado nem providência”. Tal como eu, pensei. Os cépticos, continua Charron, duvidam de tudo e recusam pronunciar-se. Assim se passa comigo, sobretudo quando convivo demasiado com Bartleby. A terceira categoria, é a dos verdadeiros ateus “ que declaram não ver sinal algum de Deus” e esses são, para o jesuíta, “raros” por “deverem ter uma singular força de alma”. E sou também desses, embora não declare e não me sinta nem forte nem raro. Partilho assim de todas as características dos descrentes de Charron, por excesso de convicções ou por falta delas, consoante as marés, as concentrações de neuromediadores, as estações do ano, o fluxo e refluxo da ansiedade. A Sofia devia escrever um pouco mais para retirar este blog da normalidade, do comentário político, da ideologia. Na segunda guerra os resistentes franceses tinham uma canção que dizia aos alemães: Vocês constroem as linhas de caminhos-de-ferro. Nós sabotamo-las. Completamo-nos, devíamos entender-nos.

Atenção a

O folhetim do Miniscente: Um amor catalão.
As playmates do Lutz.
O assobio do girino.