25 junho 2012

Então para o Ângelo não vai nada, mesmo nada nada





Comunicado - Arnault substitui Palha da Silva na REN



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O cavalo de Turim



publicado no jornal i (suplemento LiV)

Vemo-los recortado no topo da cumeada, na bruma, à luz áspera desse tempo cruel. São um grupo irrisório, um velho, uma mulher e um cavalo, a espécie humana e os animais que com sucesso domesticou para o seu serviço, e que com ela perecerão. Num dos últimos dias o homem decidiu partir. Carregam a carroça. Roupa, um retrato que a mulher retira da cabeceira da sua cama, alguns instrumentos de carpintaria, aguardente, um saco de batatas. Abrem a porta da estrebaria. O cavalo está de frente para a porta e junta-se a eles, desta vez obedientemente. A mulher puxa a carroça à qual se apoia o pai e a arreata onde prenderam o cavalo. O vento não pára. O lamento monótono do vento, a dança das folhas mortas, a poeira que tudo penetra e é das terras que estão próximas de Turim ou da Europa Central, porque por todo o lado sopra a mesma desolação. É então que eles partem pela estrada sinuosa que se dirige à cumeada. Afastam-se, mas a câmara permanece imóvel na casa que eles abandonaram, em torno da qual uiva a maldição e que albergou o homem, a filha e o cavalo. A câmara não se afasta daquele lugar infernal. É o olhar de quem sabe o fim da história, o olhar de um deus mesquinho e ignorante, do deus que Nietzsche declarou morto antes de se calar.
Então voltam. Derrotados. Não há saída desta casa. O que pode um homem que perdeu metade do cérebro. E um animal que deixou de comer. Talvez ela pudesse salvar-se. Mas ainda não chegou o seu tempo e quando chegar será tarde de mais para a filha do cocheiro.

Um acidente vascular paralisou um braço do homem. E meia face. Dificilmente reconhecemos nele o cocheiro brutal que Nietzsche cruzou numa rua de Torino. Quando finalmente chega, a filha ajuda-o a desaparelhar o coche, guardar os arreios, dar a forragem e a àgua ao cavalo, descalçar as botas e despir as roupas. Durante esse ritual ele está direito como uma estátua. Pressentimos, debaixo das camisas o seu corpo desmanchado e, por um momento, paira uma desgraça ainda maior que a dos corpos castigados pelo envelhecimento, a pobreza e o frio. A seguir o homem descansa, ou dorme, ou morreu e é só o seu cadáver que ali está, supino, no catre estreito. Ela acabou de cozer as batatas. São as batatas da grande fome da Irlanda, cuja doença havia de levar os sobreviventes para a América, como cantam os ciganos ébrios. Ardem nas mãos que lhes tiram a pele. As mãos delicadas dela. A mão esquerda dele, de dedos crispados, os dedos vermelhos e azuis que Oskar Kokoschka pintava nessa época, em Viena, onde parte da história, sem que esta gente suspeite, se escrevia de outra maneira.

A mulher veste camadas delicadas de roupa, sobrepostas. E capote e xaile por cima de tudo, quando sai. É ela quem abre e fecha as portas, lança os baldes ao poço, ferve a àgua, limpa o estábulo, veste e despe o homem, mantém o fogo aceso no fogão. É ela quem pede ao cavalo para que coma e toca-lhe, um gesto que podia anteceder a ternura mas que é o despojo da ternura.
O cavalo é introduzido pela voz do narrador, depois de este ter contado o episódio em que se revelou a loucura de Nietzsche, em Turim. É a primeira imagem do filme. Um animal de carga, atrelado a uma trave, mordendo o freio, avançando contra a tempestade, à luz morta de um dia anunciado como o primeiro mas que tudo indica ser o final. O cavalo é soberbo, parece trotar, conserva a dignidade dos seres que, de certa maneira, nos resistiram. Mas vai recusar a tracção e vai deixar de comer. Antes de todos, compreendeu o que um visitante enuncia exemplarmente: os homens quiseram tudo, compraram tudo e tudo corromperam. Tocar, Comprar, Corromper. Os ciganos cantarão de outra maneira este estribilho. E o vento, os acórdãos insuportáveis do órgão, não dizem outra coisa: Tocar, Comprar, Corromper, Soçobrar. O filme é a preto e branco e, como sucede com a fotografia, conduz-nos à ilusão de ser assim este mundo que retrata e de não poder ser de outra maneira: o ar distinto do homem, a assimetria do seu rosto, a postura hierática quando é vestido, a bela cabeleira revoluta, a profética barba, a forma como dorme, com o cobertor destapando os pés nus, um gigante frágil, um velho que vai morrer. A tristeza do cavalo, tão grande que, de cada vez que a porta se abre, tememos que esteja morto e os nossos olhos se fecham para uma claridade insuportável.
Não há palavras. Apenas as curtas frases que chamam para as tarefas quotidianas, uma imprecação, as vozes dos ciganos, a visita do filósofo nihilista, o comentário do narrador. As palavras que chegam para perceber que já não se ouve o caruncho, a água se infiltrou pelas paredes do poço, o pavio ficou incombustível. Uma palavra para partir, nenhuma para a derrota do regresso.
Olham pela janela, longamente, um após o outro. E baixam a cabeça. O mundo acabou. Pelo menos este mundo, o seu mundo, o de Béla Tarr e, de certa maneira, o meu também. Algures, outros continuarão a tocar e a comprar, corromper, degradar.

O cavalo de Turim é um filme de Béla Tarr, 2011 . Em exibição no UCI Arrábida, e UCI El Corte Inglês

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O tempo




publicado no jornal i (suplemento LiV)

O tempo não existe. O tempo passado não existe a não ser na memória dos seres com memória. De uma coisa que só existe na memória não se pode, verdadeiramente, dizer que exista. Grande parte da nossa existência assenta nesse esforço de preservar, estruturar, refazer o passado. Antes de tudo o nosso passado pessoal, depois o passado colectivo. E à medida que envelhecemos, ou que dominamos e ligamos acontecimentos do passado, assim nos parece que ele se torna próximo. Primeiro o tempo das gerações com que chegámos a contactar, depois torna-se próximo e familiar o tempo mais longínquo a que eles se referiam, e a seguir, por aproximações sucessivas, podemos construir a ilusão de perceber todo o duro tempo dos humanos na Terra. Este esforço de domínio e compreensão do passado socorre-se de uma operação de redução e simplificação. O mundo reduz-se ao mundo conhecido, como sucedia aos nossos antepassados antes da primeira mundialização. Aflige-nos não saber exactamente o que se passou na ilha da Páscoa, em Copan ou no Chaco Canyon, nas terras dos anasazi ou dos maias antes da extinção. Mas recuamos se o pensamento nos leva para Timbuktu e Jenne-Jonoo, para o grande Norte, para o Oriente, esse outro Mundo onde talvez se pensasse e vivesse de forma diversa. Alguns dos humanos, que escavam esqueletos, alimentos e utensílios fósseis, vão verdadeiramente mais longe e podem tornar-se coevos dos nossos ancestrais, sentirem a sua proximidade e receberem em cheio, na cara, o vento do tempo e o seu canto.

The past is a foreign country: they do things differently there. É a frase fascinante com que se inicia The go- between, o livro de L.P. Hartley que haveria de inspirar o filme desse realizador chamado Joseph Losey, ele também nocturno e diáfano. A voz dessa frase é a de um homem que se revê na infância remota, levando de um para outro lado uma mensagem que não compreende, enquanto canta sem cessar um estribilho que anuncia a desgraça : Delenda est belladonna.
Por mais que o representemos, sabemos que este passado que recuperamos pode não ter existido e, quando estamos sozinhos, desconfiamos das suas representações, das relações de causalidade entre os acontecimentos que evocamos, do seu fluxo, da sua inteligibilidade. Cresce no passado uma planta maligna.
Na Montanha Mágica, a reflexão sobre o tempo surge logo após o diálogo entre Hans Castorp e Clawdia Chauchat, nessa noite de Carnaval em que finalmente travam conhecimento e a meio da conversa falam francês, como se esse fosse a língua franca dos amantes. Pelo menos é essa a esperança ingénua de Castorp, que escolhe a forma de tratamento como tema de conversa e ao tratar por tu a russa no primeiro encontro, lhe quer dizer com isso, de forma juvenil, que esse tu é (citação) le Toi de ma vie, mon rêve, mon sort, mon envie, mon éternel désir.
O resto é conhecido. A senhora Chauchat, com o rapaz ajoelhado, disse-lhe qualquer coisa sobre a febre que ele iria ter nessa noite e saiu, batendo com a porta. No dia seguinte partiria para o Daguestão, terra de residência do marido, que supostamente custeava as estadias no Sanatório. Ao descrever a sua partida o narrador diz por três vezes que ela foi transitória (em itálico). É assim que nos referimos ao futuro. As nossas expectativas, os nossos desejos, aquilo em que depositamos esperança de realização, deviam vir sempre em itálico, para que o leitor percebesse que se trata de votos piedosos, matéria de fé, destinada a realizar-se ou não, de acordo com o acaso, o voo das aves, a sorte das cartas.

Resta-nos o presente. Mas se nos detivermos um pouco sobre este assunto, facilmente percebemos que, quando tentamos capturar o momento presente, ele se escapa como a sombra ao néscio, e se alguma coisa agarramos é o passado. Podemos decompô-lo sucessivamente. Mas mesmo esse instante que é um relâmpago, um estampido, um estremecimento da mente, quando o analisamos já não está presente, ou apenas como o mostrador de um relógio quebrado. Esta reflexão parece-me tão difícil de rebater, tão independente de outra coisa que não seja o livre deslizar do pensamento, que seguramente já ocorreu a muitos homens, filósofos ou não.
Quando percebi que o tempo não existia, o mundo material deixou de fazer sentido. Se as tragédias e os momentos de felicidade só existem verdadeiramente na fracção milionésima em que podem ser algo mais que passado, então mesmo as nossas piores penas são suportáveis, e volúveis as nossas alegrias.

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Elogio dos que lêem no metro




crónica do i (suplemento LiV)

Sant Andreu , Fabra i Puig, Sagrera.

O homem de casaco de bombazina, jeans retalhados, colete e botas pretas de cano médio, lê. Há mais pessoas a ler. Gente da terra. Só gente acostumada consegue ler no metro, calibrar os pedaços de leitura ao tempo dos percursos. Não levantar os olhos nas estações intermédias nem se alvoroçar com receio de não conseguir aceder à porta, não esquecer o espaço entre a composição e a plataforma, ouvir e não ouvir a voz que anuncia a próxima estação , Gloriès. O homem do casaco de bombazina parece um cavalheiro inglês no continente. Mas, mergulhado na leitura, deve ser um residente, alguém que vive na cidade há tempo suficiente para não levantar os olhos com o balouço da carruagem. Conto os leitores, nesta viagem da manhã. Trinta por cento, predomínio de mulheres. Mais do que em Lisboa e Paris. Menos do que em Berlim . Há profissionais, com livros encapados, marcadores de página, headphones. Há executivos que dão uma última olhadela no relatório. Investigadores que folheiam um artigo. Começaram a aparecer os ipads e os kindles. Marina. Fixo –me numa mulher de traços marcados. É alguém numa altura da vida em que se começa a construir o rosto e os traços que acentua pode ser belos. Se esta mulher tiver qualidades morais, se for inteligente, os traços peculiares da sua face podem ganhar encanto e tornarem-se atraentes. Isto é, alguém que a ame, pode achá-la bela. Lê um livro impróprio para o metro, de capa dura e letras pequeninas. Não consigo identificar o que lê. Quase nunca consigo, embora não desista, o que é uma fonte de inquietação e de alívio. A mulher levanta-se e vejo que é magra e mais alta do que imaginara. A camisola descobre o ventre, como se usa nestes anos, e ela puxa-a instintivamente, como há 50 anos as mães ou avós destas mulheres faziam com as minissaias que começavam a usar. Há um instinto que leva as mulheres a ocultar o corpo e um comportamento civilizado que as impele a desvendá-lo. Urquinaona. Ela ajeita um casaco de antílope fino e, com a mão livre, prende o cabelo atrás, preparando um rosto todo-o-terreno, para a cidade. O metro, o livro pesado que guardou na carteira são ainda uma extensão da casa, um lugar semi privado. Ao entrar no espaço público profissional a mulher prende o cabelo, um dos gestos femininos mais perfeitos, que deve o seu potencial erótico ao gesto simétrico de o soltar.

Hoje mesmo Perfect apanha o U-Bahn em Sophie-Charlotte. Espanta-se com a quantidade de gente que lê. Sorri , como sempre, sorriso completo com dentes e desta vez sem sombras porque tem um namorado novo e um país que ainda não conhece. Deutsche Oper, Bulowstrasse. Perfect olha cada um dos leitores e pensa : - Gosto de vocês, reconheço-vos pela forma como tocam os livros e os folheiam. Enterneço-me. Nunca imaginaria ser possível ver um homem ler Stendhal no U-Bahn da linha de Pankov.
O homem levanta os olhos e encontra o espanto divertido de Perfect. Entreabre os lábios como se fosse falar. Ela ri-se, ruidosamente, com um movimento hábil da cabeça que agora engloba o namorado novo, assim incluído a tempo naquele círculo de leitura. Stadtmitte.

Solférino. Está sentado com os joelhos juntos e o tronco na vertical. Tem o livro pousado sobre as coxas. As mãos que seguram o livro são brancas e ao olhá-las vem à cabeça a palavra céreas. E a palavra emaciadas. Vaneau. Sob as unhas, em quase todos os dedos, há pequenas equimoses. Iéna. Quando levanta a cabeça mostra dentes incrivelmente brancos, brilhantes, com um canino ligeiramente saliente. A cabeça glabra tem um brilho diferente. Todo ele é um ponto de luz no espaço atordoado do metro. Lê Paris Nunca se Acaba e eu perco-me no esforço de tentar encontrar a passagem exacta que ele acabou de percorrer com os olhos e só me vêm à cabeça aspectos secundários do livro, como aquele em que Ben Barka é raptado pela polícia francesa à porta da brasserie Lipp para nunca mais ser encontrado, ou a forma como os espirituosos do bar do Ritz, cinquenta anos depois de Hemingway o ter libertado, se riram de Vila-Matas e da mulher . Port-Royal. O metro vai tão cheio que nenhum artista deambulante se aventura à misericórdia dos transeuntes. E transborda das personagens literárias que os leitores do metro transportam consigo. Invejo estes leitores. Lêm os livros certos, os livros que passam pela prova real da leitura do metro, da leitura fragmentada e granular. Embora me pareça que lêm Borges . Algum deles pelo menos deve ler e na incerteza em que me encontro, penso que todos podem ler Borges. Um conto em que o leitor lesse a viagem de um homem obscuro, de olhos esforçados, viciado em compreender, hipnotizado pelo movimento de balanço do comboio nos túneis, a noite eterna do subsolo, as vozes sempre as mesmas repetindo as estações da literatura, Ternes, Courcelle, Monceau, Sévres –Babylone, Zola, Plaisance, Denfert-Rochereau, até à estação final de uma viagem que sem cessar recomeça numa cidade subterrânea, fourmillante cité, onde é impossível esquecer o blitz de Londres, o relato do achado macabro de Austerlitz, o rapaz brasileiro da mochila atingido de morte, as altas figuras esquálidas saindo queimadas , bamboleantes, do braseiro e caminhando nas ruas de Londres como Kim Phuc e os meninos do Vietnam ardendo no napalm.

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22 junho 2012






Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.

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18 junho 2012

Passos leva empresários à América do Sul em busca de oportunidades de negócio

15 junho 2012

[CONVITE]






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14 junho 2012

Clientes de Canals que paguem ao Fisco podem livrar-se da prisão







- O desfecho deverá ser semelhante ao da Operação Furacão, em que 250 arguidos já pagaram e viram os processos-crime suspensos.

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12 junho 2012

Seis sociedades de advogados unem-se para disputar privatizações







LACE nasce da vontade de 6 Sociedades de Advogados se juntarem e unirem esforços para ajudar o País e as Empresas.



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06 junho 2012

66 69 6C 68 6F 73 20 64 61 20 70 75 74 61




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REPEAT

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UNTIL

FUCKtHEM







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03 junho 2012

A Doce e o Touro de Cartago


publicado no jornal i a 1 de junho de 2012
O grupo belga SNCB anunciou o projecto de abrir em Bruxelas, na estação depósito de Schaerbeek, um Museu dos Caminhos de Ferro. A cenografia foi entregue a François Schuiten, criador de banda desenhada e, com Benoit Peeters, autor da série Cidades Obscuras. Inspirado na locomotiva a vapor 12, uma das seis Tipo 12 Atlântico que rolaram pelos trilhos da Europa desde 1939 até 1962, Schuiten desenha uma narrativa fantástica a que chamou 12, La Douce (1), e que é o ponto de partida para a celebração do transporte a vapor terrestre. A 12, diz a literatura que acompanha o livro, era sofisticada e vanguardista, aerodinâmica e poderosa. Construída por um engenheiro belga, Raoul Notesse, tinha um ar agressivo com uma estreita fenda central separando dois olhos de insecto e uma arrojada carenagem lateral. A grelha da caldeira tinha uma superfície de 3,6 m2, o diâmetro das rodas motrizes era de 2,10 m. Logo nas primeiras viagens bateu um record de velocidade, quando cobriu a distância entre Bruxelas e Ostende a uma velocidade média de 121 kms/h, tendo atingido velocidades de ponta de 165 km/h. Quase cem anos antes, em França, Alfred de Vigny , um poeta melancólico, chamaria à locomotiva o “ Touro de Cartago”, uma besta movida pela “inveja dos mercadores” que, obcecados em “ chegar mais depressa, nos entregaram a um destino incerto”. E advertia: Nous nous sommes joués à plus fort que nous tous. (2) Em La Douce, o tempo já era outro. No fim da guerra a electricidade substituira o vapor. O cenário é apocalítico, como nas Cidades Obscuras. Os ferroviários são despedidos e sucumbem sem luta. Postes altíssimos estendem cabos de teleférico sobre um país nocturno, onde as águas das barragens sobem, isolam os povoados, sepultam um mundo que soçobra. Ainda, cem anos antes, o poeta reacionário: “está traçado à volta da terra um caminho estreito e triste”. Um homem só, persiste. É o velho Van Bel. Os pulmões são uma estátua de carvão, tosse e a sua tosse infiltra todas as páginas. Theu, Theu. É assim que se tosse no francês da BD belga, assim tosse Van Bel nas reuniões com os ferroviários, isolado, marcado a ferro por uma opção energética obsoleta, sem teoria revolucionária nem estratégia alternativa aos planos de reconversão da Companhia Ferroviária. Na prisão para onde é atirado, quando os juízes e os administradores delegados percebem o perigo que lhe brilha nos olhos, no teleférico sobre as águas, na cidade de Altaville inundada, Theu, Theu, a pérola do país, um bidonville percorrido por multidões sem face nem destino. Uau, o velho tem uma aliada. É Elya, a jovem ladra, que seminua , na capa deste livro lindíssimo, olha o horizonte no dorso da Doce. A realidade onde se desenrola esta história é, mais uma vez, uma realidade paralela. Cidades arte nova ou art déco monumental, onde cresce um mal inominável que ora é a imprevisível expansão de uma figura geométrica, uma doença que atinge o centro do equilíbrio, uma missão impossível, uma inundação. Um mundo distópico, gerido por um poder distante onde os déspotas não se avistam. O mundo de Schuiten, em La Douce, é o mundo sem cor de onde deus se tivesse retirado, num momento em que as multidões não se tivessem disso ainda apercebido. Não há produção, nem troca. Não há alimentação, nem sono. Theu, THEU. É a tosse de Van Bel. Deus levou tudo com ele. Levou os mercadores e os conselhos de administração, urgh, a luz e o frio, o vinho e os juros dos empréstimos salvadores, grrr. Levou o alumínio e o chumbo, os metais nobres arrancados das composições e carruagens, o aço dos rails e das caldeiras. Pode ser preciso material para a construção civil, nesse novo mundo cujo Big Bang em breve soará, onde de novo uma raça de eleitos procurará novos mundos, fará filhos e escravos, construirá torres, escreverá poemas e baladas que glorificarão estes feitos e mais tarde outros poemas , de uma gente diversa, melancólica e vencida. Nessa altura, outra vez (e outra vez o reaça Vigny) Chacun glissera sur sa ligne, Immobile au seul rang que le départ assigne, Plongé dans un calcul silencieux et froid. (3) E talvez, em Schaerbeek, uma jovem mulher puxando pela mão um fogueiro, Theu,Theu!, RRrrr, consigam acordar a Doce para outra viagem.

(1) François Schuiten, La Douce, Casterman (2) Jogamos uma partida acima das nossas possibilidades (3) Cada um deslizará para o seu lugar na fila/ Imóvel na única posição que a partida lhe reserva/mergulhado num cálculo frio e silencioso. Alfred de Vigny, Les Destinées.

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02 junho 2012

Pouca intimidade


publicado no jornal i

Em tempos, quando talvez nem tivesse preocupações éticas, comprei um livro que se chamava Mort de la Morale Bourgeoise, uma linda edição da Gallimard em formato reduzido. O autor era um tal Emmanuel Berl, que convivera com Proust, os surrealistas e Malraux e acabara por dedicar a este, em 1932, um panfleto justamente sobre este tema, a moral burguesa , vista como um artefacto decadente. Lembro-me de que ele dizia que os operários e camponeses tinham pouco tempo para o amor e, por isso, construíam uma relação baseada no companheirismo e na entreajuda. Em 1997 Sternberg publicou no European Journal of Social Psychology um artigo em que lançava as bases de uma teoria triangular do amor. Baseado em análise de entrevistas ele reconhecera nas relações amorosas três dimensões fundamentais: a intimidade, o compromisso e a paixão. A relação em que existe intimidade e envolvimento mas falta paixão é chamada de amor compassivo. Uma autoridade a que recorri classificou-o de amor cúmplice. Cumplicidade, companheirismo e ausência de paixão caracterizariam assim o amor entre os proletários, em oposição ao amor fútil, o que tem algum empenho e paixão mas não procura a intimidade. Berl, se alguma coisa retive, considerava que a moral sexual proletária não tinha tempo para a divagação, presa que estava ao reino da necessidade, aos ritmos absurdos de trabalho, à falta de saúde e à má alimentação. O terreno para o florescimento do amor era o dos tempos livres, como sempre souberam os educadores das religiões obcecadas com a repressão sexual, preocupados em promover “actividades” que os anulassem. O amor cortês - muita paixão, grande envolvimento e supostamente nenhuma intimidade, foi uma invenção da aristocracia medieval em tempos de paz, ou dos rapazes de baixa linhagem, libertos das obrigações militares. O lazer deu mais possibilidade para contemplar e interpretar o mundo, e permitiu igualmente observações de qualidade sobre o funcionamento da mente, do corpo e das relações humanas. Só a especialização de tarefas libertou da produção alimentar, da caça ou da pecuária um conjunto de indivíduos que podia desenvolver a escrita, a música, a pintura, o canto, as artes performativas e a leitura dos textos clássicos e no início do século xii criou, no Sul de França, o amor romântico, uma revolução absoluta no envolvimento emocional entre homens e mulheres. Quando não havia electrodomésticos tinha de haver criados, ironizou Bill Bryson. Muitos criados. Os nossos tempos são provavelmente os primeiros em que o lazer e as suas produções não estão tão escandalosamente assentes numa legião de serviçais e os bens espirituais da aristocracia se puderam tornar acessíveis às multidões. Hoje, com Sternberg, considera-se o amor total como aquele que reúne uma enorme intimidade, um compromisso forte e a uma paixão fogosa. Esse estereótipo de relação total, total como a gasolina de 98 octanas, o Exterminador, a artroplastia da anca, a Justiça e o Money makeover, a força Total e a ideologia Total, é particularmente repelente. Em primeiro lugar porque toda a paixão é momentânea, como ainda hoje garantia um título do jornal e sempre assegurou a psicologia popular. A paixão, esse prodígio de energia cega, dura nove meses, descobriram os cientistas. Exactamente o tempo de uma gestação humana. Depois o compromisso, a entrega ou envolvimento que se confere a um relacionamento. Compromisso integral só o que liga um fanático ao seu voto. Todos os compromissos estão sujeitos à análise e verificação das suas circunstâncias. Compromisso é o que liga a águia mãe à defesa e alimentação das crias. Mas que dizer do peixe cuja carne é regurgitada nos bicos. Que compromisso existe entre ele e os filhotes da águia. Que compromisso pode ser firmado entre partes que não sejam livres e iguais e que não assente na sua inegociável liberdade e desenvolvimento futuro. Que compromisso diz à águia mãe que esta é a ultima refeição. Que compromisso a faz levantar voo do ninho e deixar os infantes sozinhos, na véspera de uma viagem de 6000 km . Para a teoria triangular de Sternberg, curiosamente, o amor romântico não carece de compromisso. A paixão chega como força de coesão e é quando ela diminui que se faz apelo a outras formas de envolvimento. De todas as características da ligação amorosa a intimidade é a mais ambígua. É geralmente tomada como positiva mas vista como sinónimo de familiaridade, ausência de cerimónia, pode ser demolidora. A visão de uma república estudantil, tenda de acampamento ou estúdio é ameaçadora e se estivesse em condições de dar pequenos conselhos diria a todas e a todos: para ver o “petit reveil” há que pagar. Não banalizem momentos tão sublimes como aqueles em que o ser amado estremece e entra em sono profundo, ou balbucia palavras felizmente incompreensíveis. Ou sai do duche escorrendo água. Ou se barbeia, veste ou despe, ou enfia os leggings . Toda a intimidade deve ser resguardada. A carteira, o pc, o mail, o TM, a agenda, a pen. Conservem as passwords e algumas portas fechadas. Mostrem só o que querem e quando querem. E, pelo vosso recato, façam sentir que toda a proximidade é ilusória, porque, desarmada, a visão humana é limitada. Os amantes verdadeiros fecham os olhos quando estão muito próximos para se concentrarem no que verdadeiramente interessa. A melhor relação é a da paixão intermitente, como os faróis com reóstatos que de vez em quando ofuscam e depois brilham como as estrelas do Cruzeiro do Sul na Terra do Fogo. Com um compromisso simples e que se viva sem peso. E sobretudo, pouca intimidade.

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Lucília dos bigodes


publicado no jornal i

Quando nasceu a mãe tossiu sangue e o médico, implacável, prescreveu a separação da criança. O pai organizou os cuidados à mãe e ele foi entregue, por motivos que nunca foram revelados, a um tio materno que devia ser considerado, na época, o membro da família mais dispo nível para se ocupar de um lactente. Este tio fora expulso do Exército e ganhava a vida a dar explicações aos filhos das famílias mais abastadas. Nas horas livres era também professor da Universidade Popular, que funcionava na parte velha da cidade. Vivia com uma governanta de nome Lucília, uma mulher austera, sempre vestida de negro, a quem nunca se viu outra pele além da que lhe sobrava ao buço. Durante muito tempo ele pensou que no mundo havia homens, como o tio, mulheres frágeis e de quarentena, como a mãe, e seres de trabalho, como a Lucília dos bigodes. Cresceu assim, na cidade, entregue aos cuidados avunculares e ao Pelargon da Lucília. O tio ensinou-lhe tudo o que sabia da vida: ginástica sueca, voar nos telhados como o Peter Pan, a Eneida contada às crianças, como o Homem se tornou gigante, o nó de gravata simples e o Windsor, geografia e botânica, a história das grandes batalhas através das principais entradas da grande Enciclopédia Larousse. Quando achou apropriado deu-lhe um Billiard para principiantes e um ano depois, deixou de fumar e entregou-lhe a sua colecção completa de cachimbos, incluindo um Bent e um Bulldog. Na infância dele não houve outras mulheres. Nem o riso, as roupas, os cremes, os perfumes, a cera, as lágrimas, o período. Quando a Lucília começou a envelhecer contrataram a Benedita, para ajudar. Tinha 15 anos e enlouqueceu os rapazes mais velhos da rua, que começaram a fazer jogos florais e acabaram com tentativas de assalto à casa, no horário escolar do tio, aproveitando a sesta da Lucília. Nesse ano teve varicela e ficou em casa duas eternidades, primeiro esperando pela queda das crostas e depois até recuperar as cores. Um sábado de manhã a Benedita foi ao mercado, comprou um coelho bebé e quando a Lucília foi visitar as amigas enfiou-se na cama dele com o roedor. Ficaram em silêncio, a olhar para o muro do quintal e para uma réstia de céu encoberto. O coelho, ou a Benedita, tremiam. Ou seria ele? Sentia-lhe os batimentos do coração que pareciam abafar os dele. Tecia-se em redor do seu corpo um novelo que lhe apertava o peito e só o deixava respirar um ar restrito, um pequeno volume corrente que não chegava para a voz, mesmo sussurrada. Qualquer coisa nele lhe dizia que se aproximava de uma revelação a que aspiravam os rapazes mais velhos, que cercavam a casa, batiam nas portas da traseira, soltavam gargalhadas nervosas. O coelho, ou a Benedita, ou ele, mexiam-se, inquietos. Mas ele não queria. Ainda não queria. Como nas aulas. Quando a doutora Helena fazia perguntas para o lugar e ele esperava que a ronda chegasse até à sua carteira, percorresse as filas de rapazes ignorantes que balbuciavam frases incoerentes ou simplesmente se calavam, até ser a vez dele, que julgava saber a matéria toda e a resposta certa. Tinha estado a retardar esse momento e a saborear a inclinação das coisas para a perfeição e então iniciava uma frase tão perfeita que se ia articulando ao mesmo tempo na sua cabeça e fora de si. Ouvia–a como uma música tocada em instrumento desconhecido, construindo-se enquanto ia sendo produzida e em que cada parte dependia da anterior e abria caminho à seguinte, simples e necessária, curta mas verdadeira, alimentada pelos olhares afirmativos da professora. Doce manhã de um sábado antigo, quando se trabalhava ao sábado e as manhãs duravam uma eternidade, na cama com a Benedita, pela primeira vez na cama com uma rapariga que se despira e se metera entre os lençóis cheirando aos legumes do mercado aquecendo-se nele e no coelho atónito. Ficaram assim, quietos, interditos, entre humanos e leporinos, até a Lucília entrar de surpresa e enviar a Benedita para “onde nunca devia ter saído”. A doçura das mulheres ficou para sempre associada às doenças benignas, aos pequenos animais, à evicção escolar, ao céu nublado e à punição sem recurso.

Uma teoria fragmentária do amor


publicado no jornal i
Em “O Dr.K. vai a banhos em Riva” Sebald relata que em Riva, num tratamento termal, Kafka ttavou conhecimento com uma rapariga suíça “com ar muito italiano”. Passam juntos a tarde, no lago de Garda, frente às paredes rochosas. Então, segundo Sebald, o dr. K. desenvolve” uma teoria fragmentária do amor sem corpo em que não há qualquer diferença entre proximidade e ausência”. O sexo perturba as relações entre os seres humanos. Em Riva de Garda o Dr K. explica a sua teoria a uma jovem que… estar próximo, tão próximo quanto se pode estar de uma bela mulher cuja aparência não revela a causa da sua presença em Riva e não deixar que essa proximidade separe perturbe tolde incomode manche a relação fundamental que se estabeleceu entre eles. Não permitir que nenhuma ilusão ,romântica , nenhuma atracão biológica, nenhum movimento dos corpos condicione, acelere, a relação que há-de estabelecer-se entre ambos, determinada apenas pela afinidade de pontos de vista, pelo apreço comum, pela graça que o sotaque, a sintaxe, a prosódia e o colorido das faces, o jeito do cabelo, ao forma como o corpo se mexe ao caminhar, a decisão a execução, o insight….. os aproximam . Perto um do outro, mas como dois seres humanos . Sem medo das palavras mas sem o constrangimento da cópula. E assim, longe, como amantes que mantêm um registo epistolar sem pressas, como se o tempo fosse eterno, não houvesse exércitos, incorporasses, movimentos de tropas nem as famílias recolhessem os haveres , as sementes, as mantas, as arcas e a forragem. O dr. K. pensa que pode passear pela margem do lago que vai de Riva para o sul com a rapariga que parece italiana. E é isso que faz. Como tinha decidido estabelecer com ela uma relação de onde estivesse arredada a sedução verbaliza as suas emoções, sem censura. A sua intenção é deixar claro, a cada momento que não pretende impressioná-la, compor um personagem diferente do que se julga. Ao passar pelo Hotel Europa cruzam com o militar russo na reforma que é vizinho de mesa no Lido Palace. Ele parece surpreendido por vê-los juntos. A rapariga saúda-o com simpatia. O dr. K deixa passar algum tempo e comenta que o russo não mostrou muito entusiasmo com o encontro : - Talvez ele não tivesse gostado de ser reconhecido - disse . E olhando para a vidraça do salão do Hotel Europa viu um vulto fugidio atrás do reposteiro. À medida que caminham o dr K. torna-se loquaz. Sobem na direcção da torre Bastione . Foi outrora, no domínio de Veneza, um bastião inexpugnável de defesa da povoação. - E depois um paiol - comentou a rapariga. Ele pareceu surpreender-se. - Porquê um paiol? - Todas as construções, nas colinas das cidades com história, foram, num momento de declínio, degradadas por ocupantes sem maneiras. – disse ela, com ênfase forçado, como se recitasse. Riram-se. O dr. K. apreciou a forma como ela se ria. Estava frio e ele quis imprimir mais vigor aos seus passos. O declive era grande, começou a suar e ela ultrapassou-o com facilidade. Passaram a linha da última casa. De uma chaminé saía um fumo branco que demorava a dissipar-se. A partir desse momento só havia a vegetação, a parede quase a pique do Monte Rochetta e as ruínas da torre clara, arredondada. Lá em baixo, no lago, em frente do Hotel Europa, o barco com destino a Desenzano apitou no cais, duas vezes. Do Hotel saíram três pessoas, apressadas, arrastando malas. A italiana caminhava agora à frente. Misturava palavras simples, desconhecidas do dr K. e que eram provavelmente os nomes das flores que colhia, dos arbustos em que ia tocando com graciosidade. E também nomes guerreiros, sonantes. Dizia-os em voz alta, cantarolada. Caminhava depressa, por vezes quase em desequilíbrio, bordejando o lado do trilho que se abria ao lago. O dr K. estava cansado. Ouvia…. Mas continuava a caminhar. Sabia que ao chegar ao estariam sozinhos. O sol de Março rompeu uma fresta de nuvens atrás dos montes brancos de … Ela voltou-se na sua direcção e ele viu-lhe a silhueta. E estava calmo embora o coração batesse tão alto que era quase um escândalo a forma como soava, nos seus ouvidos e no ar rarefeito da colina. Não haveria a obrigação e a confusão do sexo.






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01 junho 2012







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