30 dezembro 2012

O frade profeta e a noiva-cadáver




Este ano, ao contrário do que vinha sucedendo, não foi assim tão evidente que Mary Cristmas tivesse um caso com Epiniuiar. Mary Cristmas esteve quase sempre sozinha, como se ninguém se quisesse lembrar do calendário. Uma coisa de cada vez, era o que pareciam pensar. Mary é mais segura, já se sabe com quem contamos. Bacalhau e couves, azeite e alho, a família reunida em armistício. Epiniuiar é um parceiro instável. O que sabemos dele já nos basta. É incontornável, mas que seja quando tiver de ser. E assim Mary foi ficando sozinha, muito lembrada, mas sozinha. 
Nestes dias abri a televisão por três vezes.  Só vi profetas,  ou pobres figurantes balbuciando as palavras da salvação. Veio um homem do PNUD explicar a crise do euro. Em termos simples. Tinha as mais altas credenciais e apresentava-se com o resumo de uma conferência que, de facto, veio a proferir em vários templos certificados: a SIC, o Grémio e a apresentação que a SIC notícias faz do Expresso, por exemplo. Afinal as credenciais eram forjadas. Era bom de mais para ser verdade. Um alto funcionário das Nações Unidas preocupado com a  pobreza do nosso país e com soluções  alternativas às da troika? O próprio documento com que se apresentava,  antes referido, era um plágio. E a questão que se põe é: Se era um plágio onde está o documento verdadeiro. E o seu autor? Se o Artur é um profeta, onde está o que fala através dele?
O outro profeta é um frade franciscano que responde na SIC notícias. A cassete da Igreja na variante populista, uma mistura de horror aos ricos e aos aparelhos democráticos, com uma mensagem salvífica que ora surge em refrão, ora como muleta retórica, debitada em torrente homílica.  O importante neste frade é a linguagem desinibida, irreverente, o sotaque beirão, a barba a meio caminho entre o chique e o desleixado e o sorriso, que é infantil e luminoso, com olhos e dentes de quem fez uma traquinice.  A jornalista-pivot, habitualmente muito profissional,  transfigura-se ao falar com o frade. E fica cúmplice, com aquele ar que têm os indignados passivos, às vezes divertida, quase sempre magoada. Estão ali quase todos os ingredientes do ópio novo do povo: a Igreja  e a entrevistadora de grande audiência. Eles dão à turba espectadora a dose certa de indignação e desalento,  revolta e submissão, poder e passividade.
Há quase sempre,  entre  comentadores fixos e  jornalista-pivot uma relação complexa. Os jornalistas-pivot têm,  com os seus comentadores, uma relação de posse. Tratam-se pelo nome, com uma entoação que sugere familiaridade, como se um diminutivo estivesse eminente. Se a jornalista é conhecida por Leonor, o comentador chama-lhe Maria Leonor e nós ouvimos Nônô,  enternecemo-nos e, se se dá o caso de termos pituitária, tumba!, lá vai um bolus de prolactina. Somos, enquanto membros da vasta audiência, parte daquela família. Amanhã, quase sem darmos conta, a opinião deles será a nossa opinião. Alguns comentadores já não comentam, ou fazem-no intermitentemente. No resto do tempo vão ali, ao reality show, passar um bocadinho, como antes os mentores da juventude faziam nas mesas dos cafés estudantis, pavoneando-se perante as tertúlias boquiabertas.  Medina Carreira, numa semana em que a vida não lhe correra de feição, não se lembrava de nenhum nome, data ou catástrofe e ali esteve, meio amnésico, ecolálico, enquanto a “sua” jornalista o conduzia com maternal carinho.
A audiência funciona como a legião privada dos comentadores, os pobres que estes” retiram da mendicidade para o seu serviço”. Mas os comentadores são os pobres do “seu” pivot e, como  disse Montaigne, partilham com ele os luxos e as voluptuosidades.
O frade fala para o seu povo e para o povo em geral. Fá-lo através da sua pivot. A atenção veneranda dela introduz no discurso do frade uma mistura explosiva de gabarolice ( ele ufana-se de ter estado na manifestação frente a Belém), erotismo (que nas figuras castas da Igreja tende rapidamente a assumir a expressão ardente do misticismo) e sacrifício. Oscila permanentemente entre o Armagedão e a visão da Jerusalém celestial e assim vão os olhos dela, clareando, ou vincando os contornos negros das pálpebras. O jogo subtil das câmaras não deixa perceber se é a chama do discurso dele que lhe ilumina o rosto ou se é ele quem modula as palavras à mudança do semblante dela.
É bonito de ver, mesmo para quem, como eu, não pertence a nenhuma audiência, nem espera nada da Mary nem do Epiniuiar.

Montaigne, Pequeno Vade-Mécum, Actes-Sud, Antígona para a versão portuguesa

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24 dezembro 2012

Amour: alguns momentos e partida.



A casa é de dois professores com mais de 60 anos. Vê-se pela cozinha, escassez de electrodomésticos, a forma como lavam a louça, mergulhada na água da pia, poupando detergente. Vê-se no equipamento de reprodução de som, no mobiliário.
Do vestíbulo de entrada acede-se ao quarto e à cozinha. Uma janela abre para um saguão. Por aí vai entrar um pombo. Um rato vagaroso. Um animal pré-histórico de marcha bamboleante, como os que povoam o filme La Ciénaga de Lucrecia Martel e moldava, em barro preto, o artista troglodita de Castro Daire. A entrada da ave representa a irrupção da natureza no espaço privado, um degrau descendente na decadência, um sinal de perigo, invasividade, um momento em que a dualidade exterior/interior se esbate e os habitantes da casa, nós todos, afinal, ficamos expostos ao lento trabalho da morte. O facto de sentirmos a entrada do pombo como uma ameaça - e da luz amarela do saguão - mostra como avançou a doença comum que nos consome. Como nos encarcerámos na casa - casulo, de onde não queremos sair. Recusamos toda a exposição. E torna-se insuportável a ideia de receber a visita dos que foram próximos e não estão a sofrer a nossa metamorfose. Da ironia do genro inglês, às investidas da filha litigante.
Quando tocam à porta, abrimos e não se vê ninguém. Caminhamos aos apalpões no patamar onde uma outra porta abre para um corredor iluminado. Perguntamos, “está alguém”, e assustamo-nos com a nossa voz. Ninguém responde. E de súbito uma mão tapa-nos a boca e sustem-nos a respiração. Sonho agónico dos velhos, dos roncopatas, dos que sufocam.
O concerto de abertura é visto do ponto elevado do palco. Gente tão elegante. Com idade, mas sem a usura da idade. É o nosso ponto de partida. Sorriem, trocam curtas frases espirituosas. Se nos aproximássemos veríamos as placas das carótidas.
A ausência como crise inicial e pouco tempo depois a hemiparésia. Os cabelos perdem o brilho e a leveza, os esfíncteres deixam de funcionar. O sono dos lactentes. Nunca mais a música. E então somos outra vez crianças, não nos compreendem, repetimos uma pequena frase, exasperamo-nos, chamamos pela nossa Mãe, cantamos o refrão de uma canção antiga.
Apaziguamo-nos com a mão da pessoa amada. O frio, o calor, a seda, as rugas. E uma palavra que se levanta, palilálica, como uma jangada, na onda da consciência que reflui. A palavra Mal.
Segura de novo a minha mão. Dói. Não deixes que me vejam assim. Dói. Que seja esta pessoa. Dói. Que me levem para o Hospital. Dói.
Acordar, vestir, fazer a higiene, preparar a comida, mudar os lençóis, fingir a terapia, a ginástica e a terapia da fala, descansar, comprar comida. O marido da porteira ajuda a trazer as compras para cima, outra vez a comida, a higiene, ler algumas notícias. Não quero saber, não me interessa.
Beber o último copo. Dormir a última sesta. Esperar longamente. E ser recompensado. Oh meu amor, tu voltas quando já não esperava. Regressam os gestos mínimos que tanta falta me fizeram, o modo como te mexes, como andas, o som dos teus pés na madeira do sobrado, a pausa que fazes para que te componha o casaco, abra a porta. Os pequenos nadas que quando me faltaram eram tudo, a falta que me fazias, como se o vento frio vindo do Sena castigasse os ossos quando tu não estavas. Até que voltaste. É agora altura de partir e eu parto contigo, atrás de ti.

 Amour, de Michael Haneke com Jean Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, França , 2012.

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21 dezembro 2012

Todos os que ficam à espera têm de levar



O jornal Expresso de 8 de Dezembro publicou no Primeiro Caderno uma reportagem de Rui Gustavo sobre a carga policial que se seguiu à manifestação de 14 de Novembro. No final dessa manifestação, um grupo de pessoas apedrejou durante muito tempo a força policial estacionada nas escadas do Parlamento. Esse grupo, recorde-se, estava densamente infiltrado por polícias à paisana. A carga policial subsequente perseguiu as pessoas pela Rua D. Carlos, ao longo da 24 de Julho até ao Cais do Sodré, onde ainda foram feitas detenções. O jornal entrevistou cinco manifestantes e um agente da polícia. Os manifestantes deram a cara ao fotografo Nuno Botelho: cinco faces corajosas onde é fácil reconhecer a serenidade e a determinação da geração que tem tido um papel determinante na oposição de rua ao estado de excepção. Todos fazem acusações graves ao comportamento da polícia: condições da detenção, brutalidade do comportamento na esquadra de Monsanto. Contam o que se sabe. Não faziam parte do grupo violento. Estavam longe do Parlamento no momento da detenção. Foram algemados. Impedidos de contactar familiares ou advogados. Deitados numa cela, de rojo, com a cabeça virada para o chão. Foram libertados depois de intimados a assinar uma folha em branco. Os polícias não estavam identificados. O jornalista obteve igualmente o depoimento do Agente A., do Corpo de Intervenção: “...Quando veio a ordem para carregar, carregámos e ponto final. O oficial avisou três vezes os manifestantes, e quando chegou a hora, avançámos. Avançámos em ordem, sem perder o tino e sem fazer perseguições. Organizados. Vi gente a largar pedras e fugir. Se dou uma matracada escolho a intensidade com que dou e o alvo que atinjo. Não bato da mesma maneira num indivíduo com um metro de costas ou num rapaz franzino. Numa velhota ou numa senhora....Todos os que resistem ou ficam à espera têm de levar. Quando levanto a matraca é para bater, para atingir. Sou um executor, não sou um juiz na rua, e se a polícia precisa da minha força tenho de agir. Não me arrependo de nada e não exagerámos. Manifestei-me com mais quatro mil colegas contra este governo e não tenho nada contra manifestantes.” O que vemos nesta declaração? Antes do mais uma aparente ausência de animosidade; a porrada legal sem estados de alma; nenhuma ideologia senão a do serviço público. Todas as particularidades são técnicas. Finalmente a defesa da proporcionalidade da agressão e da sua condição de executor: a separação de funções relativamente aos mandantes, decisores e aos outros operacionais: infiltrados, perseguidores. Maria Tengarrinha, actriz de 34 anos, também entrevistada pelo jornal, contou que quando viu a carga policial se sentou no chão e pôs os braços no ar. Para Maria, que não se identificara com o grupo lapidador, aquela posição significava paz, resistência passiva, não-agressão. Era assim pelo menos desde Berkeley, do movimento dos direitos cívicos , das manifestações contra a guerra do Vietname. Essa posição tinha, para Maria, uma forte carga simbólica. Ora, como o agente do Corpo de Intervenção havia de explicar, os “que resistem” ou “que ficam à espera” “têm de levar”. Isto aprendeu o Agente A. nas aulas teórico-práticas da Policia de Intervenção com professores que ensinaram que, pelo menos desde Berkeley, do movimento dos direitos cívicos , das manifestações contra a guerra do Vietname, “ficar à espera” denuncia uma subversão insuportável. “Fui estúpida”, reconhece Maria. Alombou com pontapés, bastonadas e um pastor alemão. Nestes tempos tudo parece simbólico. A manifestação frente às escadarias de S. Bento. O apedrejamento ritual da polícia. A carga policial enquanto coreografia. A perseguição, captura e identificação em esquadra, de alguns manifestantes. Foi assim em Lisboa, com rapazes r raparigas presos no Cais do Sodré, em Madrid, com gente a ser espancada em estações subterrâneas do Metro, e provavelmente em Atenas, embora nós não sejamos a Grécia. Como se no manual das cargas policiais houvesse um capítulo de perseguição onde está previsto um raio, digamos, de 800 metros com evacuação de túneis, transportes públicos e estações de Metro. Ao simbolismo do apedrejamento da fileira brilhante de escudos de PVP, responde o simbolismo da correria, da debandada, dos cães anti motim. O Parlamento é o alvo geral dos manifestantes. O Parlamento representa a vacuidade do sistema partidário de representação eleitoral. A polícia não defende os deputados, essa nulidade. A polícia defende a escadaria do Palácio, a ideia de escadaria e de Palácio. Ora, neste sistema simbólico o apedrejamento representa um protesto mais radical. O que apedreja quer mais do que o dirigente sindical ou do que o cidadão que gritou palavras de ordem e dispersou depois do discurso. Quem apedreja não se sente representado no Parlamento nem na rua. Ouve o ruído da pedra no plástico do polícia. TRÁS! E esse ruído aproxima-se do que afinal queria dizer. Arrancar a pedra da calçada, primeiro passo da desordem. Correr para a linha da frente dos polícias, o friso dos peões de guarda da ordem que o oprime. Atirar a pedra com a balística perfeita. O que apedreja repete o gesto da revolta de Londres de 1780, das revoluções proletárias do século XIX em Paris. Como escreveu Julius van Daal, ele actualiza o velho sonho de Cocagne: um dia os fontanários de Lisboa mijarão vinho clarete (1). A meio caminho entre o cidadão que voltou para casa depois do discurso de Arménio Carlos e o rapaz irado que atira pedras, está Maria. Quando o serviço de ordem desarmou a tenda ela continuou na rua, “a distribuir um jornal de parede”, O Espelho. Os infiltrados da policia, que foram os melhores alunos do curso do Agente A., fotografaram-na doze vezes e hão-de procurá-la nas imagens da RTP. Ao continuar na rua, Maria perdeu a protecção da CGTP e passou a estar à mercê do livro de estilo da Policia de Intervenção, cujo caldo de cultura é uma mistura de relatórios do SIS, com aulas do Ângelo Correia, Nuno Rogeiro e do Jaime Nogueira Pinto e apontamentos de um professor que, quando se entusiasma, é muito parecido com o Futre.

(1) Belo Como Uma Prisão em Chamas, Julius van Daal, ed. Antígona, 2012

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15 dezembro 2012

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12 dezembro 2012

11 dezembro 2012

O valente soldado Manning

Pode alguém ser livre/ se outro alguém não é/ a corda dum outro /serve-me no pé /nos dois punhos, nas mãos /no pescoço... (canção da rádio, Sérgio Godinho) Bradley Manning, hoje com 24 anos, era analista do serviço de informações do exército norte-americano em Bagdad, quando foi detido, em Maio de 2010. Tinha sido denunciado ao FBI por um hacker com o qual se correspondera e a quem fizera confidências. Sobre ele pendia uma formidável acusação: era a toupeira do Wikileaks. O responsável pela divulgação de documentos classificados e de vídeos confidenciais que há meses denunciavam crimes de guerra, corrupção de governantes, negócios secretos entre governos. Um desses vídeos foi chamado de Collateral Murder. Já foi visto por milhões de pessoas e é particularmente arrepiante. Mostra a eliminação em poucos minutos de uma dezena de jornalistas, em Bagdad, por um helicóptero Apache do exército dos EUA, que os confundiu com rebeldes e tomou as suas máquinas fotográficas por lança granadas AK-47. O género de erros que os combatentes cometem nas guerras, sobretudo quando integram um exército de ocupação. Alguns dos melhores jornais do mundo como o New York Times, The Guardian, Der Spiegel e El País trataram a informação e editaram-na. Foi a revelação da face menos visível de alguns déspotas que indignou as massas árabes na Tunísia e no Egipto e contribuiu para a Primavera Árabe e as revoltas em países da África do Norte. Em Portugal o Expresso editou notícias saborosas sobre banqueiros, ministros e negócios ruinosos no Ministério da Defesa que, talvez devido ao reduzido número de leitores, ou à anestesia cívica, tiveram pouco impacto. Em 1971, Daniel Ellsberg, que fora analista militar, publicou o que ficou conhecido como os Documentos do Pentágono, que revelaram como a administração Johnson mentira repetidamente aos norte-americanos e ao Congresso acerca da guerra do Vietname. Mas as revelações do Wikileaks constituíram, depois dos Pentagon Papers, a maior fuga de documentos das chancelarias da realpolitik. Quando Bradley Manning foi preso, com 22 anos, a sua vida errante já era matéria de ficção. E na realidade várias biografias foram já publicadas, entre as quais avulta a de Denver Nicks, Private: Bradley Manning, WikiLeaks, and the Biggest Exposure of Official Secrets in American History, Chicago Review Press (2012). Mas nesse dia de Maio a sua vida mudaria profundamente e, de um jovem dilacerado por dúvidas de todo o tipo, tornou-se num herói americano. Foi primeiro levado para Camp Aridjan no Kuwait e depois para a base dos marines em Quantico, Virginia. Na semana passada, apresentado pela primeira vez ao Tribunal Militar, o soldado contou como foi estar confinado a "uma jaula" com 1,80 x 2,40 metros, entre 29 de Julho de 2010 e 20 de Abril de 2011 – nove meses dos 923 dias em que se encontra detido sem julgamento. Segundo um correspondente, “havia apenas um colchão, sem almofada, e um cobertor que o soldado não conseguiria usar para se suicidar. Havia uma instalação sanitária, sempre à vista dos guardas, mas não havia papel higiénico – sempre que era necessário, Manning tinha de se levantar, aproximar-se das grades e gritar: "Segundo-cabo detido Manning pede papel higiénico!". Tinha direito a uma hora de recreio. Mas nessa hora era algemado e agrilhoado. Quando um dia ironizou com um dos guardas sobre roupa interior, esta foi-lhe retirada. Dormiu nu e, na manhã seguinte, foi levado assim à parada. A partir das cinco da manhã até às oito da noite era impedido de dormir ou de se encostar às paredes. A sua situação prisional foi denunciada. Ellsberg, agora com mais de 80 anos, manifestou-se frente ao seu local de detenção e foi preso. Numa iniciativa de Miguel Portas, em finais de 2011, 63 deputados do Parlamento Europeu enviaram uma carta às autoridades norte-americanas denunciando a violação dos direitos de Bradley Manning. Um grupo de mais de 250 professores americanos, com Bruce Ackerman, da Yale Law School e Yochai Benkler, da Harvard Law School, protestou, exigindo ao Pentágono condições decentes de detenção. Um blog foi criado para o apoiar. As boas almas tentaram atenuar a realidade: sim, foi obrigado a estar nu e a apresentar-se nu em parada. Mas foi só uma vez. Sim, era algemado e agrilhoado na hora em que lhe era permitido sair da cela. Mas era só durante o trajecto até ao pátio. Sim, estava numa cela sem roupa. Mas ele próprio admitira ter tendências suicidas. Sim, está a ser alvo de tratamento punitivo antes do julgamento e isso viola a Quinta, Sexta e Oitava Emendas da Constituição dos Estados Unidos, além da Convenção da ONU Contra Torturas. Mas o Regimento militar não tem de obedecer aos preceitos constitucionais. Apesar de tudo, depois de uma declaração infeliz do presidente Obama, o Pentágono transferiu-o para uma cadeia do Kansas com outras condições e o seu aparecimento em Tribunal permite sonhar com melhores tempos. O que há de pior num sistema prisional cruel não é apenas o facto de criar sofrimento nos que são brutalizados. Este argumento não comove as pessoas, muitas vezes sensíveis, que acreditam existir justiça e que a culpa deve ter castigo. Mas um aspecto incontornável de um sistema prisional cruel é a existência de funcionários cruéis: directores de prisão, a hierarquia, os guardas, o secretariado, enfermeiros e médicos, assistentes sociais. Uma rede de torcionários, mandantes e cúmplices. Saber que esta gente pode morar na casa em frente, comprar pão na mesma padaria, estar sentada na cadeira do lado de uma sala de cinema é, pelo menos, perturbador e deveria ser matéria de reflexão.

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02 dezembro 2012

A farsa neoténica e as mulheres grisalhas

A biologia evolucionista designa por neotenia a persistência de características juvenis ou infantis nos adultos de uma determinada espécie. Os olhos grandes, o rosto espalmado, a macrocefalia arredondada, a face e o corpo sem pelos são características neoténicas que, aparentemente de forma transcultural, são muito apreciadas pelos humanos e determinam as suas escolhas sexuais. Toda a cosmética de promessas, a cirurgia plástica, a moda no vestuário e nos adereços tenta criar corpos neoténicos, imponderáveis, lisos, prodigiosos, arredondados e alopécicos. A cultura actual valoriza e incensa a juventude. Esta glorificação parece ser fundamental para a heteronormatividade que é suposto regular a atracção sexual nos encontros humanos . As revistas do coração e os magazines distribuídos por Personal Trainers, a barragem de “ informação biomédica e de saúde”, os programas de televisão e os suplementos temáticos dos jornais são a caricatura desta neotenia babada, a todo o tempo recriando duas entidades complementares: uma de barbies impossíveis e rapazes de bicípetes bronzeados, anoréticas e cinturões negros, bulímicas e remadores; com uma geografia de lugares de culto que tem o Natal em SPWF e a Páscoa no quadrilátero de ouro de Milão. A outra entidade é um imenso campo de concentração, com piscinas para ginástica aquática, turismo de massas, programas de autoajuda e centros de dia. De um lado jovens de todas as idades, em permanente movimento, como os programas com duas fitas de legenda heterocrónica, criando o efeito de realidade multímoda e insignificante. Do outro lado o mundo silencioso dos desistentes, reformados e pensionistas. Nesta visão dicotómica o envelhecimento surge associado à perda final da bênção neoténica ou à sua irrisória deformação. Perda, deformidade, decrepitude, declínio, deterioração, lugar de ausência e de pobreza, o envelhecimento como construção política e ideológica arrasta para a invisibilidade milhões de seres humanos, sem valor para a produção nem para o comércio sexual ou, nos quais, manifestações residuais de sexualidade são vistas como sinal de perversidade. Contra este efeito dominante um grupo de mulheres construiu uma outra identidade. Falo das mulheres grisalhas, nem jovens nem velhas, que podemos encontrar em quase todas as cidades do ocidente. Em Graz ou Leipzig, Verona ou Lyon, em Basileia ou Antuérpia, em Turku ou Lisboa podemos cruzar nas ruas, encontrar nos concertos ou nas livrarias, no metro ou nas reuniões de condóminos, mulheres lésbicas grisalhas que aceitaram serenamente os cabelos brancos e as rugas, a meia-idade, a respiração normal do seu corpo em mudança. Elas não procuram competir nos Jogos Olímpicos de Verão nem de Inverno, nem beber a água da fonte da juventude em garrafas de água Sigg, nem permanecer eternamente juvenis em patéticos corpos protésicos. Nem, de outro modo, cumprir o programa do governo encontrando os caminhos de um envelhecimento “com sucesso”, conformista, arrastado pelos corredores do voluntariado. As mulheres lésbicas grisalhas, nem velhas nem jovens, produziram uma teoria original da idade, e com ela, uma identidade própria, um mundo que Margaret Cruikshank designou por intermédio, “in between”, sem estigmas nem estereótipos negativos ligados ao envelhecimento. De acordo com Judith C. Barker, uma explicação para isto ter ocorrido reside no facto de, diferentemente do que sucede nos encontros sexuais entre homens e mulheres, em que os jogos de sedução utilizam uma linguagem corporal muito expressiva, hiperbolizada em alguma cultura gay, as mulheres lésbicas atribuírem particular relevo a aspectos intelectuais no processo de sedução. O código vestimentário clássico das lésbicas também ajudou. As camisas de flanela, os polares, as botas ou sandálias, não têm idade nem denunciam geracionalmente. Pode-se pensar que esta lista é também estereotipada. Que ignora as Femmes, ou as lipstick lesbians. Reconheço a crítica. Posso mesmo rever-me nela. Mas é precisamente a quase neutralidade dos códigos que lhe conferem vantagem. Não são particularmente excitantes. Mas duram e fazem durar. São como a comida vegetariana e os Volvo, os jeans, e os Mini Cooper. São outra coisa. Mesmo que não se saiba bem o quê. Ou são uma ponte para uma possibilidade in between, regressando a Cruikshank. E essa coisa, ou pelo menos essa ponte, oh, são precisas. Gilbert Herdt, Brian De Vries, Gay and Lesbian Aging: Research and Future Directions Springer Publishing Company