31 julho 2013

29 julho 2013

Deste-lhe uns versos, canalha



Não sei como é o espectador tipo de François Ozon, o realizador francês que, por estar a dirigir um filme por ano, vai sendo considerado o Woody Allen europeu. Mas logo no trailer que anunciava “Dans la Maison”, o filme de 2012, se insinuava um duplo sentimento. O verso: o prazer de encontrar um cinema culto – misturando Flaubert, antes de tudo, com um casal em que ele é professor de Literatura e ela galerista de arte contemporânea e a iniciação na escrita de um rapaz talentoso. Mas ao mesmo tempo, um mal-estar aflora à superfície como o verme na rosa. Este reverso, que surge como uma ameaça suspensa, é-nos dado por sinais de decomposição que se acumulam. A relação pedagógica descontrola-se, as ligações dentro dos dois casais, Germain-Jeanne e o casal Artola, deterioram-se, e a amizade entre Claude Garcia e Rapha filho, o jovem Artola, quebra-se com violência. Neste momento da acção, os que, ingenuamente, pensaram ir à matinée do cinema francês, começam a mexer-se incomodados nas cadeiras.

Claude Garcia, de 16 anos, é aluno do Liceu Gustave Flaubert. A mãe abandonou a família e ele toma conta do pai, paraplégico e alcoólico. Irrompe no filme e na vida das duas famílias como o anjo de “Teorema”. Mas a analogia com o filme de Pasolini fica por aqui. Revisto hoje – é com pesar que o digo – “Teorema” é um filme meio pateta, que desperta a tolerância à beira da irritação. Baseado na peça “O Rapaz da Última Fila”, do dramaturgo espanhol Juan Mayorga, o filme de Ozon levanta, paradoxalmente, mais questões que “Teorema”. Mayorga é o mais representado dos autores espanhóis e viu peças suas levadas à cena em Coimbra, pela Escola da Noite, e em Lisboa, onde os Artistas Unidos estrearam “Hamelin” em 2007, e o ano passado Jorge Silva Melo encenou “Este Rapaz”, na Escola Politécnica. Foi editado na pequena colecção da Cotovia. A versão de Ozon foi livre, e nos créditos a referência a Mayorga é discreta, o que, no processo de autorias e adaptações pode ser vantajoso. O próprio dramaturgo disse que já tinha contado a história e era agora a vez do realizador. Mas a solidez do argumento dá a Ozon a possibilidade de explorar a vertigem sem se perder e finalmente de se retrair sem parecer conformista.

O filme tem vários motivos de regozijo e vou referir apenas alguns que, como leitor comum, me surgiram inicialmente. O primeiro resulta de se passar à sombra tutelar de Flaubert. A sequência inicial mostra o liceu, moderno mas austero, no primeiro dia de aulas, quando o regulamento republicano instaurou a obrigatoriedade do uniforme “inglês”. A aceleração da imagem e depois a exibição rápida de centenas de faces em tamanho retrato BI dão a ideia de que se vai contar uma entre as histórias possíveis, aquela que o olhar particular do narrador seleccionou. Seguem-se os personagens. E lembramo--nos da réplica que Flaubert deu a Georges Sand quando ela lhe explicava o fracasso de “A Educação Sentimental” pela dificuldade dos leitores encontrarem “quem admirar”, de Fréderic Moreau a Mme Arnoux. Flaubert retorquiu:
“Não acho que tenha o direito de julgar os meus personagens dessa forma.”

Acabado o filme, percebemos que estivemos com personagens de Flaubert. Teríamos gostado que Germain se tivesse comportado de outra forma, que Jeanne lhe tivesse dado outra oportunidade, que Claude Garcia fosse menos determinado, aparentemente desprovido de piedade, que os Rapha não fossem tão... desportistas, que o director não fosse a besta para a qual tendem os reitores. Mas “não temos o direito de julgar os personagens” dessa forma. Assistimos a cenas de um romance realista.

Dos personagens flaubertianos de “Dentro de Casa”, o que mais me toca é, evidentemente, Esther Artola, interpretado por Emmanuelle Seigner, uma das mulheres mais bonitas do mundo, que tem no fundo dos olhos a cor dos sofás de “Casa e Jardim”. Esther é a dona de casa, “a mulher da classe média”, nas palavras sarcásticas de Claude. Foi por Esther que Claude passou longas horas no jardim em frente, até quase ser surpreendido pelo pai Artola. Foi por ela que se aventurou a bater à porta. É por ela que escreve, embora Germain, Jeanne e nós próprios ainda não o saibamos. Na primeira redacção diz, e nós ouvimos, simultaneamente na voz de Germain e no silêncio de Jeanne: “... estava para voltar (ao quarto onde finge estudar Matemática com Rapha) quando um cheiro me chamou a atenção: o inconfundível cheiro da mulher da classe média. [...] A sua voz era tal e qual como tinha previsto. Onde ensinarão estas mulheres a falar?”

E mais tarde, quando através de um estratagema a encontra sozinha em casa, chama-lhe “a mulher que mais se aborrece”. Flaubert tinha escrito de uma mulher assim: “A sua vida era tão fria como uma mansarda virada para norte, e o tédio, lento como a aranha, ia tecendo a sua teia nos lugares sombrios do seu coração.” O rapaz insinua-se na vida dela. Bebe Coca-Cola no jardim, faz uma lista dos medicamentos que ela toma, como Fitzgerald. Comenta as “aguarelas de Klee” no hall. Vê-a dormir, os pés pequeninos, um sorriso. Um dia em que a vê atormentada passa-lhe um poema para a mão. Ela não percebe: “Nem sequer a chuva baila tão descalça.” Tudo o resto percebera, e os Rapha, pai e filho, dariam cabo dele, se percebessem também. Mas aquele verso não.
“Canalha”, grita o professor. “Deste-lhe um poema. A essa mulher ninguém dedicou um poema durante toda a vida.”

Germain tenta parar Claude. Jeanne tenta parar Germain. Mas irão a tempo? Os personagens autonomizaram-se. Cada um deles procura a sua verdade. Ensarilharam-se os laços que ligam a vida de alguns à literatura, e não será, de certa forma no fim da sua vida, o homem cujo dilema é ainda entre Tolstoi e Dostoievsky que terá força para os separar.


Dentro de Casa, François Ozon, 2012
O rapaz da última fila e outros, Juan Mayorga, Livrinhos de Teatro, 2008, Cotovia
The Man Behind Bovary, James Wood, The New York Times, Sunday Book Review, April 16, 2006




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21 julho 2013

O ser irradiante que avança



Francis Alys

O ser irradiante que, com as primeiras luzes da manhã, avançou para a casa onde o jovem Alex , o narrador de Ancient Light, não conseguia adormecer, já se extinguiu. Ou brilha a espaços, e quando o faz é avassalador, e engana tanto, que o velho Alex não sabe se é o passado que o interpela ou se haverá ainda uma nova oportunidade para ele, e se aquele é o brilho do futuro.
A memória é uma coisa estranha. Vem com os cheiros, com as estações do ano, primavera, outono, outra vez primavera, agora o verão. Primavera, como quando, no corredor de uma casa das Ilhas Britânicas, o rapaz viu Mrs Gray nua. Nua e não despida, num espelho que reflectia um psiché, e através do qual ela surgiu, "a shadowing of mosse mauve". Verão,  como no lugar de Cotter, no bosque das avelaneiras, onde decorreram os  encontros que reuniram este par fora do comum. 
E como vem a hesitante memória ? Com pormenores, quem diria. Convictos pormenores de cenas que nem sequer ocorreram. Pessoas que não estavam presentes, nessa altura, não disseram as palavras que lhes atribuímos, nunca tiveram as camisas com que os vestimos, o laço com que apertaram o cabelo, nem mesmo aquele  corte de cabelo. Embora alguns detalhes tenham de ser reais: a mecha de cabelo rebelde atrás da orelha de Mrs Gray, a marca de cigarros que fumava, o modo displicente como conduzia a velha carrinha, a forma como empurrou o jovem Alex naquele último encontro em casa dos Gray. E vem com a luz. A "luz antiga"," a luz arcaica". A luz que revela as cores da infância, do fim da infância, quando o mundo dos adultos começava a ser revelado, e, no caso excepcional de Alex, através de um amor secreto e transgeracional. Cores. As cores do dia, do bosque, do lugar de Cotter, da praia de Rossmore, dos corpos, do corpo desvendado da amante 

" ...cinzento, naturalmente , mas um peculiar lilás acinzentado, e ferrugem, e rosa, e outro tom, difícil de nomear-chá escuro? madressilva pisada?...".


A luz antiga pode ser a escuridão de hoje. A matéria negra que envolve agora os espaços em que o quase idoso Alex se move, é a matéria dos ausentes. A malograda filha de Alex, que se perdeu nas águas de Portonevere, na Ligúria, a mãe de Alex, talvez Mrs. Gray . O narrador acredita que esses mundos fazem parte do nosso mundo, ou, como um fidalgo das pampas lhe explicou num tempo crepuscular, existem num conjunto de mundos circulares e interpenetrados, onde tudo o que poderia ter sido está a acontecer.  Mas se acontece, se pode ser rememorado, é através das palavras, " do frágil outro-mundo das palavras". Este livro de John Banville é, assim, uma procura da palavra exacta, através da qual a luz antiga restaura Mrs. Gray quando tinha 35 anos e o amor insaciável do seu rapaz.  

Uma noite de verão, imprevidentemente, passearam os dois no porto da vila. Mais tarde, no carro, ela ficou a ver, pelo para-brisas, as pessoas de um lado para o outro, no pontão. 
- Não é extraordinário que as pessoas pareçam permanentes? - disse ela. - Como se fossem estar ali sempre.

É esta a ilusão que o livro vende, com talento, emoção, mestria.
Mas não é verdade. Nenhuma das pessoas que Mrs. Gray viu naquela noite, pode hoje ser encontrada , em nenhum ponto do  cais da vila. O pontão foi destruído. Como o bosque de avelaneiras, o rio onde ela se banhou, os escombros do lugar de Cotter, a loja do optometrista, a humilde pensão dos caixeiros viajantes. Em breve Banville  deixará de ser lido e a nuvem Kindle onde fui buscar este Ancient Light estará inacessível, primeiro ao meu salário, depois aos sucedâneos dos iPads.  As palavras deste livro já quase não existem - poterna, mefítico, malva; buxom,  aqui traduzido por rija, "esse belo e antigo adjectivo"; silken scantlings e half-slip (saiote) ; um terceiro género, "overmastering  and impregnable ". As tabuletas  desapareceram mais cedo do que Pessoa podia prever. E os versos também. A luz antiga brilhará uma vez ainda, insuportável, mas será a luz de Pompeia.

John Banville , Luz Antiga, 2013 Porto Editora
Anciient Light, Amazon kindle 

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13 julho 2013

A clutch de Olympia Le-Tan



Tilda Swindon por Matthew Frost

Às 23 h, Carlito Azevedo publicou uma estranha foto de Tilda Swinton . Tilda está sentada num sofá vermelho, debaixo de um quadro que talvez retrate uma mesa de mármore comprida como a que era usada para as necrópsias. De lábios finos entreabertos, a sua cabeça tomba para o lado em pose de carmelita deliquescente. Carlito, inspirado poeta brasileiro e editor da revista Inimigo Rumor, chamou a atenção para as mãos, o estranho livro que elas seguram e o pequeno crucifixo que cai lateralmente do pescoço, lânguido. Três horas depois Henrique Dídimo havia de notar que o “livro está oco, é uma caixa vazia como a pessoa, que rebobina com os olhos a ação que não valeu. No fundo do livro, digo, da caixa VHS, uma estampa floral, quase papel de parede. Mas onde está o filme? Na fita, na tela? Não. O filme, a gente guarda (e edita) é na mente”.
Dídimo não se refere apenas à foto de Tilda, mas aos dois versos de Valsa Brasileira, uma canção de 2:59 mins. de Edu Lobo e Chico Buarque, que Carlito pôs em destaque conjuntamente com a foto:

Eu descartava os dias em que não te vi
como de um filme a ação que não valeu.

Nessa altura, já 55 pessoas gostavam disto. Pasolini, Teorema, Chico Buarque, Tilda Swindon. Uma floresta de referências contraditórias. Foi quando Kamille Viola, uma garota do Rio de Janeiro, numa relação com Giberto Porcidónio, exclamou:

- Porra, Chico.

Porra, Carlito. A convocatória do poeta brasileiro era mais ampla. Tilda Swindon fora fotografada por Matthew Frost para Olympia Le-Tan, uma designer de moda que expôs o ano passado em Florença,no Pitti. O livro que segura, é de facto uma clutch, obra de Olympia e produzida em edições muito restritas. A sua pose recria e homenageia Silvana Mangano, a actriz italiana de Teorema.
Então, cinco minutos depois das 23h, a Tinta-da-China digitalizou a página da revista Ler, onde se anuncia a nova colecção de poesia que Pedro Mexia coordena e que, como se sabe, abriu com o livro de Rosa Oliveira e a colectânea de João Vário compilada por Osvaldo Silvestre.
E Yara Kono, do Planeta Tangerina, actualmente envolvida na promoção dos óculos Paulino Spectacles, postou a belíssima capa do álbum Felicidário, onde nos assegura que

A Felicidade é Ver um Golfinho.

Coincidentemente, a Los Angeles Review of Books (LARB) dava destaque ao livro de Peter Sloterdijk intitulado

You Must Change Your Life

A tradução inglesa é recente, e a autora garante que Sloterdijk é o mais erudito dos escritores vivos.
Na mesma altura, ou assim pareceu, Duarte Belo revelou 32 fotos de um conjunto a que chamou
A Torre,
não a torre babilónica das Cidades Obscuras de Schuiten e Peeters, mas uma torre que não chegou a levantar-se, uma sucessão de andares de betão que lembram as duas torres torturadas de 14 e 16,5 metros que Anselm Kiefer instalou, há seis anos, no Annenberg Courtyard da Royal Academy of Arts, em Picadilly.
Quase em simultâneo, The Art Institute of Chicago publicitou a

exposição sobre Impressionismo e Moda

que estará patente até 22 de Setembro, mesmo a tempo de ser visitada por Carla e Rui Nelson, que, sempre atentos, fizeram like.
Por essa altura, já The Anonymous Art of Revolution tinha dado à estampa mais uma inquietante máscara de Guy Fawkes a favor da Liberdade de Expressão, que
Baby, doa o que doer, e dói muito, NÃO é negociável.

E o fotógrafo de rua de alta-costura que se identifica como Sartorialist registou, no Marais, duas mulheres perfeitas, uma de meias altas e tranças e outra de botas e casaco vermelho curto. Tão perfeitas, que
fazem suspeitar de prévia encenação.

Daniel Blaufuks anunciou um novo livro e foi nessa altura que Kamille Viola, no Rio, aceitou o pedido de amizade e foi solicitado que escrevesse na sua página, o que fiz sem demora. Na sequência de tudo isto, eram 23:17 h, a UNICEF surpreendeu-nos mais uma vez no seu delírio lactogénico, publicando uma foto úbero-pornográfica em apelo ao aleitamento materno até aos dois anos, pelo menos.

A papelaria Madalena e mais sete, gostaram.
E alguém, redentor, no que resta da Assírio Alvim, lembrou-se de pôr no ar a edição de 2002 de Lágrima, de Helder Moura Pereira, com uma capa azul de Ilda David.
Porra, Chico. Pára com isso, pára de mostrar


fantasias úteis ao fulminante coração.



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08 julho 2013

Cinza, de Rosa Oliveira




Um dia encontramo-nos com a dor. A nossa dor. Não é o sofrimento de nos encontrarmos sós e sem ninguém a quem valha a pena contar, nem a angústia existencial de estar a viver uma vida errada, como quem se engana na linha do expresso e se afasta cada vez mais do seu destino. Não, desta vez é a dor física e letal, tão dura que não pode ser descrita, obtusa, romba, dilacerante. Uma dor que está no fim da escala, no silêncio para lá do zumbido medonho. Vem devagar ou subitamente, como os monstros da Idade das Trevas nas curvas do barco do terror. Vem e paralisa-nos, derruba-nos, cresce tão intensa que acreditamos que uma dor assim não pode persistir, tem que passar, vai passar. Crenças destas dão algum alivio e de certa forma rezamos para que a dor termine sem nos preocuparmos com o que porventura signifique o facto de ela terminar. Depois, se sobrevivemos, pensamos:
- Eis a minha dor.
Pensamos nela com respeito, sem nos aventurarmos a esta análise mais detalhada, que só pode querer dizer que há algum tempo nos desencontrámos ou “agora que morremos, a vida pode enfim recomeçar” e podemos falar da “cinza” sem receio. Pensamos que esta é a dor que nos pertence, e que aconteceu afinal um jogo benigno, uma revelação. A vida ensinou-nos tudo e quer ensinar-nos também como nos vai deixar.
Cada um de nós, como o Malte Laurids Brigge diria, tem a sua dor.
A minha surge nas costas, como se o inimigo me apunhalasse suavemente, ou apenas me encostasse o ferro a um ponto da coluna tão sensível que me escangalha, tal um boneco articulado. Esse início da dor é só um incómodo, não acredito que seja “ela”, não aprendo com a repetição, é um mau jeito, penso, enquanto tento mudar a posição do corpo. Mas a pressão continua e estou à mercê dela, paralisado por uma chave demente. E aí está ela, em todo o seu esplendor, da coluna para a frente, para um e outro lado do peito, uma tenaz aberta e perfurante, tão potente que me levanta do solo, me empurra e suspende.
Uma vez, nos últimos anos do século passado, quis o destino que estivesse a residir fora deste país, numa residência que albergava várias famílias. Havia nessa casa uma menina escocesa que, por motivos que já não recordo, me olhava com nojo. Um dia em que me julgava sozinho, tive a dor. Abri a porta do corredor sombrio que levava ao meu quarto, já com a tenaz excruciante cravada, quando dei por ela. Encostou-se à parede, em silêncio, perfilada, como se esperasse que eu fosse claudicar e se quisesse proteger de qualquer contacto.  Eu vacilava, e não conseguia fingir impassibilidade. Então vi-lhe os olhos e a face atroz, o implacável julgamento da infância sobre a decrepitude de um corpo que se desmancha. Um misto de repugnância e de medo de contágio.
No livro de Rosa Oliveira, Cinza, há uma descrição antecipatória de uma dor destas, muito semelhante à que descrevo:
“ao conduzir uma leve tontura/presságio do acidente que nunca chega /parábola do ataque cardíaco /alguma coisa na memória antecipada do nosso corpo /produz um pó inútil.”
Que pode crescer, como “o prego na mão esquerda/ só na mão esquerda”, e se tornar inaceitável, como é dito no poema cujo título (“o cão em mim”) anuncia a pior das torturas: “o cão mistura o focinho/ no meu córtex exposto/ lambe-o e resfolga/ dentro de mim.”
O que desencadeia esta dor,  que “assusta como a guinada no coração”, e se insinua inesperadamente no corpo de um poema longo, intitulado  “as casas em espinho com ruy belo”, é , no primeiro caso, apenas o “virar a página”.

O livro de Rosa Oliveira pode ser lido com prazer como um momento de contacto intertextual com alguns dos nossos poetas maiores – Fernando Pessoa, Ruy Belo, Jorge de Sena, Alexandre O’Neill, Herberto Hélder, Joaquim Manuel Magalhães. Rosa Oliveira é alguém que, com sarcasmo, se anuncia como tendo  “o corpo massacrado/ por anos de experiências literárias/mal conduzidas” e divertimo-nos a navegar do pôr-do-sol do fim do verão, através das casas, as casas, as casas de espinho, pela Pompeia que conserva os corpos enlaçados dos amantes surpreendidos pela lava, à vida de E. E. Dickinson “que era uma biografia”, ao delicioso poema sobre George Sand e Chopin em Maiorca (“nada daquilo era fácil para os pobres maiorquinos/ obrigados à escravidão e a venerar os porcos”).

E pode ser lido igualmente como o livro de uma ausência (literária). De um tu que surge no primeiro poema, por detrás de Rui Belo, “caindo nas páginas opacas”, que “cheira nas palavras” e torna a leitura uma maldição. Um livro possível, porque “agora que a vida parou, podemos falar uns dos outros sem o espectro da ofensa”, “aconchegar as cinzas”, “acenar à lombriga do tempo”, ver sem ressentimento “a enguia engordar no prato”, subir ao sítio alto de onde se vê, ao mesmo tempo, o princípio e o fim. Cinzas aconchegadas com cuidado, porque, como ela diz, “não sanciono// o poema que/ se for caso disso/ mostra emoção como quem mostra a perna.”
Ao longo de 90 páginas, sem se afastar um momento, Rosa Oliveira lembra-se das cidades do nosso tempo, Espinho como Beirute, evisceradas, lembra-se de nada (pg. 85), um nada semântico (pg. 43), “essa fé excessiva que tanto nos tem perdido”. Lê-la é insuportável, um supremo bem. Como ler Ruy Belo, Rodoreda, o pôr-do-sol em espinho que não é o pôr-do-sol.

Declaração de interesses: sou uma “pobre criatura flaubertiana um pouco imbecil”, e, como nestas crónicas mais de uma vez referi, amigo de Rosa Oliveira e, como ela, sedento “de prosa alcoólica”.

Cinza, Rosa Oliveira, Tinta-da-China, 2013, primeiro livro de uma colecção de poesia coordenada por Pedro Mexia


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02 julho 2013

A mochila de Austerlitz, ou Wittgenstein, ou António



Há alguns anos estive na Estação Central de Antuérpia, antes de ler Sebald e da conclusão das alterações que a reabilitaram, transformando-a numa das maiores do mundo, com três níveis, acesso a comboios de alta velocidade e 50 mil viajantes em cada dia.
Não pude assim apreciar inteiramente esse lugar extraordinário. Sem que o soubesse, tinha sido discutido, apenas alguns anos antes, o seu futuro. Poderia ter sido demolida, cumprindo assim uma das maldições congénitas das obras ultradimensionadas, a que Sebald chamou a sua “existência futura enquanto ruína”.

Na segunda metade da década de 60 do século passado, quando, vindo de Inglaterra, o narrador sebaldiano visitava a Bélgica, entrou em Antuérpia pela Estação Central e logo aí foi assaltado por uma indisposição que não o abandonaria durante toda a sua estada. Deambulou pelo centro, soletrando o nome das ruas e, já de noite, visitou o Nocturama, uma exposição de animais nocturnos, que era a novidade desse ano de 1967. Depois entrou no átrio da estação e sentiu aquele momento de grandeza que Leopoldo II encomendara ao arquitecto Louis Delacenserie e que era motivado pela elevação da cúpula a mais de 60 metros, a mistura de estilos, a posição eminente e central do enorme relógio no topo da escadaria e, embora ainda não o soubesse, pela visão profética do incêndio da congénere de Lucerna, que o rei indicara como modelo e fonte de inspiração a Delacenserie. Senti o mesmo mal-estar combinado com a melancolia que as estações de caminho-de-ferro sempre me provocaram, a angústia e a excitação de partir para norte, paralela à suspeita de que o esplendor novecentista da Bélgica crescera apoiado na pilhagem colonial que a estátua de bronze do negro com o dromedário que encantara o narrador sebaldiano parecia confirmar.

O facto de ter visitado Antuérpia antes de 2001, ano da publicação de “Austerlitz”, impediu-me de perceber inteiramente a Estação Central. Ali, na Salle des Pas Perdus da Estação Central, na sala simétrica que naquele ano era utilizada como cantina do pessoal, e depois na grande nave de 185 metros de comprimento e coberta pela estrutura de aço e vidro criada por Clement van Bogaert, antes de Sebald, podia apenas contar com as minhas emoções.
Não vi Jacques Austerlitz, que 30 anos antes parecera a Sebald um rapaz de cabelo claro ondulado, botas de montanha, jeans desbotadas, casaco clássico e fora de moda e uma eterna mochila wittgensteiniana. Um saco castanho, com quatro presilhas de cabedal, duas para o encerrar e duas laterais para atenuar a deformidade, semelhante ao que usava nessa altura e alguns anos depois António Ribeiro da Cunha, um amigo que se refugiou em minha casa para fugir da polícia, ler alto no corredor os textos da Internacional Letrista e da London Psychogeographical Association que recebera clandestinamente, e preparar um exílio que dura até à actualidade. António, como Ludwig Wittgenstein, como Austerlitz, mas sem os conhecer, andava sempre com essa mochila. Carregava os seus cadernos, onde tomava notas preciosas, os textos referidos dos companheiros de Guy Debord editados em policopiador, uma peça de roupa, uma escova de dentes, uma maçã. Tinha-a quando foi preso na cidade universitária, ao entregar inadvertidamente a dois esbirros da polícia política uma tarjeta que convocava uma reunião de apoio às lutas coloniais. Conseguiu reavê-la três meses depois, ao sair em liberdade sob fiança. Teve-a sempre consigo no julgamento do Tribunal Plenário, no jantar em que celebrámos a absolvição, nos meses seguintes em que fingiu a enormidade que era fazer um curso de Medicina nos anos de chumbo do marcelismo e depois na viagem que fez sozinho a Genebra. Austerlitz, ou Wittgenstein, ou António disseram que compraram a mochila castanha em Charing Cross por dez xelins, num leilão de material do exército sueco.
Não pude ouvir a pormenorizada descrição da sua arquitectura ecléctica, o momento em que, já em Liège, num café que talvez fosse o Café des Esperances, à vista dos altos fornos das fundições e das colunas de fumo que escureciam o céu, Austerlitz teria explicado demoradamente que os capitalistas filantropos do século xix, ao tentarem aplicar os seus projectos de cidade operária, acabaram por criar de facto as camaratas. Disse Austerlitz, o narrador sebaldiano lembrou-se sempre, e eu próprio, depois de ter lido nunca mais esqueci, embora nesse ano ainda não fosse capaz desta formulação de síntese: “Os nossos melhores planos resultam sempre no seu contrário, uma vez postos em prática.”

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