30 junho 2009

O beijo de encher balões


Almaguil Menlibayeva


Um destes dias fui à praia e assisti ao que julguei ser o nascimento de um beijo. De um tipo novo de beijo, quero dizer. Os antropólogos que me corrijam mas tenho por certo que o frenchkiss foi uma aquisição da segunda metade do século passado. A avó Cristina confirmou-me: não conheceram nem praticaram. Nem ela, insaciável leitora de Delly e de Daphne du Maurier, nem nenhuma das raparigas da sua geração. Por regressão vitoriana ou porque nem tudo, na convivialidade, está descoberto. As línguas haviam de se encontrar em 1962, infelizmente tarde para Philip Larkin, que no Reino Unido registou o fenómeno. O frenchkiss adoptou entre nós uma designação abastardada, que me chocou desde que a ouvi pela primeira vez aos rapazolas da rua responsáveis pela minha educação sentimental, e não reproduzo por sempre me ter parecido desrespeitosa e desprovida da gravitas que deve presidir a esta intimidade das mucosas.
Estava eu então na praia da B., agora surpreendentemente entregue aos rapazes do Guincho e do Baleal. Ao meu lado um casal. Ele espadaúdo, musculado e excessivamente bronzeado. Ela de fototipo 2. Ele sorrindo todo o tempo com grandes dentes brancos. Ela com o ar adoentado das grandes amantes. Ele amparando-a, ajudando-a a despir, dando-lhe o braço para descerem à rebentação.
Não sei se ela tomou banho. Voltei a vê-la sentada na areia, um dos braços à volta do pescoço do atleta, caras coladas. Eu não olhei, fiel à lição de Calvino, embora pense que devemos olhar discretamente, para poder ver, e às vezes, sabe-se lá, compreender. Fui tomar banho, uma espécie de gincana entre os surf kaiaks que durou uns vinte minutos, bem medidos. Quando voltei eles estavam na mesma posição, na mesma imobilidade, a mesma apresentação frontal das faces. Olhei enquanto me secava. Ele tinha a cabeça inclinada e ela estava virada para mim. Podia ver os olhos dela, inexpressivos, grandes olhos de gato persa, olhos azuis de peixe lírio. Tronco imóvel, um braço flectido em torno do pescoço do homem e a mão descaindo para o dorso dele, o outro estendido até à areia onde os dedos se enterravam. A única coisa nela que se movia eram os olhos, muito abertos, pareciam fitar-me, ligeiramente interrogativos. É estranho, alguém que beija e é beijado e conserva os olhos abertos, de tal forma que, de todos os lados em que a vemos nos parece fitar, como naqueles quadros do Museu do Prado cuja técnica permite este efeito, celebrado pelos guias das excursões de Castilla la Mancha e Extremadura. Continuaram assim até ao pôr –do–sol, quando os surfistas arrumaram o material e regressam a casa. Já voltei a ver este beijo, e receio ter estado demasiado desatento e estar a relatar-vos um meme que já entrou na sua decadência: o beijo da praia da B., o beijo extático dos atletas sexuais, o beijo tântrico de encher balões.

(Este blog entrou hoje no sétimo ano consecutivo de publicação)

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29 junho 2009

O Partido da Conservação do Comunismo





O Conselho de Guardiões do PCP é uma fonte de surpresas. Para quem gosta de história o PCP é um bem inestimável. De vez em quando os pais portugueses deviam levar os filhos ao Portugal dos Pequenitos (ao verdadeiro o do Prof. Bissaya Barreto, não o que o Pacheco Pereira promove sem “ganhar um tostão”), ao Museu da Língua Portuguesa, à casa museu de Miguel Torga, ao programa cultural da Câmara Municipal de Coimbra, ao Coro dos Pequenos Cantores, ao Badoca Parque, a um visionamento da colecção completa da Câmara Clara e a uma reunião do Comité Central do PCP. Digo isto em nome da memória, da preservação das espécies , da conservação do ambiente e do respeito pela diversidade. O pensamento único é abominável e a conformação com uma visão monocolor da realidade pode matar a creatividade infantil . É difícil encontrar ao vivo, quem entre nós utilize esta linguagem para defender estas causas. O Avante desta semana insere dois artigos sobre o Irão. À Crónica assinada por Jorge Cadima já o Rui Bebiano e o José Simões se referiram. Na secção internacional o Avante publica uma notícia intitulada Irão acusa imperialistas de ingerência.
A fonte parece ser a Prensa Latina. Faz-se uma contabilidade dos mortos e feridos – com a preciosidade de se ficar a saber que entre os feridos se contam 400 polícias. O governo iraniano diz que os detidos são agitadores ao serviço de potências estrangeiras, continua o Avante. E como não tem outras fontes para lá da Prensa Latina e do governo de Mahmoud Ahmadinejad o jornal não diz mais nada. Na próxima festa do Avante os comunistas portugueses ainda se arriscam a ajoelhar no pavilhão da República Islâmica, a chamar camaradas aos polícias e às milícias do Corpo de Guarda da Revolução e a ouvir a saudação do Guia Supremo. Até lá, jovens pais, levai até junto deles as criancinhas.

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28 junho 2009

Ela assobiou!


J Craig Annan




Uma rapariga de sweater verde, penteado desalinhado e olhos semicerrados, com uma expressão algo tola, passou rente a Hans Castrop, tocando-lhe quase com o braço. E, nesse momento, ele ouviu um assobio...
P 64

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Sweaters como lhes chamavam


Lotte Jacobi

Quase todas as mulheres vestiam casacos curtos muito justos de lã ou de seda, brancos ou às cores, sweaters como lhes chamavam, com as golas viradas para fora e bolsos dos dois lados.
P 59

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Deixe-se de fitas


Rrose Sélavy,
(M. Duchamp como Rrose Sélavy, fotografado por Man Ray)



Um daqueles que no momento derradeiro se lembra de fazer uma cena medonha e se recusa a morrer. Foi então que Behrens (o médico-chefe) o admoestou: “ Queira fazer o favor de se deixar de fitas!”, foram as suas palavras, ao que o moribundo imediatamente obedeceu, vindo a morrer em paz absoluta
p 70

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Tous les deux


Lotte Jacobi ,O livro de Peter Lorre


Se tentarmos meter conversa com ela a única coisa que diz é “Tous les deux!”, pois mais não sabe
p55

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Indolência


Francesca Woodman


Era de indolência que se queixava. “Sinto-me tão indolente!”, dizia num tom arrastado e com a afectação própria dos seres incultos.
P58

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O que ali jazia


Hugo Ball no Cabaret Voltaire, Zurique 1916



Eis o que era indecoroso e nem chegava a ser triste- como nem chegam a ser tristes as coisas que têm a ver com o corpo e única e exclusivamente com este.
P 40

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Consideração por si mesmo


Meret Oppenheim



Estava habituado a comer muito, mesmo quando não tinha fome. Era uma questão de consideração por si mesmo.
p. 25

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Hans Castorp


August Sander

quando empreendeu a viagem em que o conhecemos contava vinte e três anos
(p49)


A Montanha Mágica, Thomas Mann, Publicações Dom Quixote, Maio 2009

ágrafo ponto net: terra deserta

Não me habituo a isto.

24 junho 2009

Chamavam-lhe o peixe


Mudava a água enquanto ele aguardava, imóvel, numa apertada cela secundária. Dava-lhe de comer à hora certa e, até hoje, ele vinha sempre, voraz mas delicado. Viveu na maior solidão entre filmes do canal franco-alemão, três livros empilhados da Sophie Calle, o relato de Veneza do Predrag Matvejevic, o catálogo do centenário de Palladio, dois castiçais, o centro de mesa, às vezes com flores, geralmente amarelas. Viu-me partir e chegar do hospital , emagrecer e engordar, nem sempre feliz. Viu quatro estações, uma ventoinha , a luz da manhã filtrada pelo véu de algodão, dois desenhos de uma mulher da linha da Lousã, a virgem de Guadalupe, uma torre de dêvêdês, fumo light de LM, recados em post it, pontos de exame impecavelmente corrigidos, as tuas lágrimas e sorrisos. Viu-me através de uma lente que para ele era convexa e me diminuiu muito aos seus olhos, a mim, seu carcereiro, fotógrafo, coveiro.

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22 junho 2009

«He loved beauty that looked kind of destroyed.»






Gostava dessa espécie de beleza
que podemos surpreender a cada passo,
desvelada pelo acaso numa esquina
de arrabalde; a beleza de uma casa devoluta
que foi toda a infância de alguém,
com visitas ao domingo e tardes no quintal
depois da escola; a beleza crepuscular
de alguns rostos num retrato de família
a preto e branco, ou a de certos hotéis
que conheceram há muito os seus dias de fulgor
e foram perdendo estrelas; a beleza condenada
que nos toma de repente, como um verso
ou o desejo, como um copo que se parte
e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.
Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós
consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada
onde a vida encontra o espelho mais fiel.

Rui Pires Cabral


AVERNO 027
Rui Pires Cabral, Oráculos de Cabeceira, 56 pp., 11 euros
(Tiragem Única de 300 exemplares)
Capa e ilustrações de Daniela Gomes. Paginação de Inês Mateus.

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...e muitas coisas que não vou citar agora




…Tudo isto foi registado pelo naturalista e médico Thomas Browne na sua lista de prodígios, tudo isso e muitas outras coisas que não vou citar agora, tirando, talvez, a cana de bambu com funções de cajado de caminheiro graças à qual, no tempo do imperador bizantino Justiniano, dois monges persas que passaram muito tempo na China a sondar os mistérios da sericicultura conseguiram cruzar as fronteiras do império e trazer para o mundo ocidental no seu interior os primeiros ovos de bicho-da-seda.



W.G. Sebald Os Anéis de Saturno, X

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21 junho 2009

Pela Secretaria de Estado dos Negocios do Reino



Na Villa de Chacim se hade estabelecer a primeira Escola...

O Intendente encarregado deste estabelecimento nos casos occorrentes que não vão providenciados, e necessitarem de providencia dará toda a que for precisa, e nos casos de maior entidade, como de tudo o mais concernante ao mesmo estabelecimento, e seus progressos dará conta pela Secretaria de Estado dos Negocios do Reino para ser presente a sua Magestade, e determinar o que for servida. Palacio de Lisboa em 30 de Julho de 1788 - Visconde de Villa Nova de Cerveira - Theotonio Gomes de Carvalho

Estatutos para as Escolas de Fiação de Seda e Filatorio - Capitulo XXI e XXII

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20 junho 2009

Dando-lhe a reprehensão que merecem pelo modo mais suave que possa ser, sem usarem de palavras descomedidas, ou de alguma violencia



Devem os Directores tratar com toda a civilidade as Mestras dando-lhe a reprehensão que merecem pelo modo mais suave que possa ser, sem usarem de palavras descomedidas, ou de alguma violencia. Achando-se porem que ellas prevaricão no seu Officio, e que são indulgentes, com as discipulas negligentes, ou indignas devem participar isto ao Ministro Intendente, para que este averiguada a verdade dê necessaria providencia, até as lançar fora sendo preciso.

Estatutos para as Escolas de Fiação de Seda e Filatorio - Capitulo XVIII

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19 junho 2009

Por este trabalho vencerão cada hum diariamente mil réis



Serão Directores das Escolas José Maria Arnaud, e seus Filhos... tendo a indispensável obrigação de andar girando por ellas os mezes de fiação... Por este trabalho vencerão cada hum diariamente mil réis, só no tempo em que as Escolas tiverem exercício, e em quanto se occuparem no ensino das Escolas.

As mesmas Mestras receberão dos Directores todas as instruções necessarias para a perfeição, e bom methodo da fiação, as quaes lhe farão entender clara, e distinctamente, entregando-lhas por escrito na lingoa portuguesa, não deixando porem de executar as declaradas neste Regulamneto.

Estatutos para as Escolas de Fiação de Seda e Filatorio - Capitulo XV e XVI

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18 junho 2009

Dias com árvores



As nossas árvores voltaram a ter dias.

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José Eduardo Magritte

Ceci n'est pas
un candidat

Foi o José Eduardo Magritte. Chamou toda a gente à hora nobre, actuais e futuros empregados. Vieram todos, menos os benfiquistas. Fiquei com mais consideração pelos benfiquistas. Diz-se que enchem aquela sala sempre que lhes cheira a acontecimento. Não estava nenhum. São como as gaivotas, as andorinhas, os bichos necrófagos. Vêm quando há sinais, fumos, fogo, cheiros. E não vieram. À parte isso estava lá tudo. Os fotógrafos eram tantos que o homem saíu chamuscado. Fez o discurso do candidato. Mas havia algo de discordante, algo que dizia que aquele acontecimento era falso. Demasiada leveza na pose. Pouca gravidade. Ceci n’est pas un candidat. Um candidato não sorri. Tem as coronárias apertadas. Pede desculpa à família. Tem a fronte carregada da disfunção eréctil. Este José Eduardo Magritte ainda sorri. Talvez se uma vaga de fundo surgir, se dos Açores aos estúdios da TVI um clamor pedir, se o Benfica, Jesus, continuar a perder, se o Miguel, o amigo do Porto lhe continuar a ler a sina transcendente, talvez ele volte.

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Até as lançar fora se assim o merecerem



A economia e policia das Escolas deve correr por conta das Mestras as quaes se hão de esmerar em ter cada huma a sua Escola com o possivel aceio, e na melhor ordem que possa ter, tendo principalmente cuidado em revezar a agoa das caldeiras ao menos trez vezes ao dia, para que a Seda seja limpa, e menos gomosa, e em acautelar o desperdicio de lenha... e o Intendente procederá contra ellas até as lançar fora se assim o merecerem.

Estatutos para as Escolas de Fiação de Seda e Filatorio - Capitulo XII

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17 junho 2009

Pequena imprecação junto às muralhas da tua indiferença para ti e para as tuas amigas




Quero que o Cavaco te nomeie conselheira que vás dormir na tenda do Kadhaffi que sejas doutorada honoris causa pela Universidade Autónoma que desfiles no Corso Como com um vestido do Ungaretti que o Toninho Lobo Xavier te beije a mão que o Bloco te convide para a Câmara da Lousã em lugar elegível ou o PSD para vereadora da cultura da Câmara de Gondomar ou que escrevas poemas em que açucena rime com melena , perda com lerda e entrepernas com o teu ar de puritana escandalizada com esta liberdade. Quero que te afogues no próximo fluxo menstrual enquanto nós protestamos por não haver nadadores salvadores, com Junho já tão adiantado, plena época Istival e ergues o braço para salvar o manuscrito do Humberto Helder e uma bolacha amaricana ou o último discurso do Obama. Quero que uses pasta dos dentes Couto para que a tua língua saiba sempre bem, e gel da Famintime para que floresças jasmim ou melhor ainda ilangilan.

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Porque por jornal cuidão na perfeição da obra



Deve principiar nos mezes da fiação o trabalho das Escolas indefectivelmente ao nascer do Sol, e antes disso devem as fiadeiras estar nas Escolas, tendo cada huma a sua fornalha acesa. Devem ter huma hora para jantar, e acabarão o trabalho meia hora depois do Sol posto. Os proprietários da Seda lhes devem pagar por jornal, e não por arrates, como se costumava, porque por jornal cuidão na perfeição da obra, e por arrates só cuidão em fazer maior quantidade.

Estatutos para as Escolas de Fiação de Seda e Filatorio - Capitulo XI

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16 junho 2009

A mesma a lançará fôra da Escola



A Mestra he a que deve reprehender as discipulas, na forma abaixo declarada... Porém se alguma discipula se fizer incorregivel, excedendo tres comissos na mesma especie de erro, a mesma a lançará fôra da Escola...

Estatutos para as Escolas de Fiação de Seda e Filatório - Capitulo X

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15 junho 2009

Deve ter todo o cuidado e disvelo no recato, e honestidade delas



A mesma Mestra ... deve ter todo o cuidado e disvelo no recato, e honestidade delas, não consentindo, que se demore na Escola por ociosidade pessoa alguma, que possa distrair as discipulas da grande atenção que devem ter sôbre os cazulos, frouxidão da baba, limpeza, e igualdade do fio, e no cruzamento que devem fazer, antes de girar a roda, e em tudo o mais que ensinarem os Directores.

Estatutos para as Escolas de Fiação de Seda e Filatório - Capitulo VIII

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14 junho 2009

Lerda Bloga

Rui Curado da Silva, aqui


Um dos painéis de comentadores da SIC da noite eleitoral era muito higiénico: um comentador do PS, outro do PSD, outro ex-PS que pisca o olho ao PSD e outro do CDS. É a higiene standard da Quadratura do Círculo. Dois desses comentadores eram os mesmo que conseguiram errar quase tudo o que iria suceder em 2008 do ponto de vista ideológico, num célebre exercício quase de astrologia política. Mas eles voltaram aos semblantes carregados que proferem presságios que irão abalar o mundo, tudo culpa da ideologia dos outros, claro está, a crise não existe como todos nós sabemos...

Uma mulher geralmente bem reputada no Povo




Todas as Escolas serão regidas por huma Mestra cuja habilidade há-de ser aprovada pelos Directores, e a sua probidade pelo escrupuloso exame do Intendente, que procurará que sempre seja uma mulher geralmente bem reputada no Povo... Esta Mestra deve ter ordenado diário em quanto tiverem exercício as Escolas, o qual deve ser o dobro do que vencerem as discipulas.

Estatutos para as Escolas de Fiação de Seda e Filatório - Capitulo VII

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13 junho 2009

Tropismes, librairies



Na cidade de B. há uma livraria chamada Tropismes. A cave tem livros de política, antropologia, psicanálise e comunicação. Dois cavalheiros simpáticos estão prontos para esclarecer qualquer dúvida. A cave é, como se vê, dispensável. O andar térreo tem livros de poesia, ficção estrangeira e ficção de escritores de B., livros de História e de viagens. Entre as estantes, discretas, estão duas mulheres . São muito magras, de braços longos, cabelo claro, fino. Talvez tenham sardas. Uma delas estava sentada, na tarde em que passei, num recanto da Tropismes, e lia, à luz de um candeeiro, o que podia ser uma nota de encomenda mas me pareceu o melhor e o mais secreto dos livros. A outra aproximou-se para saber se eu precisava de ajuda. Falava baixo e apercebi-me de que havia em toda a livraria um silêncio respeitoso, resultado do efeito de amortecimento dos livros, do elevado pé direito do edifício das Galeries des Princes e da atitude dos clientes, folheando livros demoradamente. A mulher que me interpelava e a mulher sentada pareciam a mesma mulher. Vestiam tecidos leves, transparentes. Esta descrição é enganadora, porque estas mulheres são sobretudo espírito, quase só Espírito e falar do corpo delas não facilita a impressão que causam e estou agora a tentar transmitir-vos. Direi que os cabelos, o porte, a idade, a fala sussurrada mas clara, a postura discreta criam uma impressão tão forte, tão de acordo com o papel central que as mulheres, a literatura e os livros têm na minha vida que não consegui pedir nenhum livro, com receio de as desiludir, do meu autor não estar à altura, de quebrar a doce gravidade que aquelas duas mulheres transmitem à livraria. Nos escaparates havia Joseph Roth, uma reedição de Judeus Errantes seguido do Anticristo pelas editions du Seuil. E Alexanderplatz de Doblin. E havia ainda um pequeno livro da Sophie Calle nas Actes Sud, que falava da RDA, e comprei para o Bonirre, embora tencione ficar com ele. Mas eu procurava Jour de souffrance, de Catherine Millet. Jour de souffrance, murmurei com a voz embargada e vi a mulher à minha frente, só Espírito, e ao fundo a outra mulher, que era a mesma. Atrás delas havia um pequeno gabinete na penumbra, e por um momento julguei ver Catherine M., de olhos baixos, enfrentando 50 homens priapisados e atrás dela o marido, o cabrão do poeta, l' ecrivain, le vrai écrivain, que finge fotografá-la, que está ali para o que der e vier, mas de facto está virado para as mulheres da livraria e alinha com elas um sorriso cúmplice. Souffrance d'un jour repeti. A minha voz era inaudível e abandonei Catherine M. aos 50 homens, a esta mulher que era o Espírito e ao cabrão do poeta, lui-même.

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Um homem do Mal: Ian Hamilton



Faber and Faber, Collected Poems, 2009

The Recruits

"Nothing moves", you say, and stare across the lawn.
"The sun is everywhere. There will be no breeze."
Birds line the gutters, and from our window
We see cats file across five gardens
To the shade and stand there, watching the sky.
You cry again:"They know."
The dead flies pile up on the window sill.
You shudder as the silence darkens, till
It's perfect night in you. And then you scream.


Os Recrutas

"Nada se mexe", dizes, e olhas para lá da relva.
"Há sol em todo o lado. Não vai haver uma aragem"
Pássaros alinham-se nas goteiras, e da nossa janela
Vemos uma fila de gatos atravessar cinco jardins
Até à sombra e ficar ali, a olhar o céu.
Voltas a dizer: "Eles sabem."
As moscas mortas empilham-se no peitoril.
Tremes enquanto o silêncio escurece,até
A noite ser perfeita em ti. E então gritas.


Ver tb. Cinquenta Poemas, Ed. Cotovia, Lisboa 1995

He a mesma Senhora Servida prohibir



He a mesma Senhora Servida prohibir, que na Provincia de Tras os Montes, ou Beira, possa ter exercício por tempo de cinco anos outra semelhante máquina de filatório, sem que primeiro seja examinada, e aprovada pelo dito Arnaud, ou Filhos...

He Sua Magestade Servida ordenar, que na Provincia de Tras os Montes, e Beira, naquelles lugares em que houver maior produção de Seda... se estabelecerão Escolas de fiação em máquinas Piemontezas, e methodo, tambem Piemontez... em cada um dos referidos lugares ficará nelle proibido o uso de máquinas antigas.

Estatutos para as Escolas de Fiação de Seda e Filatorio - Capitulo III e V

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12 junho 2009

Sobre a introdução do método piemontês na fiação de seda em Chacim



O dito Arnaud e Filhos ajustarão com os proprietários da Seda, que a quizerem torcida no filatório ao modo Piemontez, o preço que lhes levarão por este trabalho... Terão porem os ditos Arnaud Pai e Filhos obrigação de ensinar com toda a lisura e sinceridade quanto he preciso e necessario para a perfeição do pello e trama de todas as qualidades, ... não admitindo outros discipulos e torcedores que não sejam da Provincia de Tras os Montes ou naturaes deste Reino.

Estatutos para as Escolas de Fiação de Seda e Filatório - Capitulo II

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11 junho 2009

Real Filatório de Chacim



He Sua Magestade Servida conceder a José Maria Arnaud, e seus filhos Caetano e Felipe, o uso fructo do filatório que manda estabelecer na Provincia de Tras os Montes, e da casa que deve construir para o mesmo filatorio... E concede alem disso a Jose Maria Arnaud trezentos mil réis para elle e sua mulher; e a cada hum dos sobreditos dous filhos duzentos mil réis... Igualmente concede a todos três a propriedade de hum terreno baldio, ... de que gosarão em quanto residirem na dita Província.

Estatutos para as Escolas de Fiação de Seda e Filatório - Capítulo I

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10 junho 2009

Para cada hum dos Portugueses facilmente se fazer rico em pouco tempo



(...) Huma das terras mais proprias para a produção, e multiplicação deste utilíssimo vegentante, eh Portugal e o Algarve; e o insecto que das suas folhas se alimenta, pode dar materia sufficiente para ocupar com proveito muita gente, que sem esse exercício passaria parte da vida ociozamente, e, sem o lucro que delle resulta, poderia mizeravelmente cahir em pobreza (...)

Rafael Bluteau - Prosa Económica, in Maravilhoza Industria, 1761

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08 junho 2009

E agora?

O ciclo político continua. O partido Socialista vai fazer campanha em decomposição. A direcção e os seus apoiantes mais próximos não aguentam a humilhação de uma derrota e vão começar as deserções , as travessias do deserto e as súbitas vocações empresariais.
O PSD terá um novo alento e, como disse a arguta mana Avilez, teve aqui um vislumbramento da plausibilidade da governabilidade. O país ainda se vai encher de ternura pela senhora Ferreira Leite.
O CDS vai tentar o melhor resultado possível para ajudar a formar governo a quem quer que ganhe sem maioria absoluta. Os que sobreviverem verão Portas a assinar, por imperativo patriótico, o contrato de manutenção da frota de submarinos.
O Partido Comunista continuará a ser a única força que, e a resistir heroicamente a.
O Bloco vai crescer mais dois por cento.
O Cavaco em Belém e a Maria também.

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Europeias: a armada italiana

Na Europa tudo na mesma. Em plena crise económica e financeira os partidos socialistas foram penalizados e os partidos de direita recompensados. Berlusconi teve um resultado muito positivo e algumas das garotas de programa do Cavalieri vão sentar-se em Bruxelas.

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Europeias: a fuga dos cérebros

No final do debate da SIC, Pacheco e Lobo Xavier perecem ter-se apercebido de um drama. Com a eleição de Rangel, Nuno Melo e Diogo Feio a direita parlamentar ficou entregue aos broeiros do costume.

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Europeias: um deputado branco

Outro comentador assegurou que os 4,6% de votos brancos elegeriam um deputado. Seria um deputado estranho,mais barato como os produtos brancos, cujo programa oscilaria entre o do PNR e o do presidente da Junta de Mamoa. Mas se os brancos elegessem um deputado, as abstenções elegeriam mais deputados que todos os realmente eleitos.

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Europeias: o milagre da anulação dos votos

No painel de comentadores da SIC , António Lobo Xavier disse o essencial: o CDS tem que possibilitar uma solução governativa que torne os 21,4 % de votos da esquerda, votos nulos. Pacheco Pereira e António Costa assentiram gravemente.

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Europeias: Rui Tavares

O Bloco teve um bom resultado. À luz dos holofotes sobressaiu o sorriso de Rui Tavares. O Bloco precisa muito de pessoas como Rui Tavares nos centros de decisão.

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Europeias: Nuno Melo

Já Nuno Melo trouxe à política alguma novidade. Se a direita portuguesa fosse como Nuno Melo o país estaria melhor. A cumplicidade de Melo com Paulo Portas ficou espelhada no choque de ombros e no abraço lateral face às câmaras. Dois forcados amadores antes de saltar para a arena.

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Europeias : Vital

A relação de Vital com Sócrates é da ordem monárquica. Vital comportou-se sempre como um plebeu temeroso de não merecer a companhia dos pares do reino nem a condescendência do soberano.

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Europeias : o adeus de Vital

Vital foi igual a si próprio, na despedida. Falou de corridinha, que o líder esperava. Ouviu os aplausos da corte decadente . Mostrou mais emoção que a situação aconselhava. Saiu do Hotel para um carro de alta cilindrada pago pelos dinheiros públicos. Vital não foi derrotado. Foi o primeiro eleito de uma lista horrenda, com duas presuntas autarcas, dois ex-ministros e Edite Estrela. Não vai para casa. Vai para o Parlamento europeu.

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Europeias: o nosso maître-à-pincer

JPP teve mais tempo de antena do que qualquer dos líderes partidários ou deputados eleitos. Mas admoestou os jornalistas pelas simpatias que estes sempre demonstram para com o Bloco de Esquerda, a quem estavam a permitir vários comícios. Pacheco assentava arraiais num painel da SIC onde residem ainda altos dirigentes do PS e do CDS.

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07 junho 2009

Europeias

Há uns anos houve um dia assim. Quando a noite acabou, o primeiro-ministro tinha desaparecido. São só projecções, como eles dizem. Aguardamos serenamente.

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Europeias

Rui Tavares pode ter sido eleito. Uma boa notícia.

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7 de junho



White Angel Breadline (1933), fotografía de Dorothea Lange

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05 junho 2009

Todos os votos contra Vital são bons



De repente apercebo-me de que no meu círculo próximo ninguém vota. Os mais radicais vão votar branco. A maior parte não vai lá. As justificações são várias. Houve alguém que disse que se os votos brancos fossem contados o sistema ficava envergonhadíssimo. Não fica. O sistema é como o leitor hipócrita. Não tem vergonha. Também alguém escreveu que a abstenção devia ser contada e deixar vagos, em Bruxelas, os lugares correspondentes. Não é. Em Bruxelas, em Strasbourg, em S. Bento e no Parlamento letão, sentam-se os eleitos pelos 25% de votantes. E ocupam todos os lugares. Falam por vocês, leitores hipócritas. Decidem por vocês. Até já ouvi citar o bastonário dos advogados. Marinho é boa pessoa, mas em consciência só votaria em si próprio.
A verdade é que na noite das eleições, nos dias seguintes, ninguém contará os vossos votos. Umas carpidelas pela abstenção e vamos já à sede partidária, ouvir o primeiro deputado eleito. Esta democracia só precisa de 25% e da vossa abstenção. De 25% e da praia. De 25% e da vossa raiva estéril, solitária.

03 junho 2009

Intervalo da manhã



Gosta dele. Está triste. Não está triste , está cansada. Está preocupada. Está grávida.Está longe de casa, da família. Quer acreditar nele. Ele disse que faria tudo o que ela quisesse. Gosta dele. Vê-se na perna, no pé esquerdo.

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Elogio e memória do Lazarinni



O Público trazia há tempos uma reportagem sobre uma máquina de cozinha que ostenta o estranho nome de Bimby e, segundo a jornalista, já equipa 80.000 casas portuguesas.
A existir, a máquina é totalitária. Aplica-se a tudo, prepara todos os pratos, condena o fogão a uma utilização residual. Nas ilustrações uns bimbos excedem-se em elogios. Também aqui a vida de algumas pessoas foi mudada. A Bimby marcou na vida delas um antes e um depois. Maridos recuperados para a doçura do lar, filhos amansados, chefes de cozinha ou anónimos , jovens e reformados, uma socióloga de Braga e uma educadora de infância.
A jornalista assina Ana Rita Faria e não declara conflitos de interesses. E não deve ter nenhum. Até deu as contas do marketing, os estudos custo-benefício que mostram que a Bimby se paga a si própria em um ano, desde que sejamos o tipo de pessoa que come três iogurtes por dia.
Ana Rita : Uma menina não se bimba, deixe lá isso para os sociólogos de Braga.

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01 junho 2009

Votar contra o Sócrates


Acho que se deve votar. O voto branco, nulo e a abstenção são ignorados pelo sistema político. O voto será sempre uma escolha relativa, táctica, prática. Se excluirmos 25% de cidadãos bafejados pela graça, a imensa maioria não se identifica com nenhum programa, líder ou sub-líder, para andar por aí em comícios ou arruadas. Deixo de lado a fauna abjecta dos directores gerais e esposas, assessores, pequenos e médios autarcas e famílias, directores de hospitais e de agrupamentos de centros de saúde, administradores delegados filhos e filhas, brochistas e esposas. Essa gente é o esteio do regime. Vive da tença. O seu entusiasmo é proporcional às ajudas de custo. Organizam-se em sociedades discretas onde tratam dos valores e da sua reprodução. Deviam ser ignorados pelas pessoas de bem.
Deixo de lado os excursionistas, os pobres de espírito, o exército de reserva, os que fazem fila para um lugar na plateia e batem palmas, sorriem, dizem ohhhh de espanto a mando dos cartazes.
Deixo de lado os rapazes de família que vêem na chatice das tarefas partidárias a tarimba para um futuro radioso.
Deixo de lado os convictos. Os militantes dos partidos minoritários. Eu tive a fé deles e a doença deles.
Mas se excluirmos os pulhas, os excursionistas e os convictos que alimentam o espectáculo do regime, o que resta é a multidão que os suporta com indulgência e agora, ao que parece, se prepara para abster.
Como tomar banho na praia, beber um copo ou dormir são actos insignificantes, é preferível a insignificância do nosso voto. Um voto contra Sócrates, que representa o pior dos últimos trinta e cinco anos: inscreveu-se no PS porque se enganou na porta, assinou projectos que simbolizam a degradação imobiliária do país interior, transformou o PS no partido dos Coelhos e dos Varas, dos Campos e dos Vitais, esteve na trapalhada do Freeport, na entrega do CCB, criou a dona Lurdes e a dona Ana, privatizou o ar e nacionalizou o BPN, foi elogiado ad nausea pelo dr. Dias Loureiro. Aos socialistas que votam nessa sêxtupla de pesadelo que assombra as rotundas da pátria- Campos e Estrela, Gomes e Estrela, Capoulas e Estrela, Vital e Estrela, Elisa e Estrela – devíamos dizer: jamais esqueceremos.

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