30 setembro 2013

A morte da infância



C de Jesus, fotografia de Luís Januário

Em 1982 um homem chamado Neil Postman, teórico dos media e crítico cultural, escreveu um livro chamado The Disappearance of Childhood.  Postman chamava “childhood” ao período que vai dos sete aos dezassete anos. Coincide com a idade escolar, englobando a segunda infância (middle childhood) e a adolescência, ou, em termos biológicos, o período que começa na adrenarca e vai até ao fim da puberdade. À falta de melhor, e para simplificar, utilizarei aqui a palavra “infância” nessa acepção. Pois para Postman, como para Hugh Cunningham, autor de uma fabulosa investigação sobre a história da infância no mundo ocidental, este conceito é um artefacto social. Surgiu no século XVI  com o Renascimento, a ciência, o Estado-nação e a liberdade religiosa, graças sobretudo ao desenvolvimento da imprensa escrita, e foi-se aperfeiçoando ao longo dos últimos 350 anos. No início desses anos 1980, quando Neil Postman publicou o seu livro, a infância tinha-se já extinguido, liquidada pelos media electrónicos e, sobretudo, pela televisão. Ele debruçou-se com brilhantismo sobre os sintomas da extinção da infância: o desaparecimento de vestuário especificamente infantil, do comportamento, das atitudes, dos desejos, “mesmo do aspecto físico”.  Mas, e é este o ponto em que me vou concentrar, a parte mais curiosa do livro de Postman é sobre a perda da inocência.
A infância era um período de alegre e despreocupada brincadeira. Em todos os lugares havia bandos ruidosos. Nas cidades em crescimento brincavam nas ruas em construção, terrenos baldios, pinhais e matas. Muito perto de bairros residenciais exploravam os olivais, terrenos de pastagem, poços, azenhas, estábulos, faziam negaças a caseiros de bigodes façanhudos e botas de cano alto,  trepavam os muros brancos de cemitérios assombrados, aventuravam-se em visitas secretas a matadouros onde, com um pouco de sorte, ganhavam uma bexiga para um jogo de futebol arqueológico. Os seminários albergavam já poucas vocações, mas nos campos de jogos havia partidas de futebol memoráveis. Esse mundo livre da infância era desconhecido das pessoas adultas. E esse desconhecimento, essa ausência de supervisão e enquadramento, de projectos educativos e objectivos curriculares era a garantia mesma da sua liberdade. Da mesma forma que os pais retinham do mundo da infância os rasgões nas camisas, os arranhões e a sujidade,  e respeitavam aquele espaço que, de certa forma, fora também o deles, assim se comportavam as crianças e os juvenis, numa mistura sempre instável. Nas horas mortas, nas tardes quentes da Páscoa interminável, a horda juvenil reunia nas escadas de um prédio ou num quintal mais recatado, e os mais velhos, cheios de prestígio capilar, abriam os livros e davam aulas de educação sexual. Era uma mistura de anatomia e fisiologia, higiene e rock ‘n’ roll, senso comum e ideologia popular masculina, uma fórmula insuperável de espantosa ignorância e imaginação prodigiosa. Esses rapazes-mestres teorizavam sobre o aparelho genital feminino sem nunca terem vislumbrado sequer o joelho das meninas. À noite, na época de verão, perante uma audiência seleccionada, explicavam o coito, com a elegância que a pobreza lexical e a insipiência lhes permitiam, enquanto um murmúrio de assombro perpassava a galeria. Este mistério que recaía sobre a vida dos adultos era o coração negro da infância. O seu encanto e o seu atormentado vislumbre do prazer. A infância (dos meninos que gostavam de meninas) era um tempo de neblina e silêncios que acabava numa revelação esplêndida, uma promessa de sabedoria, a travessia de um túnel de escuridão no fundo do qual havia a Terra prometida, a bondade e a beleza das mulheres adultas e disponíveis, a sua underwear enfim revelada e a maciez imaculada do seu corpo, a intimidade pressentida, a tortura da carne como desporto e arte.
A televisão, primeiro lentamente, depois como uma caterpillar, abateu-se sobre este mundo secular. Esse “dispensador igualitário de informação”, nas palavras de Postman, permitiu a visualização e a representação ad nauseam desta realidade, “erotizando as crianças e infantilizando os adultos”. 
Desde a sua popularização, a televisão revelou incessantemente às crianças o mistério da vida adulta: sexualidade e violência. Tudo sem rede, nem grandes oportunidades familiares ou escolares para informar, debater, desconstruir. Até que o mistério se banalizou na linguagem e no comportamento, dando lugar a um mundo informe de Lolitas, Barbies e Bens, crianças maquilhadas e envernizadas, e adultos de All Star.
O acesso irrestrito ao mundo dos adultos fez ruir a grande interdição, a que recaía sobre a  sua sexualidade. Acabou a idade da inocência. Nem pecado, nem culpa. O terceiro segredo de Fátima era o que os adultos faziam na escuridão. Quando foi revelado já não interessava a ninguém. 
Postman morreu em 2003.  A infância falecera há décadas, durante as telenovelas da tarde.


Neil Postman, The disappearance of childhood, Vintage Books, 1982
Hugh Cunningham, Children and Childhood in Western Society Since 1500 (Studies In Modern History), Pearson, 1995
Frank Furedi, Let the children be children, The Guardian , 2010 http://www.theguardian.com/commentisfree/2010/feb/26/children-behaviour-sexual-images


[Luís Januário - crónica publicada no Jornal i de 28 de Setembro de 2013]


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22 setembro 2013

Os Cinco Fechados Em Casa


Fotografia: DrGica

Agora que as aulas recomeçaram, as ruas da cidade enchem-se de carros. Saem à mesma hora, sincronizados pelos horários escolares. Buzinam, atropelam-se nas rotundas, impacientes. São conduzidos por GPS autistas dos vários sexos. Dentro dos carros de vidros escurecidos devem vir crianças. Não importa que sejam Darth Vader, nascido Anakin Skywalker, Dora a exploradora, Xana Toc Toc, a fada Sininho, o bombeiro Sam, Bob, o construtor. São as nossas crianças invisíveis, sequestradas. 
Em horas como esta, as ruas próximas das escolas são as mais poluídas da cidade. Os raros transeuntes respiram CO e os outros resíduos gasosos dos combustíveis fósseis. Todos os dias há pequenos acidentes. Latas, o atropelamento de um peão ou de um velocípede, coisa pouca. Esta azáfama dos dias úteis e repetidos, esta agitação buzinada, que começou uma hora antes nos quartos, cozinhas e casas de banho dos apartamentos, vai parar subitamente dentro de uma hora. Aí, com a população activa encarcerada, reformados e pensionistas, pessoas  desempregadas e alguns aristocratas residuais vão assomar às esquinas e ocupar o que resta da cidade.
A Dora e o Bob, o Sam e o Rato Mickey, o Darth Vader e a fada Sininho passaram o dia na roda viva das aulas supercurriculadas , dos ATLs, das “actividades” e dos TPCs.
Crianças de 8 anos fazem agora “pesquisas no tablet que o mano lhes deu”, como relatava o Tomás numa reportagem do i, do passado fim-de-semana. Surgiram expressões que são, em si mesmas, patogénicas. Uma das piores é “tempo de ecrã”, designando o tempo que uma criança fica em frente de um computador, um andróide, um tablet, uma PS3 slim, vendo televisão e vídeos e jogando jogos de computador, alheia às conversas dos mais velhos, sem saber se chove ou se faz sol, ela também virtual, sozinha, sedentária.  Os lugares de brincadeira, ruas e terrenos baldios, bosques e pinhais, largos e terreiros, desapareceram ou tornaram-se perigosos, facto ou mito, realmente ou na imaginação dos pais.  Existem agora os parques verdes, os parques aquáticos e os parques temáticos, os recintos de diversão e os espaços onde despejam as crianças enquanto os adultos fazem compras ou convivem. São mais um elemento da sequestração da infância, mesmo quando parecem bem intencionados. A excessiva estruturação, intencionalidade, planeamento e vigilância não permitem o que foi facultado às gerações passadas: a imprevisibilidade, a criatividade, a incerteza, a aventura, o desafio, a transgressão, a lama, os arranhões e as esfoladelas. E, como tantos escritores do passado escreveram, de Walt Whitman a John Banville, de Enid Blyton a Mark Twain, de Alain Fournier a Ilse Losa ou a Maria Alberta Menéres, uma sensorialidade que é feita do cheiro da terra e dos animais, das humildes flores sem nome e do lodo que empapa os sapatos, do suor, da escuridão entre o murmúrio das canas, do perigo e da transgressão, das urtigas e do abraço das trepadeiras, dos pequenos animais dos charcos, dos répteis ao sol, nas pedras, capturados com um laço de uma pragana. 
A área de liberdade para brincar no exterior, mesmo nos subúrbios das cidades, reduziu-se notavelmente e é hoje, para a geração com menos de 17 anos, um décimo da que os pais dispuseram e um centésimo da dos avós. A rua onde uma geração jogou futebol e moche, mata e badminton está hoje parcamente arborizada, parquimetrada e deserta. A “mata cerrada” deu lugar a talhões de apartamentos em que até as varandas são apressadamente encerradas em marquises. O caniçal de Coselhas está convertido num perigoso acesso à circular externa. Ninguém sabe porque é que os Montes Claros eram claros ou Montarroio rojo, ou a Conchada “lembrava a boca de um vulcão, mas fechada por baixo, sem garganta”(Carlos de Oliveira).  Os espaços verdes, comentou Tim Gill, são sobretudo frequentados por pessoas adultas, que passeiam cães infelizes ou fazem  jogging (sem meta à vista). As crianças que brincam em terrenos baldios são vistas como pré delinquentes, negligenciadas, candidatas a uma visita do que resta da Segurança Social. Os pais são relapsos, egoístas, inconscientes. Embora não haja memória pessoal de um rapto e os relatos hipermediáticos sejam tão raros que os podemos nomear sem esforço, a “cultura do medo” (Frank Furedi) instalou-se para sempre. Os meninos que já podiam andar, são transportados por motoristas exaustos. As meninas que podiam ir  sozinhas, ou em grupo, vão escoltadas. Todas as crianças, o tempo todo: disciplinadas, domésticas, domesticadas.
Ninguém tem sequer coragem de propor a alteração desta distopia. Ir a pé para a escola tornou-se absurdo, impossível, perigoso. Os pisos são escandalosamente alcatroados à pressa antes das eleições, gerando filas descomunais de impacientes carros sincronizados pelos horários escolares, mas escasseiam os passeios e não há vias verdes pedonais ou protegidas para ciclistas.
Dizem que as crianças adquirem competências espaciais superiores nos jogos de PS3 em que têm sete mortes ou sete vidas, e podem cometer setecentos assassinatos, recorrendo a métodos variados. Mas as nossas crianças, invisíveis, sequestradas, desconhecem o lugar onde vivem, as vizinhanças, as ruas que vão de sua casa à escola, os atalhos secretos, o prazer de ser peão, de andar de transporte público (no banco de trás), de saltar nas poças de lama, de caminhar, de falar entre elas enquanto caminham.


Helen Tovey, Playing Outdoors, Spaces and Places, Risk and Challenge, Open University Press, 2007

Tim Gill, No Fear: Growing Up in a Risk Averse Society, Calouste Gulbenkian Foundation, 2007

Carlos de Oliveira, A Bela Adormecida, in O Aprendiz de Feiticeiro, Assírio e Alvim 2004

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15 setembro 2013

Então agora vamos ficar sem o Ruy Belo




Ao Osvaldo Silvestre

A miúda da Mango tem qualquer coisa de diferente. Mesmo que a diferença seja, no fundo, a sua vulgaridade. Chama-se Miranda e é mais uma que passou directamente de Hannah Montana para Las Vegas. Pensando melhor, ou olhando melhor, ou para ser mais exacto olhando, mais adiante, uma segunda vez, talvez o Outono não venha a ser tão mau. Devemos circular nas rotundas de acordo com as disposições legais ou com o bom senso. Uma rapariga de óculos fala ao telemóvel enquanto guia. Não são só os carros de alta cilindrada que desrespeitam os velocípedes. Talvez a Cristina tenha entrado em Medicina. Que será feito de Dora Lima, a mulher das fotocópias na Escola de Enfermagem. Será que a cabra da patroa a despediu. Adoeceu gravemente. Tanta gente que desapareceu nestes anos. O David Lodge não escreveu mais nada depois do Homem de Partes. Estava-se a ver. No ano em que o Sebald morreu, o que é que tinha lido dele. Ao volante de um carro na estrada de Norwich. Ao volante de um Chevrolet na estrada de Sintra. As Farmácias não deviam ter cruzes tão verdes, tão brilhantes. Pensa nela, nas três principais posições. A pri-meira tens da-di-vi-nhar. A se-gun-da… A estátua do Bissaya é mesmo pequenina, atarracada. Parece um anão, comparado com o cónego Melo. Do tamanho do Manuel Alegre. A que propósito põem semáforos no meio de uma avenida. Já não ocupam casas há duas gerações. Miranda, a miúda da Mango, fica bem de preto. Nunca entro nesta curva com as rotações adequadas. O António Franco Alexandre calou-se.  Como é que se chamava afinal o estudante israelita que chegou hoje de manhã ao serviço. A esta hora já não há pão fresco em nenhum lado. Anoitece tão cedo. Vinte euros já não enchem um depósito. Que simpática, a Magda, que mandou o último dos Arcade Fire, a banda canadiana de Win Butler e da Régine Chassagne. Chama-se Reflektor e o vídeo é de Anton Corbijn, o mesmo do biopic de Ian Curtis, dos Joy Division. Não consegui abrir a aplicação mas decorei estes nomes todos. Mais uma curva impossível. Recomeçaram as aulas. Outra vez tudo. Para alguns pela primeira vez. Não consigo transmitir aos pais dos que agora entram no primeiro ano, a excepcionalidade do acontecimento. Identificam solenidade com obsolescência. Gravidade com aborrecimento. E acima de tudo não querem estressar as criancinhas. Agora que estão a fechar as lojas dos CTT, onde se entregam as encomendas. Porque é que ele me mandou um livro do Phillip Larkin. O que é que ele vê em mim que lhe lembra o Larkin. Tenho mesmo de ler o Larkin com mais atenção. Cabrão de gajo a estacionar num cruzamento. Que raio de instituição será a Policia Municipal. Fará formação. Que ordens darão aos operacionais. Que directivas. Hoje viu uma polícia municipal a estacionar em cima de um passeio e outra a fazer festas a uma criança abandonada num carro. Não esquecer: uma mulher polícia é um polícia mulher. Adoro as pernas da Garence, nuas até aos sapatos ponteagudos. A ter-cei-ré é la-por-ci-ma. Quantos anos mais este motor será assim, tão potente e silencioso. Já ouviu este motor a trabalhar. E então ouviu, ou percebeu que era dele aquele ruído redondo, entre mecânico e orgânico, as rotações perfeitas, o uivo na aceleração, a redução, o ponto morto. Daniela teve hoje uma filha, vinte anos depois. Não acredito nas notícias do Yemen, não acredito no gás sarin, não acredito na estupidez dos eleitores que votaram no barítono mesmo depois de ele lhes ter roubado 60% da reforma. Aqui mesmo, no bairro das Flores, debaixo das câmaras, uma miúda foi empurrada para a violação ritual do casamento, aos gritos, agarrada pelas velhas desdentadas, enquanto os homens embriagados se alheavam. E ninguém ouvia. Escandalizavam-se com o Yemen. Hic Yemen, hic salta. Ficámos sem o Fernando Assis Pacheco, sem as putas da avenida, sem um poeta que fale da rua Olímpio Nicolau Rui Fernandes, do castanheiro da Índia no Lugar da Igreja em Pardilhó. A Rocío saía das sessões de quimioterapia às quartas-feiras, que eram as tardes que  tinha livre, naquela altura, tal como agora. Já nem o restaurante Sereia serve um jantar a esta hora, almofadas de caril, arroz de espigos, um copo de Cadão, ou Galhofa, matéria de um poema, coisa pouca. Um dia passeava na rua estreita da Alta que leva à Sé Velha. E viu o pequeno largo onde à época se levantava, centenária, a árvore que a velha residente, identificou como sendo um castanheiro da Índia. A árvore foi cortada rente. Hoje nasceu a pequena Benedita, filha de Daniela, que foi mãe hoje e há vinte anos. Há vinte anos e hoje. Há vinte anos o Assis Pacheco escreveu belas são as narcejas nos arrozais e também escreveu um dia que eu morrer quem é que chamo

Rocío caiu sozinha, uma noite, na casa de banho da casa do Sabugal. O castanheiro foi cortado rente pelos serviços da câmara. Vai vazio o 30 para Lordemão e o 7 para o Tovim e o 11 de regresso ao Arnado. Quando é que vais almoçar comigo ao Telheiro. Ou à varanda do Justiça e Paz, sobre o Botânico. Ou ao Zé Neto. A terceira é a sofrer, não tem de ser bom sempre. Cadão ou Galhofa, que é como o senhor Júlio diz to be or not to be. Isto tem autonomia para duzentos quilómetros, mais ou menos o que aguentas sem mijar.  A filha Anne sobreviveu ao acidente e assistiu, dias depois, à sua sepultura no cemitério de St. Andrew, em Framingham Earl. Chamo por ti, não se ouve nada por causa do capacete integral e da viseira.

A Musa Irregular, Fernando Assis Pacheco, Assírio e Alvim, 2006
Vicent Delerm, Irene Jacob: Désir, désir.


[ Luís Januário, LIV do Jornal i, 14 Setembro 2013 ] 

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09 setembro 2013

I shall never be alone




No dia em que percebi que N. não se emocionou com a descrição das “ múltiplas vivências” de Jacques Austerlitz na Liverpool Street Station, que era, diz Sebald, um dos lugares mais lúgubres de Londres antes das remodelações do final dos anos oitenta, N. deixou de contar para mim. O pior era que estava a milhares de quilómetros de casa e a quinze dias do final de férias. Encontrava-me em férias com N. e D. com quem, surpreendentemente, partilhava alguns poucos recursos e um enorme equívoco. 
Ainda tenho a folha de anotações dobrada em quatro onde escrevi a frase:  “Whatever happens, I shall never be alone. I shall always have an affair, a railway fare, or a revolution.” Já me esqueci de quase tudo: a circunstância que me levou a escrever aquela frase, onde a li ou ouvi. É de Stephen Spender, sei. Não a considero uma grande frase e não me lembro de alguma vez a ter citado ou de ter havido uma ocasião sequer em que a pudesse ter referido com propriedade. O papel pertence à recordação que tenho dessas férias, de N. e de D., e da discordância fundamental, que não foi apenas relativa às desventuras de Austerlitz, mas começou com elas. 
Parece-me poder ouvir agora N., se por acaso descobrisse o papel amarrotado (N. não conhece a primeira versão da frase de Spender e não serei eu a revelá-la): 
- An affair. Que coisa ridícula. Própria da sub-cultura pueril, da sub-gente. Sub, sub, sub. N., titular de uma invejável carteira de casos, reais e imaginários, estabelecera uma divisória entre o seu passado aventuroso e o respeitável presente. Os casos, agora, são sempre os casos dos outros. Diz a palavra “casos”, sempre no plural, com os lábios esticados, como se o z que se arrasta pudesse queimar. 
A railway fare. Sempre N.: - Outra vez InterRail? Outra vez, essa desprezível lamechice de estações e partidas, perdidos e achados. Liverpool Street Station, a Centraal Station de Antuérpia, lagrimita fácil, tudo tão superficial, efémero, lower middle-class.
E finalmente, pior do que tudo, a revolução. N. persignava-se como se enfrentasse ao mesmo tempo as hordas da comuna, os marinheiros de Cronstadt amotinados ou os spartakistas a cheirar a suor.
Escondi o papel de Spender no fundo de umas calças que não voltei a vestir e onde agora o encontro, um papel sem data que escapou à revista habitual, no qual a letra miudinha – como se quisesse desaparecer, não ser lida – pede desculpa por existir. 
À noite jantávamos numa cantina de turistas com um buffet gigantesco. Eu escolhia um prato, sentava-me e esperava. N. trazia entrada, sopa, um prato principal e sobremesa. Quando chegava, com D. como sombra , já eu tinha perdido a fome. Censurava as minhas escolhas. Não vira eu o curry? Não reparara no chutney? Não vira a infinidade de especiarias que não vira porque não conhecia e, como é sabido, só se identifica o que se conhece. Por onde é que andara até então? Finalmente tinha alguém que me ensinasse o que era chutney e onde estava o curry e o pudding e o custard. Esse alguém era N. que nessas férias me ia ensinar, como já ensinara D. .
D. sentava-se ao lado de N. e de frente para mim. Nunca me dirigia a palavra, embora falasse sem cessar de trivialidades. Os telemóveis da Orange, os iogurtes  get one buy one free no Sainbury’s, os sais de banho da Lush. Se eu interpelasse D., o melhor que obtinha era um grunhido, um esgar, uma interjeição, uma palavra inaudível. Nunca me olhou nos olhos, frontalmente. Ou se por acaso o fez, foi em breves momentos de guarda baixa, retomando rapidamente o modo habitual, de silêncio combativo e nauseado. 
Nessas refeições intermináveis, N. dividia-se entre a necessidade de me tratar mal, sabendo que assim agradava a D., e uma prudente neutralidade, que não exagerasse a tensão. 
I shall never be alone. Oh, como eu queria estar sozinho. Entretinha-me a catalogar mentalmente os vizinhos de mesa: o presidente da Câmara da Matosinhos, esposa e afilhada, a rapariga da bengala, o garagista e a família – mulher e filho já no negócio –, a rapariga que ataca em Liverpool Street, as miúdas anoréticas em mesas paralelas às das miúdas cheiinhas que chamam anoréticas às de peso mediano. Os rapazes tatuados, cravados de piercings, nem todos visíveis daqui. A senhora que lê no kindle.
- Deve ler Sebald - ironiza D. E depois levanta-se da mesa e segue N. que vai procurar um reforço de sobremesa afundada de custard. Amarelo.
Saio para o cais e durante algum tempo vagueio em torno da exótica bandeira. Penso em Jacques Austerlitz e nessa “sensação de estar isolado e de sempre ter estado, esse aturdimento, essa sensação nele latente e que há muito procurava declarar-se.” Sei que estou a demorar e que serei admoestado à chegada. Deixo-me então ficar, junto ao pavilhão, à espera de ser descoberto e punido. N. dirá então que me comporto como uma criança, enquanto atrás se perfila, em  altivo silêncio, o regozijo de D.
Foi assim, mas pior, como sempre. 

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02 setembro 2013

A coruja das torres vai voar



No princípio do verão alugámos um quarto numa daquelas Escolas primárias do Centenário que a míngua demográfica esvaziou, as Câmaras venderam e, neste caso, a iniciativa de um jovem casal de arquitectos reconverteu em um minúsculo hotel rural. A Escola conserva a traça e os símbolos antigo-regime e está agora dividida em cinco quartos e uma sala comum para refeições. A Maria e o Duarte recolhem a salva, o rosmaninho e o poejo, preparam todos os dias um pequeno-almoço requintado, sentam-se num degrau a ler Conrad numa edição amarelecida da Penguin, que  de vez em quando o vento desfolha e arrasta até aos hóspedes.
Isso ainda não podíamos saber. Era o nosso primeiro dia no local e regressávamos de jantar, perto da meia-noite. A lua de Agosto, quase cheia, subia, escandalosamente grande, no céu de Portugal. Tínhamos as janelas abertas e o motor do carro soprava, silencioso. Logo após o portão imponente da propriedade que leva o nome do lugar, quando, depois de uma curva, a subida se inicia, vi um pequeno vulto na estrada e travei. Poucos metros à frente, imóvel, brilhando na noite, estava a coruja.
Pelo porte, estatura e plumagem, devia ser uma coruja das torres. Tinha há anos surpreendido duas semelhantes, num celeiro abandonado de uma aldeia das Beiras, onde vi pela primeira vez o insólito tapete de regurgitações preparado para a postura dos ovos e me deslumbrei com a envergadura das asas, a cor da penugem,  o disco cordiforme, o estranho afastamento dos olhos que são como duas contas sem órbitas, o voo sem ruído, tornado possível pela densidade das rémiges.
Apaguei as luzes do carro, à espera. Pensei que ia ver mais uma vez aquele voo, o momento em que ela abre as asas e se transfigura, de uma pequena figura de 35 centímetros numa ave de inesperado porte e envergadura. Mas continuou imóvel, fitando-me.
Cegou depois do encadeamento -foi o que pensei. E devagar, com medo que o ruído quebrasse aquele encanto, abri a porta do carro e saí para a noite, sem deixar de a encarar. Algum tempo depois, a luz da lua quase cheia no céu de Portugal tornou-se tão intensa que ela voltou a destacar-se na noite: a brancura do disco facial prolongando-se pelo corpo, o hipertelorismo, a penugem mosqueada debaixo das asas recolhidas.
A coruja e eu, separados por dez metros, olhando-nos em silêncio.
Dois seres, apenas.
Nunca me senti superior a uma coruja. Nunca coloquei, entre mim e outro animal, a estúpida questão da superioridade. Uma das razões porque nunca acreditei no catecismo, foi porque não me parecia possível um acto de criação que tivesse o ser humano como último destinatário, ou especial beneficiário. As árvores “que nos dão a sombra e a madeira, os frutos  e a seiva”, os animais “que nos dão o couro e o leite, os chifres e o estrume”… Sempre me pareceu uma cantilena fascista  como a de um país multi-continental e multi-racial espalhado pelo mundo e tendo a maior altitude no Monte Ramelau. Uma narrativa pueril, ingénua e em que, mesmo naquele tempo, já ninguém, que eu respeitasse, acreditava.
Eu e a coruja, a coruja e eu. Nenhuma transcendência. O sentido oculto deste nosso encontro não é nenhum. O que dá sentido à vida da coruja é exactamente o que dá sentido à minha vida. Basta-nos, a ambos, existir. Mas existir assim. Capturando e engolindo 25 ratos e musaranhos numa noite ou provando vinho regional alentejano, consoante o caso. Regressando à torre da igreja, à chaminé, à trave do celeiro ou ao quarto tão simples e apesar de tudo cheio de dignidade da antiga Escola Primária onde a Luísa e eu nos vamos deitar.
A coruja e eu. Apesar de tudo tenho o carro, embora o motor esteja desligado, e deva seis  prestações e o valor residual. Tenho os faróis. Apagados. As roupas leves de verão. Estou calçado. O vinho regional alentejano, 14,5 º, ajuda-me a sentir membro desta grande irmandade da existência. E tenho livros. Que me ensinaram a conhecer-te, coruja das torres, Tyto alba, da Ordem dos Strigiformes e da Família Tytonidae. Agradeço intimamente aos investigadores, aos biólogos e aos que perscrutam as aves no céu de Portugal, apenas para as conhecer, classificar, proteger, evitar o extermínio provocada pelo desconhecimento e pela ignorância, o urbanismo e os pesticidas. Mas agora queria estar aqui despido desse conhecimento, que em breve de nada servirá. Nenhuma superioridade, camarada coruja. Nenhuma vontade de domínio, aniquilação ou posse. Na minha infância de madeira e pedras vi bem poucos animais, além dos da minha espécie, acantonados na Avenida onde vivíamos. Tive sorte em nunca ter tido fome e ter evitado os grupos predatórios. De nunca ter vivido em estado de necessidade. Mas sempre, como aqui, me senti teu igual e dos seres que lêem Conrad nos degraus de um hotel rural.

Vai voar, um de nós vai voar. Abrir as asas emplumadas, as asas claras salpicadas de pontos negros, cuja envergadura atinge um metro, e voar.

Casa de Campo de Cabeça da Cabra, hotel rural, 7520-128 Porto Covo



[ Luís Januário, crónica publicada no Jornal i de 31 de Agosto de 2013 ]

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