30 setembro 2004

Outono, take2

Se a vida corre tão bem
é melhor que seja ao Sol.
O ar ameno,
e cada um com a sua sombra a par.
Nem tudo há-de contrariar a pele
e a pele basta para abrigo.
O dia é exuberante e a marmelada
seca nas varandas.

copiado de Sofia

29 setembro 2004

Diário do homem que via passar a florista

Tenho um contrato de vida precário.
A chegar ao fim. O mercado está bom e conto renovar.
Ou pelo menos renovar a roupa.
Acho que ela me vê muito cinzento.

Diz-me na tua escala:
sou o homem da tua vida
ou um amigo com quem te deitas.
Estou à beira da promoção final.

Talvez não seja Coetzee a leitura indicada.

Ou talvez não seja a florista
A pessoa indicada
Para cruzar todos os dias
de manhã.

4 de Novembro

Edição Portuguesa de 'El Mal de Montano', de Enrique Vila Matas
COM A PRESENÇA DO AUTOR
Organização: Casa Fernando Pessoa e Instituto Cervantes.
Local: Casa Fernando Pessoa, Rua Coelho da Rocha, 16. Telefone: 21 396 81 90

4 de Novembro, 18h30

MJA no Canal Rosa

M.J A. está a ser entrevistada num canal cor-de-rosa pelo Boquinhas. – O vosso casamento dura há muito tempo. Acho que ele disse mesmo o número exacto ou aproximado. Uma obscenidade, de qualquer forma. Qual é o segredo?Fico a olhar e devo ter um sorriso imbecil na testa. Afinal simpatizo com ela, nunca tinha reparado como atira o cabelo para trás. E gosto da gesticulação, com os dois braços, as mãos paralelas. Ritmo e elegância. Ouço palavras: projecto, permanência, feito a partir do já construído, desenvolvimento, atenção. E repete como se quisesse aumentar a convicção. Outra vez: projecto comum e permanência, duração, avaliação. Desapontou-me, devo confessar. Bastava que dissesse que se amavam, que se amaram todo o tempo, que ainda se amam.

Egberto Gismonti e Olivia Byington. Pedro Tochas

Para os mais distraídos: Quinta feira no TAGV, às 21:30h, o reeencontro de um grande músico com uma cantora. Aquela sala já viveu uma noite inesquecível com Gismonti e esta promete.
No Museu dos Transportes, a partir de hoje e até sexta feira, anuncia-se Pedro Tochas, numa performance entre o stand-up comedy e o teatro físico.

Exegese Robespierre Paranoia

Nem era preciso assinar. Conheço-te a escrita. Já era assim na escola. A setoura de Literatura fazia uns quiz com textos do programa a quem tínhamos de encontrar um autor. Nessa altura eu acertava sempre. Era quase só intuição. Nada de estudo intensivo. Nem leituras a mais. Tu não gostas que eu leia. Nem és de muitas leituras, pois não? Tens livros, eu sei. E lês muito, para ensinar tanto, tens de ler. Mas nunca leste para aprender, e é pena. Agora é tarde de mais e não ia com a tua figura, não te esforces. A tua escrita, mesmo quando te tentas ocultar, e foi o caso, é a escrita do Robespierre. Até aí nada de especial. Não é isso que te identifica. Há muitos a escrever assim: a Razão com a guilhotina atrás. O que te distingue, mesmo quando te escondes no anonimato, é que tu não suportas o anonimato. Tu queres ser apreciado. Robespierre, mas com carreira no Partido vencedor e apreço no vencido, sobretudo se o Partido vencedor e o vencido se encontrarem no Estado. Porque para as encomendas do Estado lá estás tu. E assim o teu estilo Robespierre tem dois matizes distintivos: a vontade de se mostrar e a preocupação de não cortar os laços da contratação. Era fácil reconhecer-te no simpático comentário anónimo. Mandasses assinado e eu publicava-to. Falasses de política, porque tu vieste à política embora disfarçasses, e eu respondia-te. Agora assim, disfarçado de namorado da Loreta, nem penses. Este é um blog de princípios. Queres publicar? Publica no Diário da República.

28 setembro 2004

Filipe de volta aos nossos dias

Parecia que não ia acontecer nada. Que era só o engano do equinócio, os livros que afinal ninguém lê, a marmelada nas taças à espera do papel vegetal, o silêncio de Loreta a juntar-se ao silêncio de Ana Paula Inácio, ao silêncio de todas as mulheres que suspenderam essa parte da sua vida que era a escrita. E de repente há uma esperança. Voltou uma das vozes originais, uma escrita imprevisível, uma cabeça que gosta de pensar.

27 setembro 2004

One name is joy

To be a living bat is to be full of being; being fully a bat is like being fully human, which is also to be full of being. Bat-being in the first case, human-being in the second case, maybe; but those are secondary considerations. To be full of being is to live as a body-soul. One name for the experience of full being is joy.

J.M.Coetzee in Elizabeth Costello

Ser realmente um morcego, significa sê-lo pleno de ser; ser plenamente um morcego é como ser plenamente um ser humano, o que também significa sê-lo pleno de ser. Um ser morcego, no primeiro caso, um ser humano, no segundo, talvez; mas isso são considerações secundárias. Ser pleno de ser é viver como uma entidade única: corpo-alma. Alegria é um nome para definir a experiência de se ser pleno.

(Tradução de Maria João Delgado) ed. D. Quixote

26 setembro 2004

Saudades da Zazie

Caso não tenhas visto. Já fiz dois execráveis posts políticos. Ou foram três? Podes vir, Zazie.

Educação Sentimental é no Eternuridade

Andar sem pensamento (4 e fecha)

Amor é na tripa
mas agora tenho um truque
faço força na barriga
e não te deixo chegar à cabeça

Um verso mais para o meme de Larkin

Clandestino acrescentou um verso a Falar na Cama: falar-te daquela altura em que ainda influenciava a tua maneira de calçar.

Há sempre alguém


Estava a ver que ninguém dizia nada.

Efeito Sócrates num opinion-maker

Além disso, com a projecção externa que as eleições directas conferiram à sua vitória, o novo Secretário-geral fica em condições privilegiadas para protagonizar com êxito o novo ciclo da vida do PS, incluindo a ronda eleitoral que se inicia com as próximas eleições regionais e que culmina com as eleições parlamentares de 2006. Foi assim que Vital Moreira, opinion-maker da Causa Nossa (ver link no Público), comentou os resultados eleitorais no PS. Felizmente que existe a blogosfera para podermos saber o que pensam os opinion-makers, assim desassombradamente, sem constrangimentos.

Aclamação na Sociedade Aberta

Na sua primeira alocução como vencedor do PS Sócrates não quis responder a nenhuma pergunta dos jornalistas. Começa bem. O outro não foi ao Parlamento na primeira interpelação do seu mandato.

Vitória

Sócrates ganhou. Votaram os que gostam dele, genuinamente. Mais os que gostam de estar com os que ganham e perceberam desde o início que ele ia ganhar.E ainda os que gostam de estar com os que gostam de estar com os que ganham. Assim, Sócrates esmagou. E veio fazer o discurso do vencedor. A certa altura: Os socialistas decidiram. (pausa enfática) Está decidido. Com aquele ar duro com que alguns decretaram, em tempos, o fim da história. Isto disse. E mais deve ter dito que para mim a noite eleitoral acabou ali.

O campo

O noticiário da tarde de sábado na Antena Um foi dominado pelas declarações do Sub-Director Geral de Saúde. Todos os anos no Verão há centenas de pessoas que adoecem com a Febre da Carraça. Frequentemente o medicamento esgota-se nas farmácias. Agora dois infelizes morreram na aldeia F. E o Sub-Director Geral, ao fim de oito árduos dias de investigação epidemiológica veio esclarecer que se tratava de um surto epidémico porque atingia apenas a aldeia F.Pedagógico, deu alguns conselhos à população. Começavam assim: "Não se deve ir ao campo. Ao campo só se deve ir se necessário."

Saúde

O Estado em que se encontra este blog” é, felizmente, um dos memes mais bem sucedidos na blogosfera. Felizmente para a saúde pública. A bomba-inteligente é um dos blogs mais saudáveis.

No Descampamento do Bruno

O Bruno produziu uma interessante confissão adolescencial: Descampados
ou A prioridade do sono, ou Andaste quinze dias a acender fogos e adormeceste sem o apagar.

Grande Ilusionista


O João mostra um momento importante da vida de um vírus. As coisas acontecem, ao nível do infinitamento pequeno, cheias de cor e movimento. É assim que as vê a nossa ilusão de consciência.

Mais sobre a Paixão

Na Tasca o Jamiroo continua a escrever coisas interessantes. O seu contributo contra a paixão foi explosivo. Caso não tenham lido:
“Eu também sou contra. Hoje explodiu-me um terrorista nas mãos. Ainda não sei, mas acho que morri.”

Outras Leituras

Dei uma volta com algum tempo nos meus blogs. Foi esta madrugada. Por respeito para com a escrita nocturna de alguns e de algumas. Eu sei que isto não é vida. Bem gostava de seguir o conselho da ninfa: “Get a life”. Mas não consigo. Primeiro porque acho que sou um pré-rafaelita. Depois porque a língua italiana me é simultaneamente próxima e distante. Ao ouvi-la parece-me estar no limbo da compreensão, numa agradável sala pré-anestésica. Mas o núcleo da coisa escapa-me. Não me queixo, até é bom, se não houver avaliação final.
Tinha andado nas ruas. Tanto calor, não estava? Reparei no imenso sucesso do meme que como um vírus segreda ao cérebro das mulheres: “Deves usar cuecas fio-dental”. Paradoxalmente a minha admiração desviou-se para as mulheres que lhe conseguem resistir. Pensei: se é verdade que o corpo das mulheres foi desenhado pelos homens o meme, “Deves usar cuecas fio-dental”, é um meme masculino. E os seus efeitos são agradáveis, quase sempre. Mas intelectualmente estou com a capacidade de resistência das que não se deixaram infectar.
Não se confunda esta minha opinião com qualquer tolerância relativamente às cuecas de gola alta ou meia perna. Uma vez, antes do pensamento único, estava de visita a um país do socialismo real. E vi umas montras horríveis, com uma exibição de cuecas deste tipo. Panos informes, elásticos à mostra, tendência para XL à primeira lavagem. Pensei que as mulheres que usavam aquelas coisas deviam ser muito infelizes, sobretudo se não tinham outras escolhas. E que era impossível aquele país ter mulheres no poder. Nenhuma mulher, mesmo antes do meme “Deves usar cuecas fio-dental” ter sido inventado, escolheria um modelo daqueles para o plano quinquenal. Esta descoberta enfraqueceu muito a minha militância comunista.

Paul Celan

Ontem ainda, em Babelia, uma crónica assinada por Francisco Jarauta assinalando a edição espanhola de Poemas Póstumos de Paul Celan (em 98 João Barrento traduziu para a Cotovia com o nome de A Morte é uma Flor, Poemas do Espólio, alguns dos mais de quinhentos poemas que a Trotta, Madrid, agora edita traduzidos por Jose Luis Reina Palazón).
Transcrevo:
Desde as primeiras linhas de Todesfuge aos cadernos póstumos passa um caminho marcado pela experiência da construção de uma linguagem, descentrada, com a sua sintaxe fracturada, como que exposta ao grito de quem em todas as circunstâncias liberta a poesia do seu silêncio para a situar no grito de quem deseja nomear- e de que maneira- o acontecimento que assinalou a sua origem. Essa era a "sua zona de combate", o lugar onde se citam o esquecimento e a memória, o verdadeiro rosto da catástrofe, esse rosto que se ilumina extraordinariamente nas palavras do Discurso de Darmstadt de 1960 ao receber o prémio George Buchner: "escrever nas cinzas da linguagem", que é como dizer, naquele lugar em que a linguagem transformada por uma violência nova estala com o seu resplendor, permitindo enunciar o que antes tinha sido proscrito.

Livros de Outubro

Outubro é o melhor dos meses para caminhar nas serras. Os livros editados em Outubro podem ser lidos em Dezembro. Estes são alguns dos livros anunciados para Outubro. A alegria da sua publicação é vizinha da euforia das caminhadas quando a tarde avança e foi bom o grupo reunido.

W.G.Sebald, Austerlitz. Três anos depois da sua morte, a primeira tradução de um monstro do século XX...
e bem a propósito, isto anda mesmo tudo ligado, O Mal de Montano, de Villa Matas.

Casa na Duna de Carlos de Oliveira, na Assírio. Finalmente uma edição de acordo com a matriz estética de Carlos de Oliveira, como-eu-o-imagino. Talvez seja estimulante e alguns ágrafos e ágrafas voltem a escrever.

Os Mitos Gregos, de Robert Graves, uma reedição. A propósito de Graves, na Babelia de ontem Barbara Jacobs escreve uma crónica emocionada sobre o filho Williams, de quem em Espanha se edita uma autobiografia: Sob a sombra da oliveira.
Ainda na Assírio: Histórias de um craque, de Fernando Assis Pacheco e dois volumes de Walter Benjamim.

Maria Manuela Cruzeiro, uma notável investigadora do Centro de Documentação 25 de Abril publica na ed. Notícias Melo Antunes: o sonhador pragmático. Na Cotovia, António Pinto Ribeiro reune ensaios sobre a cidade, cultura e democracia sob o título Abrigos.

E na poesia, um espanto, uma felicidade: reedições de Sophia, Herberto Helder, Ruy Belo e dois novos livros de Manuel de Freitas e Pedro Mexia.Carlos Bessa publica na Assírio (uma voz não devia ocultar a outra, mas devia calar do que não sei).

Ynari é um livro de Ondjaki com ilustrações de uma mulher fabulosa chamada Danuta Wojciechowska; Mopsos uma história da Hélia Correia e do Henrique Cayatte.

A actividade editorial portuguesa apesar de tudo é melhor do que os leitores portugueses.

24 setembro 2004

Agradecimento

Ao Rui Branco e a Esplanar pela tradução de L'Usage du Monde de Emmanuel Carrère.

Fidelidade

"Adormeci nos braços dele e acordei três vezes de noite. Sentia-me bem. Estava no quarto dele, no hotel que também era o meu, na cidade de L. Sentia-me bem no meu corpo, nos restos do champanhe, na cama larga de um hotel, numa cidade que não me era hostil. Levantei-me e ele não acordou. Fui à mochila abrir a caixa das mensagens do telemóvel. O meu namorado tinha respondido. Correctamente? Já não me lembrava da resposta certa. Aquela servia-me. Estava confusa. Lembrava-me da cara dele, umas horas antes. Eu não o conhecia bem e estava escuro. Mas era uma cara bonita e lembro-me de que não era exactamente a cara do homem com que me tinha deitado e que não tinha tido tempo para ver rir, sorrir, zangar-se, surpreender-se, olhar longamente, surpreender-se. Abri os olhos algumas vezes e o que via era a cara de alguém com quem nunca tinha estado assim tão próxima, tão intima, como se costuma dizer. Via surpreendentemente a cara de R., um homem que eu não me lembro de ter sequer desejado, que me surpreendeu um dia por falar com uma voz tão doce, tão próxima de um instrumento de sopro. Pensava: é o Mamute. Achava que por decência devia pensar: é o Mamute. Mas o Mamute era um braço que abria para um peito largo, eram duas mãos enormes nas minhas coxas. Tive pena de não ter dado tempo à sua cara, afinal bonita. De não ter dado tempo aos lábios, aos dentes, ao ângulo do maxilar. Alguma ruga devia haver na testa dele, algum sinal particular que ao abrir os olhos me desse uma cara apropriada ao Mamute com quem me deitara no quarto que não era o meu, no hotel da cidade de L. Mas não podia fazer nada contra aquilo que me estava a acontecer. E era bom estar com R., afinal com R., inesperadamente com R. Desliguei o telemóvel e voltei para a cama para o calor do corpo do Mamute. Agora li o que vocês escreveram. Acho que não percebem nada. A matéria de que é feita a fidelidade? Eu estava a falar dos corpos não encaixarem como costumam."

set by//Loreta Granada

23 setembro 2004

Talvez Florista

Há um homem por quem passo todas as manhãs. Na Rua Bernardo de Albuquerque ele caminha de frente para mim, antes disso não sei que sentido têm os seus passos. Depois do ponto em que nos cruzamos resisto sempre a olhar para trás, embora a minha curiosidade seja cada vez maior. Suponho que se dirige aos edifícios brancos que encerram escritórios, pequenas empresas, uns poucos serviços públicos, alguns bancos nos pisos térreos. O que me falta ao meu trajecto, preencho-o com estas adivinhas. O seu rosto não me é completamente estranho, não sei se vindo de outras manhãs em que o vi e julguei não ver, se de dias mais antigos. Pode ser uma das caras da minha juventude mudada pelos anos, ao ponto de não conseguir recuperar a original. Ou posso tê-lo encontrado já assim, dissociado da Rua Bernardo de Albuquerque, no aparelho de Raios X que manobro de manhã à noite, mesmo ali, por cima do Shopping. Ele olha para mim descaradamente quando passa, talvez saiba que sou a técnica do Raio X que o atendeu na sua doença. Ou não sabe nada e um dia sorriu só por que me apanhou a esquadrinhá-lo tão atenta.

sent by// Talvez Florista

Mudar a vida

Georgia é bem melhor que Comic.

O TELEMÓVEL, UM ANTÍDOTO DO CHAMPANHE

Quando eles partiam, e só eles partiam, confiavam a matéria de que é feita a fidelidade (delas) à guarda de eunucos ou aferrolhada em cintos de castidade.
Agora, partem eles e partem elas, e eles bebem champanhe em Oxford com a Muriel e elas ficam sozinhas na cidade de L., onde bebem champanhe também. Eles raramente têm rede e fazem telefonemas económicos só às horas combinadas. Elas, quando um mamute investe, enviam chamamentos por SMS.

André Bonirre

Houve em tempos uma guerra...

(...) As pessoas queixam-se de que tratamos os animais como objectos, mas, na realidade tratamo-los como prisioneiros de guerra . Sabes que, quando, pela primeira vez, se abriram ao público os jardins zoológicos, os zeladores tinham de proteger os animais dos ataques dos visitantes? Os visitantes achavam que os animais estavam ali para serem insultados e abusados, como prisioneiros depois da vitória. Houve, em tempos, uma guerra contra os animais a que chamámos caça embora de facto, guerra e caça sejam a mesma coisa (Aristóteles percebeu-o com toda a clareza). Essa guerra durou milhões de anos. Só há uns séculos atrás a ganhámos quando inventámos as armas. Só depois da vitória estar consolidada é que nos pudémos dar ao luxo de cultivar a compaixão. Mas a nossa compaixão é muito superficial. Por baixo dela existe uma atitude mais primitiva. O prisioneiro de guerra não pertence à nossa tribo. Podemos fazer dele o que quisermos. Podemos sacrificá-lo aos nossos deuses. Podemos degolá-lo, arrancar-lhe o coração, lançá-lo às chamas. Quando se trata de prisioneiros de guerra não há leis.

J.M. Coetzee, Elisabeth Costello, romance ed D. Quixote, p 106,in cap. 4 As Vidas Dos Animais, Os poetas e os animais.

22 setembro 2004

J.M. Coetzee

Elisabeth Costello editado em portugal pela D. Quixote. Não escrevo mais nada enquanto não acabar.

O sorriso do Mamute

Estamos no quarto do hotel, na cidade de L. O reposteiro deixa entrar muito pouca luz. Estou no canto do sofá, aninhada. O Mamute pôs as mãos nas minhas coxas, desceu até aos joelhos, afastou-os e deixou-se cair em cima de mim, procurando –me a boca com sofreguidão. Senti-me enclausurada. Vi uma vez um mágico numa praça que se fazia rodear de cadeias e cadeados e depois começava uma dança de movimentos vermiculares para se libertar. Foi assim que me soltei e disse qualquer coisa na minha língua procurando refúgio na casa de banho. À pressa enviei um sms ao meu namorado: “Estás apaixonado?” Enquanto o escrevia pensava num teste de escolha múltipla. Todas as interrogações seriam castigadas. Sempre me enfurecem as hesitações. Mas que resposta queria de facto ouvir? Carreguei duas vezes no botão Send e voltei à sala. O Mamute acendera um candeeiro e estava sentado no canto que eu ocupara. Era enorme. Tinha as pernas estendidas, a camisa aberta, o cabelo desalinhado e sorria. Pareceu-me um rapaz com quem acampei uma vez. Dormimos duas noites semi vestidos. Eu deixava-me abraçar e acariciar mas resistia sempre às investidas quando elas requeriam maior intimidade. Fingia-me adormecida e quando aquilo se tornava quase insuportável e a cabeça era um concerto de penetração afastava-o determinada. Quando nasceu o dia vi a cara dele e tinha este mesmo sorriso pacificado que me parece ser o comprazimento na derrota. Este domínio da violência comoveu-me e aninhei-me no colo do Mamute. O telemóvel tremeu lá onde o deixara. Mas deixei de o ouvir quase ao mesmo tempo em que deixei de ver.//sent by Loreta Granada

21 setembro 2004

A língua é a língua

Flaubert gritou: Eu sou Emma Bovary. Percebemos sempre o que esse grito significava e não era preciso ter feito amor num carro de vidros pintados. Que pena tenho de não poder gritar: Eu sou Loreta Granada. Pudesse e estava agora a escrever por ela, a viver por ela na cidade de L., ou lá onde ela está depois de L. Escrever por ela deve ser melhor do que esperar por ela. Pelo mail dela na caixa de A Natureza do Mal. O Joaquim diz que Loreta escolheu o Mal para escrever e que isso me devia alegrar. Então porque é que ela não escreve agora? Que terei eu escrito para ela me escolher? Ou foi Bonirre quem ela escolheu? Ou a ti, PC, que já nem sinto, sempre pensei que fosses mais radiação que matéria. Será que foi a florista que a sensibilizou para o mal? Eu volto a escrever sobre a mulher que talvez seja florista. Ou foram os posts políticos? Eu falo de política não tarda. Será que lhe desagradei por ter alterado o mail? Mas foi só o Larkin e umas vírgulas. Eu tiro o Larkin, o Larkin não significa nada para mim, eu sei que é tarde demais para mim, há mais gente a dizê-lo e de outras maneiras.
Queria ser capaz de escrever Loreta, assinar Loreta . Mas eu sei lá o que se sente quando o mamute poisa as mãos nas coxas, sei lá o peso dele. Quando vi a língua do sardão pensei na língua do sardão. Nunca vi a língua de Loreta. Se visse a língua de Loreta ia pensar: é a língua de Loreta, a língua de Loreta, a língua.

Reguem os vasos

Não se esqueçam meus pequenos. Reguem os vasos, disse a florista. Reguem todos os vasos. Pelo menos, os vasos. Podia ser a frase que alegra o dia. Mas cheguei atrasado ao sítio onde podia começar a perceber. Quatro meses de atraso, se calhar. O dia ficou negro-ónix.

Enquanto não chega o mail de Loreta

Eu não sou Loreta Granada. Nunca teria imaginação para escrever sobre uma mulher como Loreta. Só conheço mulheres-anjo. São académicas, bem comportadas, muito instruídas, citam adequadamente, usam perfumes suaves de gladíolo e jasmim, sempre floral. São fiéis, não sei bem a quê, mas fiéis pelo menos à ideia de fidelidade. Têm emprego, ou vão ter emprego e têm futuro. Têm um presente fantástico, quase não têm passado e têm um futuro radioso. Algumas não vivem aqui. Estão em Boston, Copenhaga, Milão a fazer doutoramentos, post-doutoramentos ou em linhas de investigação de sucesso. Não conheço nenhuma professora à espera de colocação, arquitecta sem atelier, funcionária dos Correios sem balcão, jornalista desempregada, bailarina sem palco. Sei que há, e muitas. Sou solidário, posso até emocionar-me. Mas não conheço nenhuma. Não têm blogs. Não sei como se vestem, como prendem os cabelos, a que cheiram de manhã.
Loreta não é parecida com nenhuma das mulheres que conheço. Aliás ainda não conheço Loreta. Eu simplesmente recebo mails de Loreta, que nem me são dirigidos, vêm para a direcção do Mal. Leio, faço uma ou outra alteração (fui eu que pus aquela coisa sem jeito de eles falarem do Larkin e do Spielberg mas na verdade ignoro do que falaram) e posto. Ainda tentei estabelecer contacto. Responder a. Era um endereço do tipo lor2456@yahoo.com. Não tive resposta.
Ontem, estava a ler Coetzee, e encontrei esta frase terrível: "Os dentes foram feitos para estraçalhar e a lingua para revolver a comida". É preciso que alguém diga isto a Loreta, pensei. Mas depois lembrei-me que a noite dela na cidade de L. começou no Museu de História Natural. Talvez Loreta saiba demais disto: dentes e línguas, esófagos a abrir e a fechar.

20 setembro 2004

Florista Carvera

Talvez ela seja florista. E apareceram floristas a sério. Da Estrada de Benfica, vinte e quatro horas por dia ao seu dispor. Fantástico. Será que vai aparecer o blog do mamute? Ou Loreta Granada, ela mesma?

Loreta no quarto

Loreta no quarto do hotel vê pela janela os edifícios da Avenida P. enquanto o Mamute a placa pelas costas. Aproveita para se descalçar. O pé deixa de lhe doer e ela sente o corpo do outro abraçado contra o seu e a urgência do sexo dele nos quadris.
Está muita luz no quarto embora seja apenas a luz da cidade de L. Solta-se e fecha o reposteiro. Está escuro de mais. O rapaz aproxima-se e beija-lhe o pescoço. Não é totalmente desagradável. Estende e atira um pouco para trás a cabeça para alargar a superfície de pele onde ele se aplica. Neste movimento vê-lhe a língua. A língua do sardão, pensa. E estremece. Ele percebe que não é de prazer.
O Mamute soltou o Esquilo. Mas o Esquilo é agora um animal em guarda. Porque diabo havia o mamute de ter a língua do sardão? Na verdade não se lembra de ter estudado a língua do mamute nem de alguma vez a ver representada. Terá sido a única a beber demais? Recuou para o sofá e aninhou-se num canto. Ele aproximou-se devagar, pegou-lhe no pé ferido e aqueceu-o entre as mãos enormes. Estavam calados. Não lhe parecia bem sussurrar na língua natal e parecia-lhe artificial dizer pequenas palavras ternas em inglês. Pensa na fidelidade e no Javier Marias em Oxford com a Muriel. A fidelidade é então isso. Um corpo que não reconhece ainda o outro, um joelho que não sabe onde encaixar, um som que a garganta se recusa a soltar, um pedaço de pele acariciado a contrapelo.
As mãos nas coxas são pesadas, o peito não tem a humidade necessária, e é urgente mandar uma mensagem ao namorado. Para decidir se contraria a matéria de que é feita a fidelidade.

Loreta e o Mamute

"Eu sou sentimental. Não aconteceu nada na minha vida que me fizesse assim, sou porque sim. Porque o mundo me devolve tudo maravilhado, por mais oposto aos factos que isso seja. Na cidade de L., tal e qual como nas outras cidades e dias, aconteceram coisas que eu pude encantar.
A verdade é o princípio da história, quando feri o meu pé na Avenida P. e ele me ofereceu um braço onde me apoiei, um pouco curvada e de rosto fechado, imediatamente apta a caber no formato debilitado que convinha ao seu braço forte. Falámos da terra dele, dos filmes do Spielberg, dos poemas do Larkin e fomos os últimos a entrar no Museu de História Natural. O grupo que acompanhávamos ocupava já todas as mesas e tivemos que nos manter de pé, o que facilitou a minha vacilação. O hall central, em redor do qual se distribuíam mesas, gente e aperitivos variados, era ocupado por um paquiderme à escala real, o que me fez para sempre pensar naquele homem como um Mamute. Por altura do terceiro copo de champanhe ficámos ambos, ou pelo menos assim o julguei, totalmente fixados nos papéis que íamos representar: um Mamute e um roedor minúsculo, um Esquilo talvez. Foi assim que me desconcentrei do braço e comecei a perceber o calor que tinha o peito dele. Era um peito tão grande, tão afável que o meu desequilíbrio não teve daí em diante outro sentido.
Quando o homem baixo e de uniforme - talvez o Castor - interrompeu a brilhante enumeração das leis que orientavam a criação de gado na Escandinávia e nos estremeceu para nos pôr na rua, tínhamos perdido definitivamente o resto do grupo. Só um Mamute podia conduzir-me ao hotel naquela noite de avenidas iguais, o que estava completamente de acordo com a nossa situação. Por essa altura já quase não falávamos. Murmurávamos antes, frases inacabadas e estrangeiras para os dois, o que obrigava a uma proximidade em que recebia toda a simpatia daquele peito onde queria ficar. Foi assim que atravessámos quatro avenidas da cidade de L., entrámos no Hotel M. e chegámos ao 15º andar e a uma janela com vista para tudo. A olhar ao longe o mais imponente, fálico e coincidente dos monumentos, deitei a cabeça naquele lugar quente."


//sent by Loreta Granada

19 setembro 2004

Padrecito Lobo Antunes

António Lobo Antunes escreve uma crónica aos sábados em Babelia. Em entrevistas recentes ele desqualificou de tal maneira esta escrita que deixei de a ler. Mas a capacidade de fingimento dos criadores é infinita, quase tão grande como a confusão dos seus sentimentos. A crónica desta semana é uma evocação comovida do pai, o senhor de olhos azuis que deixava cartazes em todo o lado: Isto não é um cinzeiro. A crónica termina com a frase do Nuno doente de peritonite, doença mortal na época, a pedir para ver o paizinho. O paizinho salvaria o Nuno e ainda havia de salvar o António e um dia, nesse lugar de extrema sabedoria que é o leito de morte, revelar aquilo que quis deveras ensinar aos filhos: a capacidade de apreciar a beleza.

18 setembro 2004

Adições

Do Brasil, escrito a duas mãos (por Eric Boer Nielsen
e Moacyr Mendes de Morais), vem Babel, pedibus compensanda est memoria.
No Círculo de Dentro, Bruno Santos tentou há tempos levantar a questão da eutanásia. Por enquanto sem êxito.

No Cócegas na Língua é possível reencontrar Oteiza, Cillida, Roy Lichtenstein, Bilal. Quem edita Jill Bioskop tem de certeza muito bom gosto.

A tragédia absoluta

Hoje na primeira página de El Pais, Woody Allen, depois de receber um abraço de Almodovar, em Donostia, confessa a sua visão pessimista da vida: "Para mim a vida ou é trágica ou extremamente trágica".E depois: "Se Bush ganha, a tragédia será absoluta e automática".

Escutas

Ela disse-lhe que não voltava, que era impossível, que aqueles não eram os seus dias de certezas. E acabou assim: Agora chama-me chata, obsessiva e desliga-me o telefone na cara.
Houve um grande silêncio. Depois ele disse baixinho, tão baixinho que tive de ampliar a gravação para ter a certeza de não ser só um ruído de fundo:” Chata. Obsessiva.” E desligou-nos o telefone nas caras.

Educação Sentimental (primeiro dos posts póstumos)

Quando desejarmos um adolescente e leve toque de mãos o que há a fazer é cantar mais alto.

17 setembro 2004

A Florista enganada

Uma rapariga cruza comigo todas as manhãs quando vou para a repartição. Deve ser florista. As floristas têm o ar triste de quem tem de decidir entre palmas e coroas, manter decentes flores embalsamadas, magoar sem lágrimas nos espinhos das rosas. As floristas dos centros comerciais são as mais tristes de todas. Sem luz, depressa lhes tomba o pescoço e quase sempre para o lado errado. A pele devia ser orvalhada como as pétalas das flores expostas. O cheiro das folhas em decomposição não favorece as floristas. Esta florista começou por cruzar os olhos comigo, depois houve um dia em que sorriu e agora- deve ter vindo de férias e percebido que sou um dos seus amigos mais fiáveis - diz-me adeus com a mão aberta. Eu não sou fiável. Nunca compraria flores nem as colheria dos prados. As flores morrem, arrancadas da terra. Engano a rapariga que deve ser florista e dou-lhe uma esperança falsa na vida quando lhe sorrio de manhã.

16 setembro 2004

Conta-me las cosas

Ontem aconteceram coisas maravilhosas. Presenciei algumas. Talvez não tenha estado à altura de todas elas. Talvez não consiga explicar às pessoas como as admiro, como gosto delas, como preciso delas mesmo quando pareço ter pressa em ficar sózinho. Mas de manhã e até adormecer, estive com algumas, e tive notícias de outras, pessoas excelentes. Como são todas conhecidas não posso falar delas. Falo então de Laura Restropa, escritora colombiana presente no Forum de Barcelona, autora do romance vencedor do último Prémio Alfaguara. Ela disse palavras incríveis num debate com Henning Mankell que El Pais reproduziu. "Las cosas no son como son, sino como se contaron". E o sueco contou histórias africanas, uma das quais acabava assim: "No es bueno morirse antes de haber terminado de contar la historia".
Enquanto isto ocorria, Delgado era nomeado patrão da LusoMundo e patrão do seu próprio patrão. Os plutocratas ocupam os lugares do poder meticulosamente e traçam a régua e esquadro os caminhos do futuro. Não me apetece falar disso. Não me apetece aquilo a que chamam o combate político, não me apetece a gravata, o argumento jurídico. A minha gente é esta gente simples com quem passei o dia: têm bossas nos braços, aleijões escondidos. Eu não consigo sempre ser gentil com eles. Eles traçam, com a sua vida que nem sempre é simples, uma linha de resistência, que pode ser derrotada, provavelmente será derrotada. Mas é aí que eu quero estar.

15 setembro 2004

Gina

Ainda tremo ao escrever o nome dela, Gina, e hoje estava à venda, foi a melhor coisa da manhã, por 5,85 euros, Sanseverina, nem precisas de comprar o JN, A Cartuxa de Parma em capas creme, cartonadas.

Falta de estilo

Das duas vezes em que tive um interesse, uma inclinação, vá lá um bocadillo de paixão, foi por miúdas que só tinham uma coisa em comum: aos seis anos acordavam às seis da manhã para treinar. Hilda era skate, patins em linha e coordenação motora para ser a melhor no confronto com os rapazes da rua. Mariana fazia exercícios de voz para parecer rouca. Senti com ambas aquela queda para dentro do peito de que uma vez falei e que tu dizes que acontece nas artes performativas. Talvez por isso me acusem de falta de estilo.

"Estás apaixonado?"

Quando Loreta, na cidade de L., antes de se deitar serenamente com o Mamute, enviou o sms ao namorado, jogava uma partida ancestral: amor seguro com um rapaz que pareça ter características de bom pai , sexo casual com um mamute de passagem. O homem interrompeu uma reunião de negócios para responder. Ele não queria perder Loreta e sabia que a resposta estava no guião que as mulheres distribuem aos homens escolhidos para pais dos seus filhos. Esse guião elaboram-no elas com o código genético, as histórias de embalar contadas pelas mulheres da família e os segredinhos da escola. Recitam-no de cor à saída do secundário. Os rapazes têm de se esforçar para o perceber. Estiveram distraídos a andar de bicicleta e a jogar à bola e ao braço de ferro. Dá imenso jeito na reunião de negócios mas não serve para responder em três minutos a um sms.

Crime no Sul de França (epílogo)

A estupefacção foi interrompida pela entrada em cena de uma mulher muito alta, loira, que, aparentemente alheada do que se passava se aproximou do assassino e com um movimento hábil o imobilizou e algemou, antes que dois colegas seus tivessem tempo de a ajudar. Apresentou-se como Marie José Fatias, agente da Policie des Moeurs Nouveaux. Explicou-nos que há algum tempo suspeitavam da perigosidade do marido de Rita, indiciado por delírio de ciúmes. Rita e os rapazes portugueses apunhalados já se tinham levantado do chão e começado a limpar o sangue. Também a lâmina do assassino era falsa. A verdadeira fora previamente substituída por um artefacto muito semelhante, mas inofensivo. Rita sacudia o sangue e sorria. Ao limpar o antebraço retirou também o horrível aleijão e um braço liso, tenso, brilhou na noite de Arles. A agente Marie José Fatias afivelou a T-coat e declarou que entrava em férias e, se não víssemos inconvenientes, acompanhava o grupo até Lyon. Os rapazes disseram: que coisa boa esta Polícia dos Novos Costumes, entreolharam-se e vi que uma viagem exaltante estava ali mesmo a começar.


14 setembro 2004

Dindon

Hoje é o dia em que as meninas e os meninos vão para a escola. E tu doente, bailarina linda. As meninas e os meninos julgam que é bom ir para a escola. Há tão poucos sítios para onde ir agora. Já não há ninguém nos campos. Nas praias as bandeiras deixaram as ondas sozinhas, levantadas. O lobo está ileso no fojo, perplexo. Não há crianças para saltar à volta dos cestos nas vindimas. E nos pátios das casas só roupa a secar e bicicletas paradas. Foram todos para a escola menos tu bailarina linda. Não fiques triste. Eu pouco posso contra a tua doença mas sei que vai passar. E tenho um grande poder e esse vou usá-lo. Vou parar as escolas, lançar um feitiço nos professores, fazer com que não consigam ensinar nada que não saibas. Para que tudo comece realmente no dia em que te levantes de novo para dançar.

Berlenguices

Esta enumeração cronológica de acontecimentos recentes – a Internacional cantada forte por sobre as ondas enquanto rumávamos à Gruta do Medo; o arrepio ao entrar nas frias águas baptismais; o túnel que não acaba, rastejado na escuridão (com uma lanterna inútil sem pilhas); o cagaço e o salto para um vazio azul de via láctea borbulhante e ecos cavernosos; nadar para a luz, nadar, nadar e renascer sob o olhar de vidro do corvo marinho, guardião desta outra boca da gruta; de novo embarcados, um breve e respeitoso cântico religioso de graças e depois o regresso por sobre as ondas de través – está mesmo a precisar de um final feliz: Madalena, a mais diferente das mulheres, acena radiosa mal avisto o cais.

André Bonirre

Um girino no equinócio

Ah, estava a esquecer-me. Estás lindo Miguel, com a tua pele nova. Não fiques triste. Ela vai voltar a linkar-te.

Antologia de O Mal: Mario Benedetti

TRANSGRESSÕES


Todo mandato é minucioso
e cruel
eu gosto
das frugais transgressões
por exemplo inventar o bom amor aprender nos corpos e em seu corpo ouvir a noite e não dizer amem traçar cada um o mapa de sua audácia
mesmo que nos esqueçamos
de esquecer é certo que a recordação nos esquece
obedecer cegamente deixa cego crescemos somente na ousadia
só quando transgrido alguma ordem
o futuro se torna respirável todo mandato é minucioso
e cruel
eu gosto das frugais transgressões


Trad.: Astolfo Lima Sandy

13 setembro 2004

Uma volta na minha rua

Fui ver os meus blogs, os da coluna do lado e foi um bom fim de tarde. N O Esplanar RB traduz do italiano L'Usage du Monde de Emmanuel Carrère. Soberbo. O que aquilo não seria com El Pais. Por falar em comboios. Joaquim, se passares para Elsinore, e estiveres de acordo, eu subo na Estação Velha. O amarelo da bomba-inteligente continua lindo. O Azul Cobalto o mais secreto dos blogs. Em Controversa Maresia escreve uma admirável mulher do Norte. A Espuma já pôs a nu o empedrado.

Loreta é supersticiosa

Loreta é sentimental e um pouco supersticiosa. Daquela vez estava a fazer um estágio na cidade de L., muito longe de casa. No Museu de História Natural tinha conhecido um rapaz. Ele era forte, com uma testa alta e um peito largo. Loreta pensou que deitar-se naquele peito largo devia dar uma grande serenidade. E como o rapaz a convidava para jantar tudo lhe dizia que esse dia era inevitável. Não sabe se pelo volume do rapaz se pelo sítio onde se conheceram, Loreta pensou sempre nele como um Mamute. No seu livrinho anotava: no bar Vaughan com o Mamute; passeio com o Mamute na Avenida Burlington. Nessa noite, no restaurante, o Mamute falou dos irmãos e da mãe, dos jogos de críquete da infância, dos filmes do Spielberg. Ela bebia e ia-se deitando confiante naquele peito que parecia um seguro para a eternidade. Antes de saírem pegou no telemóvel e escreveu ao namorado: “Estás apaixonado?” Na sua cabeça tinha – lhe dado um prazo de três minutos para ele dar a resposta certa. À distancia de vários fusos, o outro homem leu a estranha pergunta no meio de uma reunião de negócios. Percebeu que tinha muito pouco tempo para responder e que tinha de o fazer de uma forma simples e correcta. O que lhe estavam a pedir era uma senha. Envergonhado pela pausa que introduzira na reunião e debaixo dos olhares dos clientes ele escreveu: "Sim, por Loreta em L."
Em L. Loreta recebeu o sms antes dos três minutos terem expirado. Já iam na rua, a caminho da casa do Mamute. Estava um pouco tonta. Julgava que era de felicidade e apoiava-se tanto no braço dele que já sentia o calor do peito onde se ia deitar.

Crime no Sul de França ( Parte 4 )

Depois do jantar aglomerámo-nos à saída, esperando o autopullman que nos levaria a um espectáculo no Anfiteatro romano. Os meus companheiros da excursão portuguesa esperavam que o motorista viesse abrir as portas, já reagrupados num passeio junto ao autocarro. As vozes elevavam-se, joviais, as mulheres soltavam gargalhadas e os homens do Norte falavam muito alto como acontece geralmente depois das refeições. A mulher chamada Rita contava qualquer coisa que os rapazes mais próximos ouviam com devoção. Vi ainda a amiga e atrás dela, o marido. Perguntei-lhe pelo jantar, se se divertira. E ele disse-me que sim, que se divertira imenso e que agora se iam todos divertir ainda mais. E ao dizer isto tirou do cinto uma lâmina longa, cujo cabo não consegui distinguir, e espetou profundamente, com vagar mas decisão, na grelha costal de um dos rapazes da roda da mulher. Embora o gesto e a frase que o antecedera tivessem sido discretos, tinha-se feito um grande silêncio. O homem repetiu o apunhalamento nas costas de outro rapaz. E depois pegou na arma, de novo me pareceu que segurava directamente na lâmina, e atirou-a com perícia na direcção da mulher chamada Rita, que se abateu, no espaço aberto pelos rapazes. Se fosse um filme seria uma cena em câmara lenta, sem som, e com algum sangue, de repente rutilante.
(Continua)

O Circo Permanente

A máquina de propaganda eleitoral que Sampaio e o PSD puseram no Governo mostrou ontem, nos Açores, do que é capaz. Só não digo que ele parecia Evita Peron a falar aos descamisados porque a Madonna está hoje em Lisboa, gosto da Madonna, ela nunca concorreu a cargos públicos, é uma mulher do show business, pronto, e se ele se apercebe ainda é capaz de capitalizar o espectáculo do Atlantico, e este meu insignificante post, para as urnas do PSD/PPD onde se espera tudo venha a desaguar quando for a hora da consagração.
Nos Açores ele foi messiânico: temos razãopara ter confiança. Revolucionário: Os mais desfavorecidos, os mais pobres estão no nosso coração verdadeiramente socialista. Os ricos que paguem a crise.. E na apoteose declarou-se pronto à desobediência civil: Se não for constitucional, a Constituição e o Tribunal Constitucional que se lixem.

12 setembro 2004

Adições

O blog cor de abóbora, o blog de bis

Marie José Fatias

A Policie des nouveaux moeurs, a que pertence a agente Marie José Fatias (ver próximo capítulo da Morte no Sul de França) é uma polícia experimental que recolheu a experiência da polícia saudita de costumes. Foi criada em França depois da última hecatombe eleitoral. Recorde-se que nenhum dos partidos tradicionais recolheu mais de 3% dos votos, o que criou uma grave crise de legitimação. O Movimento dos Novos Costumes, com menos de seis meses de existência, viu-se, com os seus 3,3 %, na situação de ter de formar governo. Coligou-se com os Muçulmanos reformistas, Petróleo não Obrigado, Mais Educação Mais Desigualdade e, obviamente sem programa, levou a cabo algumas mínimas reformas interessantes entre as quais esta polícia benigna, especializada na perseguição de maridos à beira do delírio de ciúmes, juízes concupiscentes e outros homens de leis, missionários e membros de ONGs com a doença a que RD chamou o mal da mente descontínua.

Ainda aquela coisa chata

O Público de 10 de Setembro publicou, com o máximo relevo possível e sem qualquer eco até ao momento, o depoimento de duas pediatras sobre o uso da pílula abortiva no nosso país depois do primeiro trimestre de gravidez(convém sublinhar este aspecto para não alimentar confusões). Cinco por cento dos Prematuros de Muito Baixo Peso (menos de 1 500 gramas de Peso de nascimento) do Hospital Amadora Sintra nasceram após indução com Misoprostol. As grávidas desconheciam a idade gestacional, não percebiam que o feto era viável, ou estavam simplesmente desesperadas. "Parecem quase tentativas de suicídio, quando o companheiro as deixa ou ficam no desemprego", disse uma das médicas, presidente da Comissão Nacional Para a Saúde Infantil e do Adolescente. Muitos destes sobreviventes têm sequelas neurológicas, pulmonares, cardíacas, digestivas. Trinta por cento vão para instituições de acolhimento. O trabalho em que se apoiou este depoimento foi apresentado este ano à Faculdade de Medicina de Lisboa e ao Congresso Europeu de Perinatologia.
Esta intervenção foi quase isolada. Durante as duas semanas em que o barco do aborto esteve ao largo de Portugal quase nenhum obstetra, ginecologista, pediatra, perinatologista, neurologista, psicólogo, sociólogo, psiquiatra, técnico de segurança social, polícia, farmacêutico prestou depoimento sobre a tragédia das mulheres que abortam no país dos vícios privados e das públicas virtudes. Sauf mon cousin Germain, claro está, que não me lembro de ver tão interventivo, tão público, tão denunciante.

Contra a paixão

Escrevo contra a paixão das mulheres. Uma mulher apaixonada é como um terrorista envolto em dinamite. A comparação é de mau gosto, eu sei. Mas a paixão é a negação do bom gosto, um assunto de cordel, de reality show, de revista de coração. A paixão é do domínio da tragédia. Não tem piada nem à distância. Haverá sempre vítimas dessa obstinação. A paixão é uma doença do espírito. Milhões de anos para o desenvolvimento das célulazinhas nervosas nos dar um reflexo do mundo que servisse para alguma coisa e lá vem essa monomania, esse afunilamento dos sentidos, essa visão tubular, esse coma da razão.

Em louvor de Madonna

Talvez ela não tivesse existido se Le Deuxième Sexe não fosse escrito. Mas ela nunca andou dois passos atrás de nenhum homem.

Luís

Todos os dias são bons para começar. Os sítios para onde vais ficam melhores. Nos lugares que deixas escreve-se a tua falta.

Crime no Sul de França (parte 3)

E com estes pensamentos aproximava-me do edifício onde ia ter lugar o jantar. Edifício estranho, mal iluminado, com uma entrada lateral e uma disposição labiríntica. Os convidados percorriam corredores e salões com paredes representando cenas de refeições copiosas. De facto tratava-se de um engenhoso espectáculo de luz e som. O edifício era um cenário construído em torno da sala do restaurante. As imagens projectadas nas paredes correspondiam ao jantar a que os convivas acediam, de cada vez que tocavam em pontos determinados do cenário. Nessa altura, as imagens que a sala de jantar projectava, ganhavam em cor e nitidez ao mesmo tempo que um enrugamento do muro permitia a entrada. Mas o sistema encerrava-se ao fim de alguns segundos dificultando a entrada de grandes grupos. Tudo isto fui percebendo, mas tanto artifício e dificuldade começaram a levantar dentro de mim suspeitas sobre a abundância da refeição que nos esperava. E, desfeita a ilusão, a questão da comida começou a ter precedência pelo que recuei para uma posição que me permitia perceber a melhor saída do labirinto. Nessa altura vi a mulher e a amiga. Estavam rodeadas de rapazes cada vez mais ousados. O grupo, animadíssimo, dava pequenas corridas para um corredor onde se descobrira uma passagem e logo em seguida, reunia-se, de mãos dadas, junto a uma parede onde esperavam não falhar nova abertura. Pareciam miúdos numa festa de colégio. Quando tentava ensaiar uma corrida para entrar na onda deles vi o homem. Estava de pé, encostado à parede de um corredor, imóvel, mas a sombra sobre os olhos, a posição do corpo e das mãos assustavam.
O jantar foi agradável. Fiquei numa mesa com pessoas de uma outra excursão, quase todos italianos, e a conversa decorreu leve como os vinhos do Languedoc , o vol au vent e os crepes com chantilly. Eles conheciam o programa da viagem e sabiam que nos cruzaríamos de novo em Lyon. Para esses dias fizemos agradáveis combinações cujo cumprimento sabíamos improvável.
(continua)

Diferenças

Perguntas se as mulheres são todas iguais. Pelo que me é dado ver as mulheres são todas diferentes. E a mais diferente é a mulher amada.

11 setembro 2004

Crime no Sul de frança (parte 2)

Desta vez estava no sul de França, em auto pullman e hotéis de quatro estrelas e havia uma mulher que me olhava com um sorriso divertido. Tinha um defeito horrível num braço que não lhe retirava o encanto. Um fim de tarde, estávamos num banho turco do hotel e ela chamou-me. Debrucei-me e troquei algumas palavras com ela tentando não olhar para o braço, mais pequeno e com uma angulação surpreendente abaixo do cotovelo. Quando estava muito perto dela, uma cara desagradável saiu da névoa. Era o marido, incomodado com a minha presença e não fazendo esforço nenhum para o esconder. Nos dias seguintes evitei o estranho par. Á distância reparei que lhe chamavam Rita e se tornara muito popular entre um grupo de rapazes esvoaçando com alarido entre ela e o marido. Havia também uma amiga, menos vistosa e com menos sucesso.
Foi no jantar em Arles que tudo se precipitou. Ela caminhava ao meu lado desde a saída do autocarro. Tinha um perfume agradável e era bonita. Arrastava consigo aqueles dois aleijões com um sorriso desafiante, como uma tatuagem de adolescência. Dizia frases de circunstância mas com uma entoação ligeiramente provocante. Ou era da noite. Ou do marido com passo incerto sempre à procura de uma proximidade que ela não lhe concedia. Eu pensava: Nem sempre foi assim na vida deste casal. Houve um dia em que se conheceram, talvez numa viagem como esta. Ela achou encanto ao seu ar secreto e riu-se quando ele falou. Procurou-o. Bebeu e dançou com ele. Trocaram palavras ternas ou não cruéis. Outro dia houve em que ele beijou a tumoração que lhe desfeia o antebraço.
(continua)

Roberto Bolano por Enrique Vila-Matas

No Magazine Littéraire de Setembro, Vila-Matas escreve sobre Roberto Bolano. Vila-Matas declara mais uma vez Bolano um escritor resistente, alguém que rompe com a literatura latino-americana dos galos da Amazónia e das virgens em levitação. Um escritor da mesma linhagem e família do próprio Vila-Matas. Uma linhagem ancorada no desespero, uma família extra-territorial talvez próxima do Polaco Gombrowicz que dizia: “Quando escrevo não sou nem chinês nem polaco.”
Roberto Bolano nasceu no Chile em 1953 e morreu o ano passado. A editora Anagrama publicou, entre outros, Os Detectives Selvagens, uma recriação da juventude passada no México, Amberes, Chamadas Telefónicas, a que Vila-Matas chama um conjunto de novelas magistrais sobre sobreviventes. Recentemente a Anagrama editou O Gaúcho Insuportável, textos em que se pressente a chegada da morte.
Inédito em Portugal, tanto quanto julgo saber, Bolano não nos visitará. Vila-Matas, esse, estará brevemente entre nós, assim mo anuncia um amigo que tudo sabe. Para o lançamento de El Mal de Montano. Ao sabê-lo, ao escrever estas linhas, o meu panic attack voltou, lívido, suado e palpitante como no primeiro dia. Se a paixão é isto, quero curar-me.

Apresentações: a agente Marie José Fatias


A agente da Policie des Moeurs Nouveaux, Marie José Fatias. Foto de arquivo.

Apresentações: O marido de Rita


Nos banhos turcos do Hotel Le Chat Dormant, o marido de Rita. De frente, à direita. Ao fundo Rita, na água.

Apresentações: Rita



Viagem ao sul de França na agência Mundo Feliz, sediada em Braga. A mulher chamada Rita, na noite do jantar em Arles.

10 setembro 2004

Crime no Sul de França

Não planeei a viagem, não me lembro sequer de me ter inscrito mas ali estava eu. Uma viagem ao sul de França organizada por uma agência pindérica, com um grupo de gente desconhecida. Estabeleço contacto rapidamente com quase todos. Devo dizer que esta facilidade no relacionamento é uma característica herdada do meu pai, que tento combater quando me apercebo da sua emergência. Esta consciência crítica do meu comportamento surge geralmente tarde demais, quando os dados já estão lançados, os laços enredados, os compromissos assumidos. Como sou comerciante, esta faceta, certamente inata, é-me por vezes útil e talvez daí o meu insucesso na sua repressão.
É sempre assim e não havia de ser diferente nessa viagem. Cumprimento, digo pequenas frases simpáticas, insinuo-me entre grupos pré-formados, combino actividades, convoco os indecisos. Entusiasmo-me muito com as parecenças. Aquele é parecido com o meu professor de Geografia. Aquela com a Sofia Coppola. Aqueles com Pedro o Louco e a Anna Karina. Aquele parece mesmo o Tom Waits. Aquela parece-me uma mulher que cruzei em Varsóvia. Se as viagens forem curtas, esta euforia semiológica pode durar até ao fim, originar troca de mails e números telefónicos, marcações de encontros futuros, projectos de novas viagens. Se a viagem é longa acontece-me uma de duas coisas. Estou sozinho e fundo-me com o grupo. Alguém me conhece e me olha com espanto ou severidade e acomete-me uma acedia sem saídas.
(continua)

Não se calam com as mãos

De lábios calados, dentro dos vidros fechados, eles falam-se com as mãos, enquanto esbracejam sem som, homenzinhos frenéticos, à hora do telejornal, na televisão da montra da loja antes do semáforo onde, indiferente às arritmias da Bolsa, o verde caiu pontual, já uma e outra vez.

André Bonirre

09 setembro 2004

Os outros dos Houtros

Babelia deste sábado anunciava a edição de uma tradução espanhola do livro de Koestler, Diario do Cárcere. E conta esta história: Arthur Koestler( O Zero e o Infinito) escreveu este livro numa prisão franquista. Era comunista e tinha visitado recentemente a União Soviética e regressado com as suas convicções profundamente abaladas. Mas tinha eclodido a Guerra Civil e decidiu entrar em Espanha para combater o franquismo e sobretudo para procurar provas do envolvimento alemão e italiano ao lado da insurreição contra a República. Foi capturado e do cativeiro escreveu este livro. A lição de Koestler é muito importante: pode-se manter uma posição de combate, mesmo quando tudo parece dirimir-se, e agora a citação é de Unamuno, entre los hunos e los hotros.
A segunda parte da lição, já não vem na Babelia, é que os que se encontram um dia como os outros dos Houtros deviam procurar uma aliança estatégica com os uns dos Hunos (com todo o respeito pelos Hunos e pelos Houtros, mas com a arma à bandoleira, para não dizerem que não aprendemos com a História). Os uns dos Hunos e os outros dos Houtros, juntos, jamais seriam vencidos!

Boquinhas

O bastonário da Ordem dos Médicos, conhecido pela benevolencia para com a má prática, os ensaios clínicos selvagens, a legislação regressiva sobre o Internato, encontrou uma causa: perseguir Miss Rebecca Gomperts. Que diariamente, debaixo do seu silêncio corporativo, se cometam as maiores irregularidades é coisa que não o tem motivado. Mas agora o homem arranjou uma causa. É bom para ele, é saudável. Deve-lhe valer umas palmadinhas nas costas, umas piscadelas de olho cúmplices. O meu amigo Realista, vira-se sonhador lá para onde lhe vêem as idéias políticas e diz, com aquele sorriso enigmático: Este não dura meio ano. Eu viro-me para o lugar que ele fita e não vejo nada, só escuridão. Desta vez, acho que são bocas, o que lhe ouço.
(OM 16.611, para os efeitos julgados convenientes)

Antologia de O Mal. Charles Bukowsky

what can we do?


at their best, there is gentleness in Humanity.
some understanding and, at times, acts of
courage
but all in all it is a mass,
a glob that doesn't
have too much.
it is like a large animal deep in sleep and
almost nothing can awaken it.
when activated it's best at brutality,
selfishness, unjust judgments, murder.

what can we do with it, this Humanity?
nothing.

avoid the thing as much as possible.
treat it as you would anything poisonous, vicious
and mindless.
but be careful. it has enacted laws to protect
itself from you.
it can kill you without cause.
and to escape it you must be subtle.
few escape.

it's up to you to figure a plan.

I have met nobody who has escaped.

I have met some of the great and
famous but they have not escaped
for they are only great and famous within
Humanity.

I have not escaped
but I have not failed in trying again and
again.

before my death I hope to obtain my
life.

in blank gun silencer - 1994

08 setembro 2004

Agradecimento

Obrigado Zé Mário. Tu já de ti gentil e agora com toda essa oxitocina por via transdérmica.

Daqui a dois anos

Agradecido à juíza que escreveu que a liberdade de circulação de pessoas e ideias não se estende aos meios de transporte, o activista que o PP destacou para o governo do País e a quem o governo inadvertidamente colocou no ministério do Mar, aproveitou para fazer um comício, em directo, com a bandeira do Euro nas costas.
Entre outras coisas disse que o Povo já decidira sobre o direito à vida, em referendo (sic). Esta confusão alimenta muita convicção e vinda de onde vem não pode ser inocente. Mas o importante foi o comício em si, em nome do governo, em tempo e a tempo. Quando vi fiquei preocupado e disse ao meu amigo V., analista político: "Está a marcar o terreno. Com o PSL fora é este galo que canta." O meu amigo respondeu, sonhador: " O gajo só aguenta os dez por cento assim, mas o Lopes muda a lei daqui a dois anos". Virei-me para ver o sítio de onde lhe vinham estas evidências. Estava muito escuro e eu não estava lá.

07 setembro 2004

O Professor, enfim

O velho Professor de Obstetrícia...Convidado pela Associação Para a Promoção de Uma Sexualidade Responsável para uma palestra na Escola S. debitou o seu discurso científico sobre as virtudes da abstinência juvenil. Mas só lhe vinha à cabeça o poema do Larkin e uma frase que dizia: "Curtam. Curtam o sexo oportunista, casual e recreativo".

Actualidade de Samuel

No Colégio sequestrado na Ossétia, quando uma das mães começou a chorar, um dos terroristas disse-lhe: É a tua vez de chorar, que as nossas mães não param de o fazer. Isto, e mais do que isto, ouviu uma testemunha. Não foi dito em árabe. Foi em russo, com forte dialecto do Cáucaso. Quem o disse foi um homem com idade para ser um homem novo, como Putin. Talvez isto que conto horrorize alguns. Está escrito no livro de Samuel:
Depois Samuel disse: ‘Trazei-me Agag o rei dos Amalecitas’. Agag aproximou-se a tremer e disse: ‘É a hora amarga da morte’. Samuel disse-lhe:’ Assim como a tua espada deixou muitas mães sem filhos, também a tua mãe ficará entre elas sem o seu filho’. E Samuel degolou Agag diante de Javé, em Guilgal.”
A religião para quem este livro é sagrado viria a tornar-se a ideologia oficial do Império, a encerrar, por pagã, a Academia de Platão, a pôr fim aos Jogos Olímpicos e a assinar momentos históricos grandiosos como as Cruzadas e a Inquisição. *
Hoje os cristãos do Ocidente lêem o livro de Samuel contextualizado (ah, mas nem todos e menos do que julgamos). Os filhos dos homem novos das antigas repúblicas socialistas soviéticas do Cáucaso, põem a roupa interior a secar nos canos ainda quentes dos canhões dos exércitos de Putin ou fuzilam crianças pelas costas nas Escolas, ou fazem-se explodir nos teatros da sede do Império, em nome da actualidade de Samuel.

*Cf O Significado das Coisas, A. C. Grayling, Gradiva, Filosofia Aberta, Outubro de 2002

Casamento

A noiva chegou, com um vestido quase branco que não conseguia estragar a sua beleza rara. Atirou-nos o ramo com o gesto liberal de um lançador de martelo, a nós, amontoados no caminho da capela com o ar confrangedor dos convidados de casamento antes da boda. Virou–lhes as costas e dirigiu-se para o hall do velho Hotel com passos decididos. As irmãs da noiva gritaram:
-Vai-se embora!
O noivo murmurou ao amigo que tinha ao lado, sem que este tivesse perguntado nada:
-É bem possível...
A noiva aproximou-se dos criados, alinhados à porta do Hotel, e pediu-lhes:
- Uma taça de espumante. E sirvam também os convidados, por favor.
- É suposto ser após a cerimónia, disse o que parecia ser o mestre de cerimónias.
- É suposto esta pobre gente não ter a boca seca na cerimónia. Dê-me um copo de whisky. E emborcou-o de um trago, poisou o copo, encarou os convivas como na arena o matador o touro e caminhou para eles com redobrada decisão. Os amigos do noivo, que curtiram juntos desde A Recordação da Casa Amarela até à Branca de Neve, exclamaram:
- Grande! Grande!, e começaram a bater palmas, que depois se espalharam, sem o mesmo entusiasmo, aos outros convidados.

A prece foi escutada

Por algum motivo o rapaz que em Setembro rezava para que lhe calhassem miúdas giras na turma foi escolhido para levar o barco Borndiep até Vigo.

06 setembro 2004

Breve

Eu hoje queria uma escrita saudável. Qualquer coisa de uma ironia leve como O'Neill ou os surrealistas primeiros, ou Benjamim no tempo de Nadja e do Temps de Paris, ou David Lodge a descrever o cientista que apalpa o rabo da colega na cozinha. Uma escrita antes da doença, antes da prevenção, antes da imaculada concepção. Uma escrita antes do pecado e da culpa. Uma escrita leve como o movimento da águia, quando desfaz o círculo para ficar suspensa, e o Bonirre diz, lá do fundo da sua sabedoria das aves: Está-nos a ver. Uma escrita sem vírgulas nem hífens nem pontos de exclamação. Qualquer coisa de espumoso e matinal, uma pequena hesitação da escrita, o começo de uma música, o sorriso com que as criaturas acordam no primeiro dia de escola, a pele fresquinha deles quando os beijamos.

04 setembro 2004

Vigo

Ontem, na Figueira da Foz, o homenzinho que inadvertidamente o PSD pôs a comandar o Porto, cumprindo ordens do patrão, não respondeu e mais tarde proibiu o barco holandês do aborto de entrar para reabastecimento. Uma prática normal de convivência marítima, ao que parece. O barco foi para Vigo. Rebecca disse a um microfone que não estava perturbada. O barco seguia afinal uma das rotas das mulheres portuguesas que têm de abortar.

03 setembro 2004

Charles Lloyd na Figueira da Foz

Hoje às 22 horas, na Figueira da Foz, no Centro de Artes e Espectáculos, Charles Lloyd, depois de uma primeira parte com Filipe Melo.

Abregé

Para mim o debate acaba aqui e vou dar a minha opinião em short version porque tenho de trabalhar, os computadores avariaram-se e estou farto de tanta culpa e constrangimento:
A questão do aborto é uma questão das mulheres grávidas. A pílula abortiva é uma coisa boa.

Os dentes

Ontem, o funcionário do PP inadvertidamente colocado no Ministério do Mar, convenientemente bronzeado, veio declarar que não tinha medo do debate sobre o aborto. Defenderemos a vida, disse ele. Não, desculpem. DEFENDEREMOS A VIDA, disse ele. E mostrou os dentes, e cerrou os lábios numa postura pré pleistocénica, que me fez perceber que ele defenderia o direito à Vida, não, O DIREITO À VIDA, contra a nossa vida se pordesventura nos atravessássemos à frente das corvetas.

JPP

JPP assina ontem mais uma crónica da sua nova fase oposicionista. Contra o radicalismo das WoW e do PP. Para se perceber de que fala, aconselha a visita à blogosfera, onde os leninistas do Bloco se digladiam com os ingénuos do PP. Como de costume não há links e assim não consigo confirmar.

O diálogo

Sim, eles são pelo diálogo. E já venceram: duas corvetas de guerra contra uma barcaça.

02 setembro 2004

Debate com o barco

A iniciativa levada a cabo por deputados da maioria, entre os quais Nuno Freitas e Massano Cardoso, de visitar o Barco do Aborto é positiva. Pode-se discutir se está inscrita numa política de cálculo eleitoral, desenhada desde o início, como escreveu Terras do Nunca já na passada semana e o Professor Marcelo no domingo. Mas é, só por si, um gesto de diálogo. Freitas e Massano não visitariam um barco que se propusesse distribuir droga ou outras maldades enunciadas no tratado de Montega bay, que outros, sem vergonha, utilizaram para proibir a entrada do barco ou para a justificar. Também percebo a reacção de Rebecca (ver publico on line). Quando se começa a ceder com a iniquidade, em posição de refém, sabe-se o começo mas não se sabe o fim.

Pequena Correcção

O Presidente não disse :
SOU O CHEFE MÁXIMO DAS FORÇAS ARMADAS
. Eu ouvi. Ele disse:
sou o chefe máximo das forças armadas

01 setembro 2004

Grande Vertigem Negra


Negra havia de ser a cor do verdadeiro amor, se houvesse.

A Sandra lida em Belgais

A In-Libris, Sociedade para a Promoção do Livro e da Cultura, e Belgais, Centro para o Estudo das Artes, apresentarão, no dia 4 de Setembro, na Granja de Belgais, o livro "Nenhuma Flor. Oito imagens e o dizer dos lábios".

Os textos de Sandra Costa, coligidos neste livro, tiveram origem nas fotografias de Paulo Gaspar Ferreira captadas após o incêndio ocorrido em Julho de 2004 na Granja de Belgais. Será também apresentada a exposição das fotografias originais que constituem este livro bem como o Concerto de Maria João Pires e Rufus Müller que interpretarão "Winterreise" de Franz Schubert.

Informação adicional bem como reserva de bilhetes deverá ser efectuada através do telefone 272 467 539.

Adição


A Aura do Dia, o mundo visto de Lleida, Catalunha, por um entusiasta da neuropsiquiatria, da música, das tecnologias de comunicação e de um mundo capaz de sobreviver à predação dos combustíveis fósseis.

Antologia de O Mal: Mirian Van Hee


PRIMAVERA NA SCHILDERSSTRAAT

Via-te do outro lado
como se de um abrigo subterrâneo
saísses: cauteloso e espantado
com a luz que brilhava sobre os telhados
ainda trazias o casaco comprido de inverno
podia ter feito um sinal
podia-te ter feito perguntas
havia entre nós a rua como água
atrás de mim estavam mães sentadas no parque
em redor do museu, os filhos
levavam bofetadas até chorarem
a mim salvou-me o tempo,
a distância, este poema.

Tradução de Fernando Venâncio
in Uma Migalha na Saia do Universo- Antologia da Poesia Neerlandesa do Século Vinte, Assírio & Alvim, 1996, já posto anteriormente à Janela pela Cristina.

Miriam Van Hee é uma poeta flamenga, nascida em 1952. O seu estilo aproxima-se da linguagem falada e é marcado pela circunspecção. Em 1996 publica um colectânea Het verband tussen de dagen : gedichten 1978-1996 (Le Lien entre les jours : poèmes 1978-1996). O Seu ùltimo livro De bramenpluk , 2002 (La Cueillette des mûres) fala de viagens, de paisagens, de animais, da arte e do amor. Para além de escrever, Miriam Van Hee, é professora de literatura Russa e Polaca. Traduziu, entre outros autores, Mandelstam e Akhmatova.



Antologia de O Mal: Anna Enquist





CENA CAMPESTRE

A casa esperou por nós,
pensamos. O duplo renque de árvores
acena-nos que nos cheguemos. Num sussurro,
o rio vai escorregando cheio
entre as margens.

À hora exacta, o sol vai esconder-se
por trás dos campos. A escuridão
envolve a casa que nos protege.
Acendemos o fogo, bebemos
entre as paredes.

Vendi-me inteira à
segurança e debruço-me da janela.
Dormem cavalos e galos, a água
pisca o olho à lua, e eu a pagar,
sempre a pagar.

Tradução de Catherine Barel
in Rosa do Mundo – 2001, Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim, 2001


Anna Enquist nasceu em Amsterdão em 1945. É música, psicanalista, poeta e romancista. É uma das autoras mais reconhecidas na Holanda. Tanto pela sua obra poética como pelos seus romances recebeu vários prémios importantes.
Traduzidos para Temas e Debates os romances O Segredo (2002) e A Obra Prima (2004).