30 junho 2005

Dois com Bacon



- Ela na praia evitava-o. Estavam em grupo e ela punha-se nas costas dele
(tem um corpo belo, sabes?). Ele dizia-lhe que tinha as costas em
sangue. Que as vértebras eram os dentes de um fecho éclair, para ela entrar.

- Isso é o tipo de coisas que diz qualquer gajo que tenha visto Bacon. E o
fecho éclair é foleiro.

- O notável é que ele nunca viu Bacon. Nem Bacon nem nada. Ele é
absolutamente sensitivo.

- Sensitivo? Ele é um browser que se dispara sem sentido.

- Enganas-te. Deu-lhe um cinto apertado para o coração.
Enche-a de atenções.

- Está ali a preparar-se uma desgraça. Desgraça, sim.

- Olha que de desgraças eu sei tudo.

Li as cartas de amor da minha avó com as mãos sujas de sangue e lixei-me

Quando eu era Simão, morava em casa dos meus avós paternos, uma casa com sótão numa avenida da cidade de C.. Não era bem sótão. Era o que o Rui Pires Cabral chamava ”o terceiro, uma arrecadação com dois pisos que ficava ao fundo do corredor, onde as aranhas pareciam vigiar o que restara da infância dos meus pais e irmãos”(1). Esta arrecadação era um lugar de interdição absoluta. Não me lembro de me dizerem que não devia entrar. Mas eu sabia. Muitas tardes estive sentado na divisão que dava acesso à escada, entretido a esventrar um cavalo de baloiço que se veio a revelar desconsoladamente oco, a decifrar pinturas de parede que contavam uma história tradicional, ou apenas a olhar para o corredor. Mais velho, quando li o Aleph, foi naquela escada que pensei. Mas nunca me aventurava a subi-la. O cavalo, os brinquedos de lata que estavam nessa entrada da arrecadação eram objectos sem passado. O meu pai era um adulto esplêndido, desprovido de infância e nunca me passou pela cabeça que os meus tios perfeitos pudessem ter brincado com cavalos afinal de papelão endurecido. Não tinha nada para descobrir. Não havia, aparentemente, nenhum mistério na minha vida. Tudo era, simplesmente. Até deixar de ser, ferido traiçoeiramente, como o cavalo, pela minha curiosidade sem sentido construtivo.
Quando eu era Simão tive uma parasónia de risco. Acontecia-me levantar de noite, percorrer a casa, tentar abrir a porta que dava para um passagem externa pela qual se acedia à cozinha e a uns jardins suspensos nas traseiras do prédio. Ou então entrar silenciosamente nos quartos dos adultos. Uma noite os meus pais surpreenderam uma criança de face alucinada que dizia em voz monocórdica: Quero uma resposta. Quero uma resposta, por favor.
Levaram-me a um médico que recomendou menos leituras, um copo de leite morno antes de adormecer com uma colher de láudano. Quando a medicação acabou, as noites de levante voltaram. Sempre que adoecia, e podia ser coisa ligeira, era certo que me ia levantar de noite, percorrer a casa, tentar sair para a passagem da cozinha, gradeada sobre um pátio escuro cinco metros abaixo, perguntar, com uma cara de urgência que não reconheciam, loucuras que atribuíam a leituras desajustadas.
Até que um dia pedi para deixarem aberta a porta da arrecadação. Era noite de sonambulismo e queria subir ao sótão. Eles procuraram chamar-me à razão. Que era perigoso, não conhecia sequer a divisória, nunca subira a escada. Mas a minha determinação desarmou-os. Pediram ajuda aos meus avós. O avô calou-se como sucedia sempre que era preciso tomar uma decisão. (Por muito que te custe, Humberto, isto é verdade, ele calou-se, anos a fio viveu e morreu calado, de tal forma que os mais pequenos se espantavam quando o encontravam fora de casa e lhe ouviam a voz, clara como o seu olhar de construtor de relógios). A minha avó achava que não deviam contrariar-se as forças da natureza: os trovões, as enxurradas, os tremores de terra e as paixões verdadeiras. A avó reconhecia na minha deambulação nocturna a força absoluta e ingovernável de um acontecimento natural.
Nessa noite, quando eu era Simão, eles vigiaram-me. E viram como avancei resoluto no corredor, atravessei a primeira sala da arrecadação até à escada interior que levava ao sótão. Só se ouvia a respiração do meu avô, um silvo cada vez mais rápido até o meu pai se virar, lhe tocar levemente no braço e ele respirar de forma mais controlada. Alguém abriu uma luz já eu subia. Em cima percorri os livros empilhados que tinham sido da minha avó, Stefan Zweig à mistura com Jonh Chofer Russo, Madame Delli e os policiais da Vampiro. O Almanaque, O Gato Preto, O Cavaleiro Andante, os livros da Biblioteca Cosmos, Ginástica Sueca, Erico Veríssimo, A Selva de Ferreira de Castro em fascículos atados a cordel. Depois o meu avô gritou:- Não , para aí não. Mas uma vez mais o meu pai lhe pediu silêncio. E viram-me deitar no chão de pinho e rastejar, de uma maneira horrível, contaram eles mais tarde, para um desvão esconso onde estavam as cartas de amor da minha avó, em caixotes, todos marcados com uma morada misteriosa de Viseu: Quinta da Poça das Feiticeiras. Pelo modo como me sentei parecia ser um cliente habitual daquele canto. E na semi escuridão- mas havia feixes de luar que as telhas despejavam sobre as cartas- folheava uma a uma e em algumas deixava as marcas dos dedos ensanguentados pelas falhas de madeira do sobrado.


(1)A citação é do poema O terceiro de Rui Pires Cabral, do livro Longe Da Aldeia, Averno 2005.

28 junho 2005

Poema



Muitas vezes me perco
eu não sou bom
não sei ler mapas consertos decisão
essas coisas que os homens
naturalmente fazem e que no fundo
são o andaime dos dias


Além disso não tenho consistência
canso-me dos amigos
envelhecem-me cedo de mais convicções
arrefeço no meio do entusiasmo

e sou governado por forças obscuras
o abismo a ruína
o medo da miséria
um fulgor mais breve
a face letal do desejo

Não cumpri nenhum alto desígnio
se os houve
que na infância os meus pais
trocaram em silêncio

e troco o ouro por metais vis

Às vezes sinto-me cansado
outras pronto para grandes caminhadas

se me ensinasses a andar
no sulco dos teus passos seguiria

27 junho 2005

Nos dois anos de A Natureza do Mal

Há dois anos a Sofia escreveu aqui o primeiro post. Queríamos falar dos poetas sem qualidade, das pessoas invisíveis, do voo nocturno das rapinas, da solidão dos grifos nas arribas. Eu estava numa cela da Penitenciária de Coimbra, de onde nunca deveria ter saído, e a Sofia trabalhava então na Casa dos Mortos, amortalhando amorosamente bloggers terminais. Vivíamos o tempo do pós guerra do Iraque, onde alguma amabilidade era difícil. Alguns amigos de aventura reconheceram-nos: o Joaquim do Respirar levou-nos ao Carlos Alberto Machado, um dos poetas para quem abríramos o Mal. A Sarah da Espuma parecia gostar de nós. Depois, nos fogos, conhecemos as meninas do Tempo Dual, a Little Black Spot, a Janela Indiscreta, o Mundo Imaginado, o gajo do Ford Mustang, o Torradas, o Clandestino, o Bruno do Avatares, o Cinema Xunga na sua versão de mármore, os putos da Tasca, a Zazie, a Margarete. A seguir o Bonirre, o meu alter-ego sem defeitos, apareceu, e com ele o PC. Com o Luís Eternuridade alistámo-nos no sector feminino da Glória Fácil. O Filipe e o PC do Mar Salgado eram leitura de todos os dias. A blogosfera dos ricos nunca nos ligou, infelizmente. O Aviz ainda tentou, mas depressa lhe faltou a paciência. O Zé Mário foi simpatiquíssimo e a Bomba gentil. Continuámos a achar a escrita blogosférica do Pedro Mexia tão boa como a sua melhor poesia e a procurá-lo para onde ele se mudava. E não foi esta a nossa única constância, nos primeiros meses do Mal, que é do falo, agora.
Depois escrevemos todos os dias, nas férias, nos ciberquiosques rascos de aparthotéis do Algarve, de países rudes sem til nem cedilha. Resistimos aos abandonos do burrinho, do PC, e ao inesperado silêncio do Bonirre. Resistimos à absurda hostilidade dos colegas de trabalho, aos comentários anónimos quase sempre óbvios, à incompreensão dos tios e dos primos, ao desdém de quem acha que isto não é um posto sério, e nos olha como os padres de antigamente aos putos com as borbulhas da masturbação.
Nós não paramos. De cada vez que tivermos a felicidade de as encontrar, continuaremos a escrever as palavras que não levam a nada, nem a lado nenhum, e que Agustina ontem celebrava em Eugénio. A dizer amem-se aos amantes. A procurar a rapariga que talvez seja florista nas mulheres que de manhã saem dos autocarros para os empregos. A ver, em cada Congresso, Loreta aparentemente nos braços do Mamute. A levantar a cara para que se vejam bem as lágrimas com que escrevemos. A caminhar, das cumeadas ao leito do rio, onde o falcão desafia o abutre. A dizer, do Manel Maria e dos apoiantes, e dos broxistas, o pior. E que os nossos amigos e amigas são lindas e lindos (e tantos que já nem cabem nos links da coluna ao lado), escrevem bem, dizem as coisas que fazem melhor o dia, e que nos orgulhamos deles, assim.

Antologia de O Mal: Álvaro Feijó

A miséria é tão grande do meu lado
que me apetece ir combater
do lado dos inimigos.


Álvaro Feijó (Obra Completa, Evoramons, 2005)

23 junho 2005

Clinical Research (2): o divino losango



O losango ou rombóide de Michaelis é uma zona em forma de diamante situada entre as fossetas sagradas, que delimitam os vértices externos e dois pontos imaginários da linha vertebral, o inferior já na porção mais alta do sulco nadegueiro e o superior sobre a quinta vértebra lombar. Gustav Michaelis foi um ginecologista alemão que passou os melhores dias da sua vida a estudar e a escrever esse lugar do corpo das mulheres. Esse facto e a frequência dos sabbaths das bruxas, onde o objecto mítico da sua investigação era convenientemente apreciado, arruinaram-lhe a carreira.

Série: Olha no que me tornei (I)


Eduardo Prado Coelho:

A garrafa vazia de Manuel Maria.
O (Pouco) Delgado de Sócrates.

À procura de Afonso no Limbo

O Ivan[1], na esteira de outros - já vem do António Barreto -
atira-se com enorme virulência a Carrilho[2], ao Professor Carrilho,
como ironicamente o designa. O argumento é simples. A oposição a
Carrilho não é uma questão (de) política; é, antes, uma questão
de avaliação de carácter, o carácter abominável de Carrilho. Ivan
adjectiva-o de canalha. Obviamente um eufemismo para filho da puta.
Estamos no plano da aversão pessoal.
Já aqui declarei a minha intenção de votar em Carrilho[3], mas
não a situei em tal plano. So let's get personal this time. My
stand.
Desde que os tenham no sítio, que venham todos os filhos da puta.
Com balls, tenho um fraquinho por eles. E de longe, de muito longe
prefiro-os a sentimentalóides, cujo núcleo da auctoritas moral para
pedir ao Povo que lhes conceda o Governo da Cidade se estriba no
proto-xenófobo eu sou nado, crescido e sempre vivido aqui.

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Posted by Afonso Bivar to bombyx mori[4] at 6/21/2005 02:26:00 PM

Links:
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[1] http://a-praia.blogspot.com/
[2]
http://www.a-praia.blogspot.com/2005_06_01_a-
praia_archive.html#111931665553543086
[3]
http://bombyx-mori.blogspot.com/2005/06/la-raison-du-plus-fort.html
[4]
http://bombyx-mori.blogspot.com/2005/06/panegrico-do-filho-da-puta.html

22 junho 2005

Clinical Research (1): O Exantema per Orgástico

Olson descreveu, na sequência copulatória dos humanos, um exantema macular que parte do tronco para a raiz dos membros. Num trabalho com 2320 voluntários publicado em 1998 (1), Olson refere que observou o exantema ( "a measles-like rash") em 75% das mulheres e 25% dos homens. A duração é fugaz, mais longa nas mulheres, onde surge cerca de dois minutos antes do orgasmo (123 segs; 95% CI, 96 a 199 segs). Nos homens é juxta orgástica ( 23 segs; 95%CI, 6 a 36 segs). Olson especula sobre a vantagem evolutiva de um tal rubor, num momento de absoluta cegueira.

1. Olson et al, J Anthrop 1998; 43:146-56

Da utilidade dos canalhas

O Ivan não gosta. Mas o Afonso explica bem, que para o governo da cidade pode dar jeito.

Melheres Socialistas



Empréstimo ao JPH enquanto não lhe ensinam a pôr imagens.

Avatares de um desejo




Este blog é o lugar onde diferente se falou de tanta coisa. O que mais me interessa é quando o antropólogo puxa os fios que vão do corpo das mulheres à cabeça dos homens. De como mãos, cabelos, pescoço, colo, dorso, rabo pernas, olhos, ventre, coxas, ombros, pés, mãos, mamas, sim sobretudo mamas, existem nos centros nervosos superiores dos homens e no corpo esplêndido das mulheres, e num e noutro lado ganharam e perderam os sentidos. Todos os dias, num quarto do Bairro, ele acorda uma ideia maravilhosa e, para nossa felicidade, desde há dois anos que a escreve para nós.É um rapaz carregado de futuro e merece tudo: viajar no proceloso barco das mulheres, a vária gente inteligente que o comenta, as amigas lindíssimas que o contrariam sem razão.

21 junho 2005

Imitado da Sofia

Hoje escrevam sobre o solstício do Verão. Façam valer as palavras.

Assim será a minha vida



Quando eu era Heitor difícil era sobreviver à segunda feira. Quando eu era Heitor telefonava muito. Mas à segunda feira não. Partia-se o celular sem que desse conta. Desligado. À espera de uma catástrofe pessoal ou geral, tudo seria possível, de tal forma à segunda feira se acumulavam os sinais da minha desesperança. Quando eu era Heitor o verão era a altura em que enganavam as crianças. Davam-lhes palcos com plateias amáveis, fatos para uma hora, uma bandeira, a fotografia do fundador rodeada de comendas. E diziam-lhes: assim será a tua vida. As crianças espreitam do rabo do olho o pai a filmar , as mães e as avós a aplaudir. Assim será a minha vida, dizem, em inglês, para justificar as aulas que não fazem parte do programa base. E a ciência viva, e as expressões, e a dança jazz. This will be my life (em inglês).
Quando eu era Heitor começava a morrer de manhã e estava pronto às dez e meia, por volta disso. Flor telefonava a essa hora: Estás bem? E eu , de sms, porque falar era impossível àquela hora grave que antecedia a minha morte de segunda feira: Estou morto. E Flor também de sms, consciente de que falar só agravava as coisas: Não estás nada, é segunda de manhã, à tarde já estás melhor. Não me lembrava de que fosse assim. Não me lembrava de ter sobrevivido a nenhuma segunda feira. Todas as boas razões me impeliam para as coisas inanimadas com que me identificava, às segundas feiras, quando era Heitor.

20 junho 2005

Do gasto desigual da água


As mulheres saem lavadas do corpo dos amantes. Tudo nelas incita à conservação dos fluxos.

18 junho 2005

Cunhal

Eu não senti nada na morte de Cunhal. O dirigente histórico, o partido, morreram para mim há muito tempo. Quando os comunistas reconheceram os crimes do estalinismo Kundera disse-lhes que não bastava que se arrependessem, era preciso que, como Édipo, vazassem os olhos e fossem para o deserto. Ora os comunistas portugueses mostraram sempre uma total insensibilidade à natureza criminosa do estalinismo e das suas manifestações. Sempre prontos a perdoar, em nome da dureza da luta de classes, sempre mansos para a tentativa de reabilitação histórica do herói da segunda guerra. Sempre confundindo firmeza ideológica com catecismo.
Mas, na morte de Cunhal, ouvi o grito das multidões nas ruas. Dizia, aos senhores deste mundo, que outro mundo é possível. Aos homens do cálculo que a Sophia detestava, aos que traçam a régua e esquadro a nossa vida, sempre prontos a salvar a economia e a nação, a interpretar a história, a explicar a racionalidade da opressão, a soprar aos desempregados e aos excluídos que devem ter paciência, a insinuar que a desigualdade é merecida e está inscrita na nossa inferioridade genética. O grito da rua irritou os comentadores inteligentes que há anos se apoderaram das colunas de opinião da imprensa, da rádio e da televisão e construíram a nossa ignorância. O mundo tem-lhes corrido de feição. Derrotaram os inimigos, uns broeiros, aliás, quase todos incultos, incapazes, carentes de argumentos e fluência. Estavam tão satisfeitos, lá de onde se via o fim da história. E de repente aquele rumor. Parecia o PREC contado às criancinhas. Havia muitos velhos, eu sei. Mas no presente, no futuro, vai haver muitos velhos. Talvez não tenham dado conta. Há muitos velhos em casas, lares, em quartos. À espreita. Há aldeias quase só de velhos, e nos pinhais ardidos, velhos habitam casas como barcos. Quando as ruas das cidades dormitório se esvaziam, os velhos tomam conta das crianças pequeninas e contam-lhes, baixinho, uma história ainda secreta.

Posts do orgulho pátrio


Escreve bem, como os enólogos da moda. Ele sabe do vinho que se gasta. Teve uma vinhateira por conta , em S. Tomé, e a coisa rendeu. Onde é mais intenso é no Record. Sabe o que é patriota, e explica.

16 junho 2005

Maggie, quando a voltar a encontrar

Se gostaste do Santo António, espera pelo S. João.

Programa de Verão

Quero alistar-me no arrastão
das praias.

Cannyoning

Os rios estão secos.

Os trilhos são estradões
abertos na terra incandescente.

Uma multidão que um funeral reúne
festeja o Não infértil das bandeiras.

Palavras


Barrou a cara
com um creme de promessa
e deu-se à morte doce
dos narcóticos

errou as palavras
da carta que deixou

(os efeitos adversos das palavras

náuseas, vómitos, vertigens,
casos, embora raros,
de melancolia)

errou a dose
errou o remetente.

Começos

Começos de livros, no Alcatruz. Pelo Henrique.

Linhas Cruzadas

O Afonso em Barcelona. Luís Quintais em Casmurro

15 junho 2005

Maggie



A rapariga chinesa
Dos santos populares,
Maggie é o nome dela,
Foi ter com ele
No dia seguinte.
Ele disse:
“Não quero gostar de ti,
Não quero saber o teu nome de família,
Onde moras,
Se pensas em mim
Quando eu não estou.
Não quero esperar por ti
Nesta pensão.”

Ela foi-se embora.
Ficou o nome,
Uma dor para o solstício de verão,
Em breve nada.

14 junho 2005

Um beijo nos santos populares



“Como perdem depois a urgência , os beijos?”

Nos santos populares beija-a. Ou é ela. Nos santos populares, de madrugada, não há beijos urgentes. São naturais como os milagres dos santos populares. Porque é que ele treme? Encontra o lábio dela, os dentes, a língua dura e perscrutante. A saliva dela sabe bem: alecrim, alcachofras, hortelã. Quando se afasta ligeiramente, vê-lhe a boca. Ela sorri um sorriso de triunfo, sucesso, patifaria, enlevo, deleite. Está a divertir-se. É muito excitante este sorriso. Ela beija a sorrir. Continuam. Mais húmido, mais fundo, mais trocado. À medida que o beijo vai crescendo a cara dela transfigura-se. Agora, quando ele de novo recua para perceber a cara que beija, encontra-a com os vincos da dor. E embora não a conheça, beija-a pela mulher que é e pela mulher que pressente nela.
Nunca se sabe como acaba um beijo. Aquele foi em lágrimas copiosas.

13 junho 2005

Frente a Frente



Frente a frente

Nada podeis contra o amor,
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.

Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
- e é tão pouco!

Eugénio de Andrade

12 junho 2005

Um Hamman em Istambul (Parte 2)


Os meus amigos da blogosfera têm escrito sobre a barafunda sedal dos balneários masculinos. A minha melhor experiência de balneário foi ambígua. Dizem-me que não a devia partilhar. Mas para que serve isto senão para falar dos balneários?

Vi a garganta de Loriga. Como Borges o Aleph. Como o doente no quarto do hospital, quando os sistemas de alerta se abandonam às primeiras horas da manhã, e a vida se retira, num travelling para trás, acelerado. Vi os covões sucessivos e os paredões musgosos, ora percorridos como se descesse, ora escalados sem esforço. Os pés não pousavam no granito, não se enredavam na turfa. Planava, elevava-me aos penhascos ou caía abruptamente nos barrancos. De vez em quando ouvia uma gargalhada, vozes que reconhecia. Sabia que estava no hamman da rua Koska, com uma toalha minúscula na mão e as costas inundadas de suor, na pedra quente, a pensar na garganta de Loriga, como se a relação entre os dois lugares fosse evidente. Sabia que as vozes familiares eram um engano. Mas não me importava. É assim que as crianças doentes ouvem as vozes dos pais, no corredor, em surdina, para eles não acordarem. Fecham os olhos, é muito agradável, algo no corpo anuncia a cura ou uma morte serena.
De repente fez-se silêncio e pela luz reconheci o Covão da Areia. Estava coberto de neve. Eu caminhava num grupo de mulheres e ia atrás e à frente sem deixar pegadas enquanto elas enterravam as pernas até aos joelhos. No topo do Covão, junto à descida, elas pararam, dispuseram-se em semicírculo aberto, para mijar. Mijam na neve. Estou de costas, ouço a toda a volta a neve desfazer-se, o doce degelo, como se ali fosse a nascente. Dissonante, algo me diz que devia ter mais gravitas, este meu Aleph. Mas não tenho outra coisa na cabeça. Ali, no balneário masculino da Turquia, vasodilatado até ao desfalecimento, rodeado de homens, alguns dos quais em provável erecção, não me vem à cabeça senão a imagem das minhas amigas em roda feliz, a mijar na neve.

A literatura da Galiza


A frase da semana foi dita a Babelia por Xosé Luís Méndez Ferrín:
" A literatura na Galiza está mais avançada que a sociedade ".

O homem que gostava das mulheres


O homem que gostava de mulheres. François Truffaut em 1977. E Charles Denner, aliás Bertrand, o engenheiro de Montpellier que traz escrito na agenda:"Ninguém para avisar em caso de acidente". Nesses dias, se se marcasse o 312, em Montpellier como em Lisboa, podia ser-se despertado por uma voz amável. Era a única vantagem que me ocorre, mas dessas pequenas coisas vivia ele. A pessoa mais parecida com Bertrand que conheço é jurista, sofre muito e não lê a Natureza do Mal, pelo que me parece inútil prosseguir este post. Sofre muito mas é feliz, do ponto de vista ontológico. Mesmo se esse ponto de vista coincidir com o desta imagem. Dia 14,terça-feira, na Cinemateca, vão perceber porquê. Não faltem, é às 19:30h.

11 junho 2005

Notícias Do Amor (Romântico)

O Joaquim leu ao mesmo tempo o post do amor romântico do Mal e da Elisa e resolveu comentá-los e publicá-los juntos. O Filipe, na sequência de dois posts fortes, anunciou para breve uma Base de dados on line sobre o amor romântico. Nunca um morto prometeu tanto.

Um Hamman em Istambul (parte I)



Os meus amigos da blogosfera têm escrito sobre a barafunda sedal dos balneários masculinos. A minha melhor experiência de balneário foi ambígua. Dizem-me que não a devia partilhar. Mas para que serve isto senão para falar dos balneários?

Mehmet Aga, o arquitecto do século XVIII que construiu a Mesquita Laleli foi também o autor de uns banhos de Istambul situados na rua Koska. Cheguei lá numa tarde de um Verão complacente. O ingresso era invulgarmente barato. Em troca de umas moedas davam uma chave, um par de chinelos, uma toalha. Com a chave acedia-se a um gabinete, disposto sobre o átrio de entrada como as frisas num teatro isabelino em torno ao palco. Sem conhecer bem o protocolo, imitei os outros frequentadores, que depois de se despirem desciam ao átrio de entrada antes de desaparecerem por uma porta central. Essa porta dava acesso a um espaço com várias fontes onde se começava a sentir calor e alguns frequentadores faziam abluções. Percebi que aquilo era só a preparação para qualquer coisa de mais interessante e continuei a atravessar portas até chegar a um espaço magnífico que tentarei descrever. Era circular, com a luz entrando generosa pelo tecto abobadado. No centro havia uma elevação, um largo pedestal circular, de mármore acinzentado, onde uma dezena de homens se deitava como os raios de um círculo. Esse pódio, elevado relativamente ao hipocausto, tinha uma temperatura inferior à do chão do recinto central, que queimava os pés. Em todo o lado se percebia que estávamos sobre uma enorme caldeira de águas agitadas. Junto aos muros havia várias capelas, separadas do espaço central por muretes. Escolhi uma e percebi que se destinavam a conversas mais reservadas e à aclimatação da pele e brônquios. Ninguém parecia interessado na minha presença,o que me pôs à vontade. Uma neblina quente envolvia discretamente os corpos dos homens. Eram quase todos morenos, excepto dois jovens de pele e cabelo claro que deambulavam como que procurando um lugar adequado na mesa central. Cansado de abluções, fui deitar-me ao lado deles, imitando o à vontade de um frequentador habitual. Nesse instante comecei a ouvir gritos. Não posso dizer que os gritos tenham tido início nesse momento. Seja como for, faziam até aí parte da luz estranha do lugar, do calor húmido infiltrado nos poros, da revelação sucessiva da arquitectura, do ruído das águas misturadas. Reparei que dois homens, a quem chamarei assistentes, prodigalizavam cuidados aos banhistas, cuja natureza não podia inteiramente compreender. A sequência era a seguinte: os banhistas eram esfregados vigorosamente com pedras ou panos ásperos, ensaboados ou massajados com óleos, chicoteados com ramos de oliveira. Depois os dois massagistas, que depois me disseram serem designados por kiyassas, promoviam flexões e estiramentos muito forçados das pequenas e médias articulações, o que desencadeava, nos utentes, gritos horríveis. Uivos de prazer e de dor, de surpresa e de júbilo, uma mistura dos berros guturais dos tenistas com os arrulhos das estrelas porno. Deitei um olhar furtivo ao parceiro do lado,
em decúbito supino como os restantes e que se preparava para ser intervencionado por um dos temíveis assistentes. Pareceu-me vislumbrar-lhe uma erecção. Lamentei não ter lido nada sobre o assunto. Seria essa a atitude esperada? Ou uma erecção, em sede de exclusão feminina, denunciaria uma falha na minha masculinidade?
Fiquei entregue a um torpor natural , criado pela humidade, o calor, a grandiosidade do cenário e a expectativa do que viria a suceder. Olhei os tetos, em tudo semelhantes aos das mesquitas mais elegantes, excepto no facto de não celebrarem a grandiosidade de Alá. Vi confusamente os azulejos. Quando o primeiro assistente se acercou de mim perguntou-me várias coisas incompreeensíveis, sucessivamente, e a todas devo ter respondido que sim. Aplicou-me um líquido espumoso que retirava de um balde. O Rude, escuro, de barba densa escanhoada e bigode aparado, o homem parecia a caricatura de um turco das cruzadas. As mãos eram no entanto de uma suavidade muito profissional. Puxou-me os dedos do pé até doerem, continuou a puxar até a dor desaparecer e me começar a sentir em lado nenhum e no centro do hamman da rua Ismaialat em Istambul. E a seguir a todas as articulações do corpo deu trato semelhante. Eu não sei se gritei se me calei.

Sobre a terra e sobre o mar

Tenho orgulho dos comendadores do dez de Junho. Os comendadores do Sampaio. O staff presidencial deve esforçar-se imenso durante o ano a procurar pessoas que sejam de direita condecorável consensual, de esquerda condecorável consensual e que o Sampaio nem conheça, para depois poder condecoraros amigos mais à vontade. São neste momento comendadores o Pacheco e o Marcelo. Juntos derrubaram o Lopes. O Lopes já deve ser comendador, sempre me distraí um pouco nestes feriados. Mas se o critério foi a notoriedade no derrube de Lopes, é injusto não ser condecorado o Rui Gomes da Silva. Intelectuais foram muitos, anotei o Botelho e a Leonor Pinhão e mais uma vez aplaudi a sabedoria do staff de Sampaio. Ao menos nas comendas funcionam as quotas.
Também lá estava o Manuel António Pina. Nas fotografias do dez de junho, com atenção, descobrimos sempre um poeta com ar de não saber bem o que está ali a fazer.

10 junho 2005

O Amor (variações sobre um tema)


O amor romântico foi uma invenção das mulheres para limitar os estragos da filandria masculina. Já tentei explicar isto de diversas maneiras, com posts esforçados. O amor romântico, um meme inútil, só sobrevive a si mesmo como um fósforo frio. O amor romântico já não é preciso. A partir do momento em que as mulheres controlaram a ovulação, o seu comportamento passou a assemelhar-se muito ao dos homens. A maior parte dos encontros sexuais é hoje não reprodutivo. Esperma derramado em vão em dobras de látex, não chegando às mucosas de mulheres duplamente protegidas. Um drama para o gene egoísta e para o director da ICAR, que no fundo se estão nas tintas para a coisa, já mais ocupados em serem que em permanecerem. O cérebro dos encontros continua à solta. Mas a sua deriva é sem sentido. O cérebro prodigioso das mulheres humanas solta-se do determinismo genético e constrói um comportamento novo, delicioso deve dizer-se, porque mistura tudo o que de interessante a cultura e a necessidade produziram nos últimos milénios. La femme est l’avenir de l’hommme, A mulher é o futuro do homem, cantou um desses alucinados do século XX. Estava a poucos anos de as ver: as mulheres humanas, essa prémio merecido, manhã e noite dos nossos dias, angústia e libertação, peso e leveza, riso e lágrimas, mas sempre lágrimas de lavar e de partir.

Post do orgulho pátrio: Manuel Maria Carrilho


Filósofo, nunca beberá cicuta. Polemista, chamou gelatina a Marcelo. Mundano, vendeu o casamento ao Expresso e à Caras a ida à Feira do Livro.
Bárbara, o seu principal argumento político, disse do filho que via Lisboa do alto, porque passeava aos ombros do pai. Também o Manuel Maria tem uma visão panorâmica da capital, às cavalitas do EPC, outro orgulho pátrio.
Não é muito alto, mas é o que se arranja.

09 junho 2005

O blog da Zazie


O blog da Zazie, o blog secreto da Zazie, o sítio de onde ela desfere ora aquelas mortíferos arremessos ora uns ternos arrufos, é ali. A única mulher do mundo capaz de citar ao mesmo tempo Restif de la Bretonne e o delegado da ICAR SS, Brecht e Céline, Pound e Éluard. Zazie, a hipercinéfila, a cólera de deus, o terror dos medíocres, a História sem fim, as Zundapps roubadas, o musaranho coxo. Ao vivo e aqui.

Melancolia

Há um fim de tudo. Quando acaba aquela confiança inabalável? Quando já nem a roupa nova é redenção? Quando ficamos invisíveis (API), deixamos de telefonar (Saraband)? Por mim posso dizer: leio no mail I love you, sempre com remetentes fabulosas, a Claudia Siggarth, a Yulma Nest, a Grace Dashmond. E sei que só pode ser um vírus, nunca arrisco, faço delete sem abrir.

08 junho 2005

Intervenção Política

Depois do JPP ter aberto a Coluna do Não, são mais que muitos, com os inevitáveis filhos da puta ( que saudades tenho do meu Panterazinha das legislativas). Agora aquele senhor entrevistado aos domingos pela Ana Sousa Dias entrou na blogosfera com o É sim, popular, categórico, definitivo.
Nós sobre isto temos idéias claras. Estamos a pensar criar o blog Sim, Não e Talvez te lixes.

A Pedra que Canta

Concordo inteiramente. É por estas e por outras.

As Mulheres de O Mal: Maria Judite de Carvalho


Maria Judite de Carvalho (1921-1998) estreou-se com Tanta Gente Mariana, um dos livros que a minha mãe lia quando éramos pequenos. Depois publicou mais doze, entre as quais a Seta Despedida, que teve um prémio e, como os outros, quase ninguém leu. Mas quando Maria Judite de Carvalho começou a escrever, quase só ela e Vergílio Ferreira escapavam à maldição que o Estado Novo e o neo-realismo tinham lançado à literatura portuguesa.

As Mulheres de O Mal: Mary Robinson


Irlandesa, Presidente da Irlanda de 1992-97.Comissária da ONU para os Direitos Humanos tendo afrontado os Estados Unidos e a Rússia (ficaram célebres as visitas à Tchetchénia e ao Afganistão).Fundou a EGI (Iniciativa Ética Global).

O reservado


Vivo num reservado, na zona da Alta. É assim que respondo. Deito-me cedo. Enrolado no edredão, em cima dos cartões. O Aníbal levou para lá um sofá. Um luxo. Eu não preciso de sofá. Há três anos que durmo em cima do cartão. Não há frio que me chegue, com cartão e edredão. O sítio é protegido, tem as escadas em cima. E os canteiros à frente. Com o Verão vieram mais dois tipos. Somos nove no total.Mijamos nos canteiros. O Aníbal é contra, mas a cerveja dita a sua lei. O mijo queimou as flores. O Aníbal sempre que mija grita: Átila, Átila. Esbraceja e grita Átila. O que ele dizer é que por onde o cavalo passa nunca mais vida nenhuma reverdece.

EPC


A obsessão laudatória de EPC relativamente a Sócrates e ao governo está a tomar aspectos inquietantes. EPC alterna uma crónica, digamos, de cultura geral, com outra de defesa inflamada e sectária do novo governo. Já antes acontecera o mesmo com Graça Moura e Cavaco. Como é que se pode ser sensível e de bom gosto com Shakespeare e Petrarca, e grunho relativamente ao timoneiro? Interrogamo-nos sempre se essa gente não tem amigos. Alguém que lhes diga. O problema é que não têm. Só epígonos. Palmadinhas nas costas. Andas a escrever umas coisas porreiras ó Vasco , ó Eduardo. Sim, por que já chegou o tempo dos intelectuais serem responsáveis. Com menos brilho, decerto. Mas do lado certo da história. Como dizia e repetia hoje o amigo -dos-quadros-no-andar-do-Bairro Alto: eu sou pela evolução, não sou pela revolução. Na verdade, os amigos das palmadinhas não leram o Vasco nem o Eduardo. Eles só costumam ver as setinhas. E sabem que o Sócrates está com a setinha para cima. E o Eduardo está a ajudar. Agora é dos nossos. Os intelectuais estão connosco. Mais palmadinhas.

07 junho 2005

Junto ao depósito


Se a vida fosse um romance decente, a dele tinha acabado ali, naquela tarde, junto ao depósito de água.
Sobrevivente. Foi o que passou a ser. Todas as manhãs enrolava o edredão, descia a Couraça até ao Terreiro, aos banhos públicos da Ajuda Médica. Bebia o leite com café, perguntava:
- Hoje dão sopa?
Só para ouvir a voz da dona Rosa a dizer o seu nome:
- A sopa não se vai acabar,Heitor. Mas é só às sete horas, aguenta-te até lá.
Como é que se aguenta até às sete hora? Como é que se aguenta uma vida que, se a vida fosse um romance decente, há muito que teria tido o seu epílogo?
Eu disse no depósito de água? Talvez antes. É sempre difícil de dizer o momento certo, quando a narrativa suspende ainda o leitor.
Já todos os leitores tinham desertado da vida dele. Foi então ali que acabou o romance da sua vida, naquela tarde junto ao depósito de água?

(Foto de Lothar Baumgarten)

06 junho 2005

O começo de um livro

¿Cuándo se jodió el Perú?- o começo de Conversa na Catedral



Da porta de "La Crónica", Santiago contempla a avenida Tacna, sem amor: automóveis, edifícios desiguais e descoloridos, esqueletos de anúncios luminosos a flutuar na neblina, o meio dia cinzento. Em que momento se tinha fodido o Perú?


(Mario Vargas Llosa, Conversa na Catedral
)


(Agradecimentos ao Lino da Falta de Tempo)

O começo de Menina e Moça


Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aventura, a que me fez ser leda. Depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha.
Menina e Moça, início

(com um agradecimento à Zé )

Começos

Não é bem um começo, mas o Bombix mori tem lá Joyce disponível. E um excelente resumo do debate blogosférico sobre o PCP e Staline. E tu Bruno, corta ou não corta o Vicente para canto?
E por falar em debates: depois do Staline é o Masculino-Feminino. É o eterno retorno, nem os video-clips são novidade.

O começo de um livro é precioso


O começo de um livro é precioso. Muitos começos são preciosíssimos.
Mas breve é o começo de um livro- mantém o começo prosseguindo.
Quando este se prolonga, um livro seguinte se inicia.
Basta esperar que a decisão da intimidade se pronuncie.
Vou chamar-lhe fio___ linha, confiança, crédito, tecido.

Maria Gabriela Llansol, O Começo de um Livro é Precioso, Assírio e Alvim, 2003

Mondovino, o filme


Um filme-documentário sobre o vinho, realizado por um homem do meio (Jonhatan Nossier, França 2004) que o dedica aos pais. A agonia dos produtores das regiões históricas de Bordéus, Borgonha, Norte de Itália, Sardenha. A súbita riqueza do vale de Napa e dos Mondavi. O papel de Robert Parker, o jornalista, do Wine Spectater e de Michel Rolland, o enólogo, fundamentais para a legitimação do produto, a elevação à categoria mítica e a uniformização do gosto dos consumidores.
Um filme com grandes personagens: Hubert de Montille e Aimé Guibert: “O vinho morreu. Sejamos claros, o vinho morreu. E não apenas o vinho, mas também os frutos. Os queijos... “
Eles, os pequenos propietários que no sul de França, contra a corrente resistiram aos Mondavi, são os verdadeiros aristocratas. Muito mais que os ridículos Frescobaldi e Antinori de Florença, saudosos de Mussolini.
O filme é genial em apontamentos onde surgem personagens como o antigo maire socialista, o enólogo em ascensão, o homem do vale perdido da Argentina, o inenarrável Parker. E uma angústia que perpassa pela soturnidade da família Mondavi, a agitação permanente de Rolland, a decadência dos nobres de Florença, o medo dos habitantes de Aniane, a brutalidade dos senhoritos da finca argentina, a sombra do Fórum Anti globalização.
O momento mais forte do filme é a prova com Alix de Montille, a rapariga que diz dos vinhos de agora: “Ce sont des vins qui vous en foutent plein la gueule dès le départ. Ou qui sont tout en rondeur, et qui vous lâchent d’un seul coup ».
Mondovino é um filme. Talvez por isso a sua exibição passe quase despercebida (está no Millenium Avenida, em Coimbra). Os críticos das estrelinhas deram-lhe três. Que tenham bom proveito.

05 junho 2005

A falta que me fazes

Quarto com Vista e O Melhor Blog do Mundo desapareceram sem rasto. Detesto estas coisas. Sou pelas despedidas com baba e ranho, sofridas, meladas. Será que vai ter edição em livro e é uma exigência do editor? Vai aparecer em breve, discretamente. Está já no ar com outro nome? Chateou-se porque não gostávamos dele(a) como merecia?É sempre assim. Só quando desaparecem as coisas que nos são queridas é que percebemos a falta que nos fazem.

O Começo de um livro (nos comentários de O Mal)

Lino ainda bem que lembraste a Conversa na Catedral, esse monumento, um livro importantíssimo, geracional, mais um que mostra que a revolução de 68 foi mundial, e teve aspectos semelhantes no Peru e em Paris.
Lídia ( Errância) escolheu o começo da Balada do Café Triste.
Quid Iuris reproduziu o começo de 120 dias de Sodoma.
G. Rodrigues (Fragmentos) o começo de Lolita e de Finnegans Wake.
Alexandre (Espelhos Velados) copiou o fabuloso começo de Vernon Sullivan.
Daniel lembrou The end of the affair (O Fim da Aventura, o melhor de Graham Greene). Ficamos à espera de Os amores do diabo, de Cazette.
A Zé (Ler do Ler), Bernardim Ribeiro. Mas o que conta, Zé e Margarete, é só a primeira frase. Assim mesmo, o fabuloso início encantatório de Menina e Moça é:
Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe.
Henrique (Alcatruz) lembrou o começo de todas as histórias: Era uma vez…Nos comentários podem ainda ler-se as escolhas da nossa Zazie e Margarete,Bruno dos Leões de Tolstoi, AP e de Blimunda.

Como começa o livro da mulher que escreveu O começo de um livro é precioso?


Veja ainda nas caixinhas as escolhas de John, Bruno F Braz, Alexandre, Santos Passos, G. Rodrigues .

Medo

Os velhos e as crianças
têm medo de ficar sozinhos.
Os novos não têm tempo,
são indiferentes ou frágeis,
ou sentem o medo deles

e têm medo.

Este país te mata

Ele chegou tarde a casa. Disse-lhe:
- Estes gajos são todos iguais. Viste o ministro das Finanças? Pede contenção mas goza vencimentos múltiplos.
- É tudo estritamente legal, respondeu ela.
- Pode ser legal, foram sempre eles que fizeram as leis.
- Mas estão agora a corrigi-las.
- A corrigi-las? Tu acreditas nisso? Acreditas…
- Acredito que é tempo de fazer qualquer coisa e que eles vão fazê-lo, interrompeu ela num tom calmo mas onde algum confronto era perceptível.
- Então achas bem que eles acumulem reformas de privilégio e falem na abolição dos direitos sociais como se fossem privilégios da função pública?, insistiu ele.
- Não acho que os governantes tenham de ser pobrezinhos. Se podem acumular e isso é legal, que acumulem. O que me interessa são as suas políticas.
Ela estava determinada. Passou ao ataque:
- Tu pareces aqueles jornalistas que ganham mais do que o ministro e agora incendeiam o povinho com pacotes ridículos de indignação populista.
Ele estava cada vez mais espantado:
- Tinhas suma bolsazeca de investigação. Perdeste-a mal conseguiste esse emprego. (Não disse ranhoso. Parou à beira de dizer ranhoso.) E agora achas bem que acumulem o que quiserem. Com o teu dinheiro de contribuinte.
Ela não se deixou comover pela invocação do seu caso pessoal:
- Perdi a bolsa e não pude acumular. Mas eu não quero ser ministra. Não tenho capacidades, não quero responsabilidades, odiava ver a minha vida devassada e ser alvo da inveja dos medíocres.
Ele foi-se deitar sozinho e amuado. Pensava que era aquilo o estado de graça. Lambem as mãos dos senhores. Sempre foi assim. Ao mesmo tempo algo nela o comovia. Aquela vontade de acreditar nos dirigentes. Antes de adormecer percebeu que se ela, e milhões como ela, deixassem de acreditar, o país seria uma coisa terrível, tomado pelos descrentes de tudo, uma mistura de radicais, cépticos, gente que parece sempre a um passo da acção directa contra a câmara de televisão, já que o Bush está longe e é forte de mais. Os broxistas, sobretudo os broxistas legitimados pelo seu passado de coerência subsidiária, os broxistas intelectuais que sabem usar o léxico e a memória da esquerda, são, afinal, úteis à coesão social. Pensou qualquer coisa assim antes de adormecer.

De manhã teve finalmente tempo de ler o jornal da véspera e o editorial.
Porra, tinha dormido com o José Manuel Fernandes. Felizmente fora sem sexo.

04 junho 2005

O começo de Ulisses, Joyce

Pomposo, roliço, Buck Mulligan veio do alto da escad trazendo uma tigela com espuma de barbear, na qual se cruzavam, em cima, um espelho e uma navalha.

O começo de Finisterra, Carlos de Oliveira.

O jardim familiar (primeira fase do abandono): montões informes de silvedo, buxo descabelado, urtigas, flores selvagens.

O começo de Crime e Castigo, Fiódor Dosteiévski

Ao entardecer de um dia muito quente de inícios de Julho um jovem saiu do quarto que subalugara na ruela S… e pôs-se a caminhar lentamente, como se estivesse indeciso, na direcção da ponte K…

O começo de Ana Karenina, Lev Tolstoi

As famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são-no cada uma à sua maneira.

O começo de O Processo , Franz Kafka

Alguém devia ter difamado Joseph K., pois certa manhã, sem que tivesse feito qualquer mal, foi preso.

O começo de Pedro Páramo, Juan Rulfo

Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia o meu pai um tal Pedro Páramo.

O começo de Os Cadernos de Malte, Rilke , trad. De Paulo Quintela

É então aqui que as pessoas vêm viver; eu antes diria que é aqui que se morre.

O começo de Um Coração Simples, de Flaubert:

Durante quase meio século, os burgueses de Pont-l’Evêque invejaram a Mmme Aubin a sua criada Félicité.

O começo de Austerlitz, de W.G.Sebald

Durante a segunda metade dia anos sessenta, em parte por motivos de estudo, em parte por outros que eu próprio não descortino bem, viajei amiúde entre a Inglaterra e a Bélgica, umas vezes por um ou dois dias, outras por várias semanas.

O começo de Amor & C.ª/ Talking it Over, de Julian Barnes

O meu nome é Stuart e lembro-me de tudo.

O começo de O Mal de Montano, de Enrique Vila –Matas

No final do século XX, o jovem Montano, que acabava de publicar o seu perigoso romance sobre o enigmático caso dos escritores que renunciam à escrita, foi apanhado nas redes da sua própria ficção e converteu-se num escritor que, apesar da sua compulsiva tendência para a escrita, ficou totalmente bloqueado, paralisado, ágrafo trágico.

O começo de A Serpente, de Stig Dagerman

Estava tanto calor que quase se podia torrar café nos carris.

O começo de Michael Kohlhass o rebelde, de Kleist

Nos meados do século dezasseis, vivia nas margens do Havel um negociante de cavalos chamado Michael Kohlhaas, filho de um mestre-escola, um dos homens mais mais correctos e ao mesmo tempo mais terríveis do seu tempo.

O começo de Os Conquistadores, André Malraux

A greve geral foi decretada em Cantão.

O começo de A la Recherche du Temps Perdu, Proust

Longtemps je me suis couché de bonne heure.

O começo de Manuscrito encontrado em Saragoça, Jan Potocki

O conde de Olavidez não tinha ainda instalado colónias na Serra Morena.: esta cordilheira altaneira, que separa a Andaluzia do estreito nessa época era habitada apenas por contrabandistas , bandoleiros e alguns ciganos que tinham a fama de comer os viajantes que assassinavam; daí, um provérbio espanhol que rezava: as ciganas da Serra Morena querem carne de homem.

O começo de Cem Anos de Solidão, Gabriel Garcia Marquez

Muitos anos depois , diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.

Um bom começo

Diz Borges numa entrevista que a frase mais importante de um romance é a primeira. E cita, como exemplo inultrapassável, o começo do Quixote:
Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, não há muito tempo vivia um fidalgo desses de lança no cabide, adaga antiga, rocim magro e galgo corredor
.
Vamos escrever aqui alguns dos bons começos que conhecemos. Podem lembrar outros. E votar no melhor começo.

01 junho 2005

França e Holanda enterram a Constituição Europeia

A Espanha elegeu o governo mais à esquerda da Europa e aprovou a Constituição Europeia. A França e a Holanda, elegeram governos de direita e rejeitam a Constituição europeia. Os políticos da esquerda dizem que franceses e holandeses recusaram o modelo liberal de mercado e não querem perder a referencial social. Isto tudo tem uma lógica que me ultrapassa.

As Mulheres de O Mal: Benazir Buhtto


A primeira mulher a ser eleita primeira- ministra num país muçulmano

As Mulheres de O Mal: Aung San Suu Kyi


Estudou em Oxford e voltou para a Birmânia em 1988. Denunciou o governo militar e poderia ter desaparecido como sucedeu a tantos invisíveis do Sudeste asiático que ousaram defrontar os déspotas locais. Mas Aung San Suu Kyi era neta do herói nacional e a Junta não tinha as mãos livres contra ela. Alternando a prisão domiciliária com a liberdade vigiada Aung San, Nobel da paz, é uma referência democrática numa região em que exemplos destes escasseiam.

Dominique de Villepin


Quando as avós das miúdas de hoje cortaram os cabelos diziam que elas o usavam à parisiense. As mulheres que fizeram a revolução sexual em Portugal liam o Deuxiéme Sexe e eram existencialistas. E também Camus, Vailland, Claude Roy, Vercors,(e algumas, infelizmente poucas, os surrealistas).
Nos anos sessenta, os camponeses das Beiras venderam as terras para lá chegarem, a salto.
A revolução de 68, começo do fim do actual ciclo do sistema-mundo, foi em Berkeley, na América latina, no Viet Nam, no extremo oriente, na Àfrica colonial. Mas foi Maio de 68 que se ficou a chamar.
Antes dos Beatles e dos Stones os jovens europeus nascidos do baby boom, trautearam Brel, Gainsbourg e Léo Ferre, Regianni. E as meninas dans le vent choraram com Françoise Hardy.
Agora é moda dizer-se mal da França. Mas no tempo em que quase não havia blogs, antes e durante a invasão do Iraque, quando só dava Aznar e Barroso, Berlusconi e Blair, foi a França que nas arenas internacionais mostrou a outra face da Europa. E a face da França foi Dominique de Villepin. Ainda bem. Porque os neocons são, lá fora como cá, quase todos gordos e broeiros.
É bom ver Dominique de Villepin à frente do governo francês. Melhor do que Hollande ou Fabius.

A maioria do povo é contra a respiração


Foi pouco depois da meia noite que o Bonirre me passou a mensagem: -"Já leste o César das Neves? Diz que a maioria do povo é contra a respiração."
-"Contra a respiração, porra".
Tinha pegado o turno da noite. Tinha de acabar as pontas soltas do colega da tarde. Comecei a respirar mais devagar. Talvez não se notasse. Só seis vezes por minuto. Devagar e profundo. Ou cão cansado. Levezinho e polipneico.
Eu estava preparado para tudo. Para a subida dos impostos, a perseguição às células mães, o biblioclasmo, o desaparecimento de Lúcia. Mas francamente. Para a desaprovação popular da respiração, ainda não. A respiração, que galhardamente sobrevivera com os epicuristas e os hedonistas. A revigorante respiração dos cínicos. A respiração dos ateus, quase só brado, só expiração. A respiração do renascimento. A respiração dos marinheiros nos barcos da campanha. A suave respiração do Corto Maltese.
Há um tempo para o fim de tudo, pensei. E chegou o tempo do fim da respiração. Nessa altura chegou-me à mão uma encomenda de roupa infantil. E os inocentes, lembrei-me. Os que respiram sem saber. O que irão fazer à respiração inocente? E os doentes? Não haverá uma cláusula de exclusão? Uma bula, sei lá. E se respirarmos com a bênção do patrono da ICAR, depois dos sacramentos. Se respirarmos sem prazer. Só para extrair os gases maus, em estado de necessidade, por assim dizer. Se respirarmos apenas para fins respiratórios? Se respirarmos com acompanhamento social, uma respiração socialmente assistida. Uma respiração anaeróbica substitutiva?
A maioria do povo em apneia desaprovatória, coitadinhos. O referendo da falta de ar. A votar NÂO em grande aperto celebratório, e eu sem dar conta. Ou terá sido no Parlamento, por razões económicas, só até 2010, só até podermos respirar de novo?
Estava a sentir-me cada vez melhor. O cérebro leve, um bem estar a entrar devagarinho pelos plexos, tremores imperceptíveis. As vantagens da falta de ar, da hipercapnia. Foi quando o Bonirre mandou outra mensagem: -" Não é contra a respiração, estúpido. É contra a masturbação".
Ai, esta escrita inteligente.