30 setembro 2006

Obrigado





Pela araucária, a tília de Nuzedo, a figueira do Campo Alegre, as que se escondem nos bosques e por todas as flores.

A mala de mão


A mala de mão é um grande obstáculo à igualdade das mulheres nas funções executivas. Ignoro se há alguma etiqueta que indique a mala de mão em formalidades como as visitas oficiais, inaugurações de Escolas e Museus, presidências abertas e similares, ocasiões em que os nossos mais altos representantes se encontram ou se dão a ver ao povo em geral. Os homens têm aqueles fatos escuros, gravata e relógio proeminente. As mulheres arrastam penosamente a carteira de mão. Com uma carteira assim todas as mulheres se parecem com a rainha de Inglaterra. As mulheres com funções executivas já deviam ter pressionado os seus estilistas para estes desenharem roupa feminina com bolsos largos, onde coubessem telemóveis, as chaves de casa, as chaves do carro, agendas, lápis, canetas, comprimidos, cartões de crédito, a caixinha das lentes de contacto, um chapéu borsalino para a chuva, os óculos de sol, o porta-moedas, os documentos, baton, blush, tira-olheiras, uma amostra de perfume, o livro de cheques, o papel dos ciclos menstruais (o papel dos ciclos menstruais?), uma caixinha de preservativos e outras pequenas necessidades.

29 setembro 2006

Natural Splitting

O prestige da República

Vi o homem nas ruas das Astúrias, obrigado a beber a horrível sidra, ignorado pelo orgulhoso povo de Oviedo que aclamava o seu príncipe, o puro sangue da casa de Bourbon e a jornalista agrafa, anoréctica e fecunda.

27 setembro 2006

Para a Elisa



Quer que lhe diga
mesmo?

ele
vai com o vento
ora triste sem razão
ora alegre demais


ele
bebe
de vez em quando fuma
acha que esta civilização
vai acabar


ele
pensa que vai morrer
de manhã
e à tarde
que a vida é magnífica

ele
ouve música
sem distinguir
Ketil Bjørnstad
De Bobo Stenson

ele
não é
diferente dos outros



Se é jogo de passar
Passo
a estes (que não me lêem e admiro)

Uma Ópera responsável





A directora da Deutsche Oper, Kirsten Arms, decidiu cancelar a ópera Idomeneo, de Mozart, baseada no libreto de Giambattista Varesco, estreada a 28 de Janeiro de 1781. A obra representa o rei de Creta em luta contra as religiões e, na cena final, o rei exibe as cabeças decapitadas de Poseidon, Cristo, Buda e Maomé. A senhora que dirige a Ópera de Berlin, avisada pelo ministro do Interior e pelo chefe da polícia dos perigos decorrentes de tal provocação, decidiu substituir Idomeneo por As bodas de Fígaro.
Este episódio mostra que os intelectuais do Ocidente têm nos directores das Óperas a sua vanguarda. Atentos aos chefes da polícia e às sensibilidades religiosas eles sabem o que é verdadeiramente importante. Ontem foi o director da Opera de Paris a castigar Peter Handke pelas suas opiniões pró- Milosevic. Hoje é a senhora Kirsten a mostrar que aprendeu os conselhos de bom senso que os nossos políticos, comentadores, jornalistas não se cansaram de dar a propósito dos cartoons. Não se deve minar o diálogo intercultural com estas exibições de irreverência libertária dos pançudos europeus. A cabeça de Cristo ainda vá lá. A cabeça de Buda não é problema. Os budistas assistem resignados à destruição a dinamite do seu ícone. Poseidon? Quem é esse? Agora Maomé, o do toucinho, sabemos todos. Não irritem os homens que os queremos calmos para o diálogo das civilizações. O Fígaro vale bem dez Idomeneos, só um excitado é que não percebe isto.

Ainda na Praça de Beirute



Foto: flagrante de manifestante à hora do pequeno almoço

Tropical


Alberto Garcia-Alix




No Café Some in Bahia
O que é que foram pedir
Ia jurar que foi um chá

Na verdade ele só se lembra
de um louco que volteava
Era já noite
Embora o louco fosse visto
A qualquer hora
No Café Some in Bahia
E ela nunca
Até aquele dia pelo menos
E talvez depois
Nunca

Feliz
Ele fala todo o tempo
Ela sorri
(Só as mulheres que muito choram
Sabem sorrir assim
Com os olhos e a testa
Os dentes e as mãos)

O elemento estável
Deste quadro -
O louco que volteia
O homem que fala
A mulher que sorri-
É o louco
Se hoje voltarmos
Ao Café Some in Bahia
(Duas salas separadas por colunas
Esplanada
Um ecrã gigante
Para o futebol)
O louco volteia
E ele é que se lembra
Da mulher que sorria
Enquanto aos golinhos
Bebia chá

26 setembro 2006

Wanted, Dead or Alive

Numa praça de Beirute

Numa praça de Beirute
debaixo das bandeiras
meio milhão
as famílias dos mártires
a direcção do movimento
os combatentes feridos
e nós
debaixo das bandeiras
as cabeças verdes
brancas
amarelas
à hora certa
quando fala
o nosso guia
fazemos ondular
as bandeiras
e aplaudimos
quando ele diz que
o Presidente
se deve ir embora
que vencemos
que venceremos
que morreremos
e nós gritamos
e fazemos ondular
a bandeira
da Venezuela

25 setembro 2006

Partial out of memory


Iraque stack overflow, Cerro Muriano unrecoverable error, Saigão memory exhausted, Nova Iorque, 11 Setembro 2001, 2.973+19 mortos, free download images

Volver (3)


Luc Tuymans, espelho retrovisor



Está à varanda e vejo-o quando regresso a casa. Alegro-me e depois a alegria tolda-se com uma leve irritação:
-Onde esteve o tempo todo em que me faltou?

Vai na rua ao meu lado. Eu sei que é muito frágil, qualquer sopro o pode derrubar. Mas ninguém me rouba, hoje, a sua companhia.

Encontro-o na Estação de Caminho de Ferro. Tem um fato desadequado para a estação. Não fala. Mas sei como é clara a sua voz.

Está na cadeira da sala a ler o jornal. O jornal é sempre o Diario de Lisbôa.

Só na cara dele rumoreja a água da manhã. Só na boca dele o meu nome sai inteiro.

23 setembro 2006

Elogio de um casal que escrevia




O fresco vem reproduzido no livro A queda de Roma e o Fim da Civilização de Bryan Ward-Perkins e pode ser visto no Museo Archeologico Nazionale, em Nápoles. Representa um casal, talvez Paquio Proculo e a mulher, da casa Paquio Proculo, em Pompeia, século primeiro da nossa Era.
Ele segura uma folha de papiro enrolada. Ela as tábuas e o estilete. Eles escrevem, orgulham-se disso, querem ser retratados assim.
O pó do Vesúvio sepultou esta casa e destruíu o que este casal escrevia. Alguns séculos depois outra lava caíu sobre Pompeia, a Itália, a Gália, Hispania e a Britania. Gerações de reis iletrados sucederam-se. Carlos Magno, velho, aprendeu a ler às escondidas. Mil anos depois o rei português Pedro IV não era capaz de escrever decentemente um bilhete.
Há dois mil anos este casal escrevia debaixo do vulcão.

22 setembro 2006

Beijos manchegos (Volver)




Elas encostam a face e dão três beijos sonoros, prolongados. Nas aldeias da Mancha e nos bairros dos subúrbios madrilenos. Parecem de todos os melhores. Qual french kiss, qual beijinhos. O french kiss, uma meladice silenciosa, é uma intimidade desnecessária. O facto de não ter tradução decente diz tudo sobre a sua artificialidade. Nasceu para o cinema quando a sexualidade genital era interdita. O verdadeiro beijo francês consiste aliás na sequência de três beijos, dois laterais e um frontal rápido, todos acompanhados de estalido palatal. Nada que se compare ao espalhafato manchego, peito levantado e anca larga, face encostada à face e os lábios esticados para o pavilhão poder receber a sequencia de trinados. O beijo manchego assinala a cumplicidade das mulheres, uma conquista evolutiva. Visto deste lado remete para a protecção da infância, o banho de tina que davam a Mastroiani nos filmes de Felini, o reduto caloroso que as mulheres reservam aos que merecem. Um beijo que também quer dizer: nós somos as que vamos em frente, nenhuma contrariedade é superior á nossa determinação.

Exposição de Fotografia "Cidades Evanescentes"



CIDADES EVANESCENTES, de JAVIER DIAZ

Inauguração dia 22 de Setembro pelas 22H00

Espaço Ilimitado - Núcleo de Difusão Cultural

Rua de Cedofeita, 187 - 1º, PORTO

(até 28 de Outubro)

Exposição de Fotografia "Cerro Muriano"


Cerro Muriano

Exposição de Fotografia “Cerro Muriano”, de Luis Oliveira Santos

Inauguração do novo espaço do TA – MICRO-GALERIA TA – 22 de Setembro às 19:00
Local - Teatro Aveirense

Exposição inédita de Luis Santos com fotografias de grande formato a partir da obra de Roberto Capa, que nos re-actualiza a guerra civil espanhola.

«O lugar, não essa ideia geométrica de lugar, mas o lugar enquanto espaço ocupado por um corpo, remete-nos para a memória, para o sentir. Num lugar sente-se, independentemente de se estar. Quando olhamos para a fotografia de um lugar, mais do que olharmos para a paisagem que nos mostra, olhamos para os espaços da memória, da contemplação e, por vezes, do entendimento. O lugar faz parte do território dos sentidos.
Cerro Muriano, perto de Córdoba, em Espanha, é um lugar que reúne ao mesmo tempo memórias da Guerra Civil Espanhola e da História da Fotografia. A 5 de Setembro de 1936, pela manhã, o fotógrafo Robert Capa, realizou aquele que seria o símbolo maior do fotojornalismo de guerra: a fotografia do miliciano morto em combate.
Revisitar a fotografia de Robert Capa, a morte do soldado miliciano, e o seu lugar, 70 anos depois, é procurar a inevitabilidade do tempo que, como um relâmpago, forma-se e desaparece num instante. Só as montanhas e as pedras permanecem em construção no sossego do seu tempo. São idênticas, a luz e a natureza dos objectos fotografados. E por isso só encontramos o lugar da fotografia, nos cerros e nas planícies, se levarmos connosco a memória que nos deixaram os livros. E à volta dessa memória construímos a nossa própria inquietação. Sem isso, o lugar é apenas terra. Por isso também, procurar um lugar é sempre procurar um espaço de interioridade.
Feitas hoje, as fotografias de Cerro Muriano não representam quase nada, porque a realidade que aí se evidencia é supérflua. Ao contrário da paisagem, o lugar da fotografia de Robert Capa deixa de existir, se deixarmos de olhar para ele.»
Luís Oliveira Santos


ler aqui

21 setembro 2006

O bugio à noite (2)

Fui como o bugio, e não me abateram.






(Darcy Ribeiro
"Diários Índios, Os Urubus-Kaapor"
Capa: Hélio de Almeida
São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1996;
Fernando Pessoa)

20 setembro 2006

O bugio à noite


Robert Mapplethorpe


Ao fim de um dia como este, um primata a que os locais chamam bugio, inicia o seu grito. Não o vejo, mas sei como ele é, um macho melancólico de pelo negro, cabeça larga enterrada nos ombros, barbas longas. Parece incrivelmente próximo. O ronco é de zanga e de tristeza, ampliado por um osso anterior do pescoço e pela outra caixa de ressonância que são as copas das árvores mais altas. Interminável, sem a pausa da inspiração, nem o decaimento da expiração. Um grito gutural, conspícuo. Um grito que me envergonha por ele, assim tão irremediavelmente exposto, embora invisível. O grito territorial de um macho infeliz, quando o dia acaba e vem a noite do Inverno subtropical.

"for the fat lady" on the back


Robert Mapplethorpe




Passamos a vida a estabelecer ligações, nexos, continuidades. A rua, os transportes públicos, o balcão da estação dos correios, a mesa do restaurante, o anfiteatro. Quando nenhuma razão aconselha a esperança, insistimos no olhar de um aluno, na cara de um passante, na concentração de um leitor no comboio. Em dias claros, se os olhares se cruzam, inventamos cumplicidades com os desconhecidos. Gostos comuns, saberes partilhados.
É mentira. Somos ilhas. Abismos. Poços de medo esquecidos de que é o medo que nos conserva vivos.

Gordon




Não era um furacão. Foi perdendo força, esgueirou-se entre o arquipélago, enrolando-se no centro, até ser uma coisa de nada, uma forma de existência senciente, uma insignificância habitual nas ilhas em que Ana Paula Inácia deixou de escrever. Em Miami, prudentes ou distraídos, ainda não o reclassificaram.

19 setembro 2006

Filipe, sempre:

Abbiamo fatto del nostro meglio per peggiorare il mondo.


Montale

Lida Insana


Edward Ruscha, Untitled (Old Sign). 1989

Calou-se a mulher que escreveu
“Lamento o homem. Pela banalidade, pelo peso do silêncio e, agora, pelo nojo.”



E o seu silêncio é uma coisa insuportável.

Volver (Pedro Almodovar)




Receber no coração o ferro
Ser enterrado junto do rio
embrulhado e atado por tuas mãos
Beber o daikiri de uma puta dominicana
Encontrar os meus mortos no quarto
levantando-se
no mesmo movimento em que me baixo
Comer o porco assado
e combinar para amanhã o mesmo almoço
Fazer no teu restaurante
a festa de despedida
Morrer com uma hippie da aldeia
incendiado
ouvir-te cantar a canção
que fala de voltar

Post tardio

aqui se escreveu o que devia ser escrito.
E em outros sítios, felizmente.
Mas talvez alguém me leia. Alguém a quem em tempos dediquei a Educação Sentimental. A esse amigo devo dizer:
Nenhuma cidade fraterna foi construída no sequestro
no sequestro de uma mulher
de uma mulher como Ingrid Betancourt (e Clara Rojas, e milhares de outras e de outros, sem nome conhecido).
Nenhuma cidade livre cresceu no cárcere privado.
Nenhuma justiça sairá do narcotráfico.

18 setembro 2006

O poder dos Trabalhadores

Estive num país em que o Partido dos Trabalhadores está no poder há quatro anos. Os capitalistas podem estar sossegados. Não se nota nada.

17 setembro 2006

Manuel II Paleólogo em Paris



O Papa Bento XVI pediu hoje desculpa aos crentes muçulmanos pela citação de Manuel II Paleólogo, na sua alocução da passada semana numa Universidade alemã. O Papa falava em Castelgandolfo, debaixo de fortes medidas de segurança depois de um grupo terrorista iraquiano ter ameaçado atacar em Roma e na sequência de protestos, entre outros, do presidente da Indonésia e do Irão. Hoje mesmo, foram incendiadas igrejas na Cisjordânia e uma mulher italiana, Rosa Scorbati, a Irmã Lionella, foi assassinada em Mogadíscio. A Irmã Lionella trabalhara 36 anos em África e geria actualmente, em Mogadíscio, um orfanato.
É impossível encontrar, na imprensa ocidental, um relato da intervenção de Bento XVI na Universidade de Ratisbona que vá além da citação de Manuel II Paleólogo e da frase em que o Papa declara que “não actuar segundo a razão é contrário à natureza de Deus”.
O pedido de desculpas do chefe da Igreja católica parece ter agradado à Irmandade Muçulmana, uma das que ateara o rastilho da rua muçulmana, aos teólogos espanhóis e holandeses e aos comentadores ocidentais, que na esteira das opiniões que emitiram durante o episódio dos cartoons, subordinam a liberdade intelectual nas democracias europeias ao imprimatur dos chefes políticos e religiosos do Islão.
Manuel II o Paleólogo foi um imperador de Bizâncio, o que restava, no séculos XIV e XV, do glorioso Império dos romanos. Tinha sido capturado em jovem pelo sultão e servido nos seus exércitos. No fim do século XIV visitara as principais capitais europeias e impressionara os eruditos da Sorbonne pelos seus conhecimentos filosóficos e teológicos. "Porém", escreve Steven Runciman em A Queda de Constantinopla, "os anfitriões acabaram por se apiedar dele, pois havia vindo como pedinte, numa busca desesperada de ajuda contra os infiéis que cercavam o seu império. "
O resto da história sabe-se. Em 1453 o sultão Maomé II entrou em Constantinopla e no meio do costumado banho de sangue dirigiu-se a cavalo para Santa Sofia onde um dos seus ulema subiu ao púlpito e proclamou que era Alá o único deus.