31 agosto 2012

29 agosto 2012

28 agosto 2012

Se Rio não é FdP, o que não será Rato?






Conversão de IGCP em empresa dá excepção salarial aos administradores



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26 agosto 2012

A que horas chega o pai?





O Bar da Praia saíu na Time Out, aos fins de semana tem happy hour com DJ, emprega uma dúzia de empregados, todos de preto e alguns com escola de hotelaria.  É composto por um núcleo central coberto, um avançado  e uma esplanada no areal, com dois barmen, sempre atarefados. Na esplanada encena-se um deboche. Há camas colectivas, de dossel . Homens e mulheres de 30 anos, estendem os corpos. A dimensão e a altura do estrado, o calor e as bebidas incitam ao abandono do corpos, ao torpor, à sonolência. Às cinco da tarde está armado o deboche. Às seis o DJ começa a pôr música e, vindos do nada, surgem as teenagers e os acompanhantes. Estão sempre muito juntos e são os primeiros a dançar, com uma energia despropositada para a temperatura ambiente e a aparentemente pequena quantidade de consumíveis alcoólicos. As raparigas ocupam o centro do grupo e são muito parecidas umas com as outras , de unhas Risqué pura luxúria ou 545 CS, cabelos esticados e lábios grossos, cherry, fruity shine cherry, da Labello. Os rapazes desenham um segundo círculo e não largam os copos de Magellan, seguros no espaço entre o polegar e indicador, alargado como um traço evolutivo.  
A praia é grande. Depois do Bar da Praia há uma terra de ninguém. A seguir as filas dos guarda sol de palha, a vinte euros o dia com direito a duas camas e colchão. E já na areia molhada, o espaço dos banhistas independentes, de toalha mas sem guarda-sol, indiferentes ao perigo dos ultra-violetas e com elevada densidade de i phones, noites perdidas e desgostos recentes de amor. Vista da linha de rebentação a praia lembra o domingo na Grande Jatte, com muita gente vertical olhando o mar ou o infinito, e um ar burguês, porque acabaram as colónias de férias e os mais pobres não alcançam a praia durante a semana. Os homens do ISN hastearam para sempre a bandeira amarela, pastoreiam a praia e lêem os pensamentos dos banhistas ousados, repreendem-nos com um apito solene, antes de eles  se atirarem às ondas proibidas.

Agora chega ao Bar da Praia a mulher lindíssima e o rapaz que não cabe em si de feliz. Sabemos que é ela porque as mesas calam-se, os outros casais nas mesas suspendem a sangria, as amêijoas arrefecem na travessa, os pedidos são feitos em surdina a empregados distraídos. Ela senta-se, a mulher lindíssima, com uma tatuagem enigmática no braço direito, lábios como a Adèle Blanc Sec na BD de Tardi, mãos de dedos longos, a pele  que capturou o sol do fim de tarde e todas as promessas do verão, as pernas intermináveis, mamas orgulhosas e os olhos…ninguém sabe dizer como são os olhos das mulheres lindíssimas e ninguém teve coragem de a olhar nos olhos, as mulheres mais interessadas em medir o busto, a curva das ancas, os tornozelos, as mamas orgulhosas, e os homens porque são cautos ou cobardes. O areal, a praia, a ideia de praia, o próprio verão vivem da cobardia e do medo dos homens, criadores da bandeira amarela, da happy hour, do biquíni brasileiro, da depilação, do protector solar, do ténis de praia. 
Nas mesas, homens e mulheres retomam as conversas. Tratam-se com cerimónia. Têm pouco em comum. São velhos e parecem adolescentes num primeiro encontro. São amigos que rememoram um passado escolar afinal não assim tão longínquo, mais isso do que dois apaixonados, são um par destinado ao sofrimento, um homem com a doença de querer ser amado, um velho que entristeceu sem remissão, outro homem com o ciúme entalado no esófago.

Na primeira fila dos chapéus algumas mulheres falam, suavemente. São as mães e dão ordens bondosas aos que nunca desobedeceram: “Vai buscar o capacete do teu irmão”, “Traz a toalha”, “Querem bolos?”, “Onde há bom mel é na loja do Artur”. Ah, estas vozes. Há  tantos anos que governam um mundo íntimo, inquebrável, que parece perdido mas volta, todos os anos, nem que seja por um breve momento como este.

Ele não faz férias e chega depois do trabalho, às sextas-feiras. Estão ainda todos na praia quando ele chega; as irmãs, a mãe, a criatura que desde manhã pergunta “a que horas chega o pai”. As famílias com horários, os hóspedes da Pensão Fortuna, os que têm casa nas Abadias já foram para banhos e jantar, mas eles continuam até ele chegar, até aparecer na marginal. É tão grande, tão forte, tão bem cheiroso no pescoço e no peito. É mais novo do que a criatura, agora. Depois da demonstração das novas habilidades há o jantar tardio, “como os espanhóis”, e uma bola de gelado de limão no Tamariz, carrinhos de choque, livros na Havanesa, deitar tarde e nos dias seguintes nadar até ao barco, passear na serra, ouvir as conversas dos grandes. A vida verdadeira existe. Era no verão e começava (“a que horas?”) à sexta-feira.

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19 agosto 2012

Os bandós de Mme Arnoux




No Verão de 1840, Frédéric Moreau voltou para casa da mãe, em Nogent-sur-Seine. Tinha acabado o curso dos liceus e preparava-se para dois meses de tédio, antes de voltar a Paris e “entrar em Direito”. No barco de regresso viu-a:
“Foi como uma aparição: os bandós negros que lhe contornavam a ponta das longas sobrancelhas estavam muito descaídos e pareciam comprimir amorosamente o oval do rosto.” “O vestido era de musselina clara salpicado de pintas verdes e espalhava-se num plissado abundante.” A palavra usada para pele é esplendor. Para cintura, sedução. Delicadeza, para os dedos, “atravessados pela luz”. Alucinado, procura um lugar para a observar. Mas sem lhe falar, antes de os olhos se cruzarem, já quer saber tudo dela. “O nome, morada, vida, os móveis do quarto, os vestidos, as pessoas com quem convivia.”

O nome dela talvez fosse Maria. Será sempre tratada por Mme Arnoux. Mulher de Jacques Arnoux, vago negociante de arte, industrial de faianças, homem de muitos recursos e vida difícil entre mulheres, jantares e projectos desastrosos. A cidade é Paris da monarquia de Julho, onde nos anos que se seguem Moreau a persegue sem sucesso. Os vestidos são descritos com pormenor, nos encontros inumeráveis, tantos deles falhados, em que apenas a pôde contemplar, calar o seu amor, dizer frases de circunstância. Vestidos e bandós.

A primeira vez em que é convidado para a casa dos Arnoux, ela tem “um vestido preto e, nos cabelos, longa rede argelina com filetes de seda vermelha, que enrolando-se no pente, lhe caía sobre o ombro esquerdo”. Em outra ocasião, “os bandós eram mais escuros que o resto da cabeleira e sempre como que um pouco húmidos nas pontas; ajeitava-os de vez em quando, apenas com dois dedos”.
Tornando-se conviva habitual, sempre incapaz de mostrar os seus sentimentos, ele contempla-a em jantares intermináveis: “Pensava na ventura de viver com ela, de a tratar por tu, de lhe passar demoradamente a mão pelos bandós.” Ela rejeita-lhe qualquer avanço. Moreau escreve cartas que nunca envia, ensaia frases espirituosas que não tem oportunidade para iniciar. Um dia em que a procura em Saint-Cloud, ela desce uns degraus e “viu-lhe um pé. Usava sapatinhos abertos, de pele acastanhada, com três tiras transversais que desenhavam nas meias uma grade de ouro”.

Os anos passam, Moreau faz um curso medíocre, Paris é o palco da agitação social onde se forja a Europa dos séculos XIX e XX. Mas “as questões públicas deixavam-no indiferente tão preocupado estava com as privadas”. Fica sem dinheiro e regressa a Nogent. Recebe uma herança e logo volta para a procurar. Quase nunca o consegue. Um dia, entra-lhe em casa e surpreende-a num “roupão de merino azul-forte”. Espreita--lhe uma fraqueza, um desfalecimento da virtude. Mas há sempre um barulho de botas, uma porta que bate, as crianças, os criados, a disposição das divisões na casa, um estalido no corredor. Finalmente é ela que o procura, fazendo-se anunciar no salão da casa dele, inesperadamente. “O vestido é de seda escura, cor de vinho de Espanha, com um casaco comprido de veludo preto, bordado a pele de marta, que dava vontade de lhe passar as mãos por cima, e os seus compridos bandós, bem alisados, atraíam os lábios.” Também aí o medo “de avançar demasiado ou de não avançar suficientemente” o paralisa. Uma ocasião surpreende-a, indefesa pelas muitas contrariedades e sofrimentos que um marido estouvado pode infligir a uma mulher recatada. Estão sozinhos, num aposento que M. Arnoux reserva à contabilidade dos seus negócios delirantes. Num ímpeto, ele beija-lhe as pálpebras. E uma vez mais há portas que batem e o guarda-livros que entra.

Até que, momentaneamente sozinha num arredor de Paris, ele procura-a, inquebrantável, e ela recebe-o com indisfarçável alegria; durante todo o Outono, passeiam pelos bosques, ela vai ter com ele ao caminho, conversam, descobrem como coincidem nos gostos e nas opiniões. “Estava bem claro que não deviam pertencer-se. Esta convenção, que os protegia do perigo, facilitava as suas expansões.”

Ela usava “um roupão de seda castanha, bordado em veludo da mesma cor, largo, como convinha ao langor das suas atitudes”. Quando o Ano Novo se aproximou tiveram de regressar a Paris, mas desta vez tinham um encontro combinado. Ele alugou uma casa para a receber. Um acontecimento terrível, do qual ele não teve notícia, obrigou-a a faltar. E foi tudo.

Nunca se tiveram. Apenas palavras. A magnífica linguagem dos salões de Paris, onde se cruzavam detentores de títulos sem valor e burgueses ambiciosos, artistas e advogados, cabotinos e mecenas, negociantes e deputados. Gente que vira Napoleão e os Bourbons, Luís Filipe, ultras e liberais, e que com todos negociara. As palavras dos livros de Montaigne e Rousseau, de Diderot, dos romances de Hugo, Dumas e Musset, seus contemporâneos; mais fortes e exaltantes, mais verdadeiras do que o encontro físico. Mme Arnoux, que se viu a si mesma como uma mulher do mês de Agosto, “doce e indulgente”, deve ser recordada. “O xaile de renda moldando os ombros, o vestido de seda gorge-de-pigeon”, dois dedos luminosos retocando os bandós.

 L’Education Sentimentale, Gustave Flaubert, 1869; A Educação Sentimental, tradução de João Costa para Relógio D’Água Editores, 2008

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18 agosto 2012

As pessoas razoáveis


 


“Quando num anúncio uma figura pública é ridicularizada com factos que nenhuma pessoa razoável pode tomar comoverdadeiros, não pode ser invocada a teoria do sofrimento emocional” Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América no processo Hustler Magazine v. Falwell (1988)

Em “The People v. Larry Flynt” (1996) o advogado do célebre pornógrafo enfrenta o Supremo Tribunal num recurso da queixa do reverendo Falwell, um membro destacado da Maioria Moral, movimento da direita fundamentalista norte-americana. Resumindo: Flynt insultara Falwell na sua revista “Hustler”. Numa paródia a um anúncio da Campari intitulado A Primeira Vez, Flynt referia-se ao líder evangélico com a sua habitual brutalidade, dizendo que ele tivera a primeira experiência, alcoolizado, com a própria mãe. Num momento crucial do julgamento, o advogado Alan Isaacman invoca a Primeira Emenda e o direito à livre crítica das figuras públicas através do humor. O presidente debruça-se sobre o advogado de Flynt. “Mas era preciso usar imagens dessas? Não lhe parece de muito mau gosto?” E Isaacman responde: “ Sim, exactamente. Muito mau gosto. Mas permita que lhe recorde o que disse sobre outro caso. Não cabe ao Tribunal debruçar- -se sobre questões de gosto.” E, por unanimidade, o Supremo Tribunal decidiu que a protecção dos que falam sobre as figuras públicas era um valor fundamental da liberdade de expressão e que, para “o espaço de respiração” ser assegurado, podiam inclusivamente ser utilizadas afirmações falsas, desde que o contexto as indiciasse como tal.

Em Junho deste ano, a revista “Porto Menu” tinha na capa uma fotografia de uma artéria central da cidade Invicta. Numa das fachadas do Mercado do Bolhão lia-se: “Rio és fdp”. O autarca que dá por esse nome interpôs uma providência cautelar para retirar a revista de circulação e um tribunal censurou a publicação. Este facto não parece ter incomodado ninguém. Se o empresário da “Porto Menu” não tivesse impugnado a decisão, talvez não se tivesse dado conta deste acto censório.
No passado dia 4 de Agosto, este jornal noticiava que Rui Rio fora chamado a tribunal e classificava a sua ida, com alguma cautela, como “no mínimo, caricata”. A juíza terá perguntado a Rio se ele era um fanático dos popós. Rio respondeu que não, só inalava. A juíza concluiu que, se ele não se considerava um fanático dos popós, então fdp queria certamente dizer outra coisa. E manteve o acto censório. À saída, Rio disse que era inaceitável vir ao Tribunal em Agosto, ainda por cima para responder se era um fanático dos popós e que, “agora, mais do que nunca, era preciso um pacto de justiça entre o PSD, o CDS e o PS para fazer uma reforma profunda (da justiça)”.

O uso de acrónimos generalizou-se. Em medicina, por exemplo. Não deixa de ser curioso que na audiência e durante o esforço de exegese a que a juíza se entregou, uma testemunha, oftalmologista de profissão, tenha declarado que nos processos clínicos se escreve com frequência a expressão FODE normal ou FODE bem, querendo com isso significar que os fundos oculares, direito e esquerdo, são normais. Embora não sejam fornecidos outros pormenores, decerto que a médica pretendia salientar a importância do contexto na decifração de acrónimos menos conhecidos. No contexto de uma observação oftalmológica, FODE bem remete para o aspecto dos fundos oculares (FO). Já fdp poderia significar produtos de degradação da fibrina, um marcador de DIC, coagulação intravascular disseminada ou flexor digitorum profundis, um músculo frequentemente utilizado na gestualidade tripeira, ou prótese dental fixa, ou pupilas dilatadas e fixas, que é como ficamos quando o tronco cerebral deixa de funcionar. No contexto do Porto (intervenção policial repetida sobre os intervenientes na experiência autogestionária do Alto da Fontinha, abandono do projecto de requalificação do Mercado do Bolhão, entrega do Bairro do Aleixo à especulação imobiliária, suspensão do RSI aos que se recusam a trabalhar nos jardins do Porto a troco de subsídio de alimentação e transporte, privatização das Águas do Porto e do Silo Auto), “Rio és fdp” não se refere à paixão da figura pública pelos popós. Estes momentos de relaxada hermenêutica não impediram que a sentença censória fosse confirmada.

Rio não é fdp. Falwell dormiu com a mãe. Os fundos oculares da meritíssima juíza estão bem. São ínvios os caminhos da liberdade.

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10 agosto 2012





a alienação da Caixa Seguros, a área de seguros da Caixa Geral de Depósitos,


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09 agosto 2012






um instrumento de acção para potenciar os diversos “vectores de estratégia” que permitirão direccionar as acções de modo a cumprir com a missão de gestão confiada à EMPORDEF


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08 agosto 2012

A Morte do Leopardo: Sétima Parte




Don Fabrizio está sentado numa poltrona, na varanda do Hotel Trinacria de Palermo. É meio-dia de uma segunda-feira dos finais de Junho, e a luz de chumbo do mar da Sicília quase cega. Mas ele tem as pernas compridas envoltas numa manta. Agora é diferente. “O caso agora é diferente”, diz o narrador de O Leopardo. Já não é o lento e quase imperceptível derramamento da vida que nele se iniciou há tanto tempo. Está frágil e sem força como um recém-nascido e, entre desfalecimentos, desfilam à sua frente as imagens do que foi importante na sua vida. A descrição utiliza de forma soberba o discurso indirecto livre. Estamos no centro do cérebro de um homem que vai morrer, e a adequação da linguagem à corrente bruxuleante da sua consciência é tão maravilhosamente perfeita que nem por um instante nos afastamos dessa ampulheta onde se vertem os grãos finíssimos de areia. Estou a tentar ser fiel ao curso e ritmo desta agonia, usando as palavras de G. Tomasi di Lampedusa . O príncipe de Salina é o último dos Salina, porque os seus descendentes são burgueses vulgares, sem as recordações que agora se atropelam e definem uma linhagem que termina: os cães, o palácio de Donnafugata, a caça, a astronomia, a “beleza e o carácter” da filha Concetta, a satisfação “quando dava respostas cortantes a imbecis”, o toque sensual de alguns tecidos, o cheiro dos couros macerados, a beleza de algumas mulheres com quem se cruzara. O relato progride numa atmosfera de gases anestésicos, entrecortada pelos desmaios do príncipe, onde cada patamar é mais velado e anuncia o inevitável desfecho. A nossa percepção é a dos sentidos equivocados de Don Fabrizio, a sua consciência flutuante confunde-se com a nossa, e os sinais de morte acumulam-se, em contraste com uma realidade prosaica: o ruido quase festivo do Viático e o ar irritado do gerente suíço, incomodado por haver uma morte no hotel, o sorriso irónico de Tancredi tornado melancólico, a decrepitude do médico,” intelectual famélico”, que será o último a examiná-lo, lhe prescreve umas gotas de cânfora e sai, “ sem fazer barulho”. O perfume de Angelica nos seus braços durante “aquele baile” dos Pantaleone, entrevisto agora através de um sono invencível, ao qual não quer ceder. E o cheiro a bafio das pelúcias, a dificuldade para executar um pequeno movimento, o seu rosto por barbear no espelho ¬- “um Leopardo em péssima forma” . E uma interrogação que o vai trespassar: porque quer Deus que ninguém morra com o seu verdadeiro rosto. O homem que escreve nos Cadernos de Malte Laurids Brigge disse outra coisa: morremos com o rosto da nossa doença. A doença de Don Fabrizio é uma febre tricolor que varre a Europa. O príncipe de Salina vai também morrer com uma máscara forçada e por um momento hesita em chamar um barbeiro. Mas logo a seguir é vencido por outra evidência: é a regra do jogo, vão barbeá-lo depois. Uma multidão de detalhes alguns dos quais não parecem significativos: a música mecânica do realejo que toca lá em baixo na rua e que Tancredi manda parar, o fim iminente dos objectos amados, o fedor de prisão, recordações de urinas antigas e diversas. As mãos que já não apertam, as suas mãos. Achar-se na cama e já não na poltrona. Um assobio que ouve no quarto e é o do seu próprio estertor, a enumeração dos familiares que o cercam e a expressão de pavor que lhes reconhece e, de repente, “ esbelta e com um fato de viagem com ampla tournure e um rosto de estranha beleza, uma jovem rompe por entre o grupo, pede licença” e aproxima-se dele, debruça-se, ele vê-lhe a face, reconhece-a como a rapariga que olhou para ele na véspera, no comboio de regresso de Nápoles, e espanta-se: tão nova, não imaginava que fosse tão nova, e apesar disso interessa-se por ele. Rémy, o homem agonizante de As Invasões Bárbaras, filme quebequiano de Denys Arcand, disse que todas as noites da sua vida memorável adormecera com a imagem de uma mulher saindo das ondas e percebera a proximidade da morte pelo desaparecimento dessa visão hipnagógica. O príncipe de Salina foi levado por uma rapariga que entrevira nos espaços estelares. Nem a todos é dada a graça desta morte aristocrática. Não sabemos como morreu o homem do realejo, com que cara e visão, nem sequer Don Ciccio, seu companheiro de caça, ou o médico dos bairros miseráveis, ou o padre Pirrone. Quem virá buscar os intelectuais famélicos, a gente cega pelas promessas das Luzes, que acreditou que ao tempo dos chacais se seguiria um tempo das cerejas. O Leopardo, G. Tomasi di Lampedusa





do papel vibrante e transparente do mercado de capitais no crescimento económico global


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07 agosto 2012





Esta é a terceira vez em seis anos que se abre a possibilidade de regularizar capitais escondidos no estrangeiro. Nas duas primeiras vezes, em 2006 e em 2010, obrigava-se ao repatriamento do dinheiro, ao contrário do que acontece este ano.


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01 agosto 2012

Dois Leopardos e Alguns silêncios


Anselm Kiefer

publicado no i , suplemento LiV, a 28 de julho de 2012
Desconheço qual foi o mais pequeno poema que até agora se escreveu em língua portuguesa. Em 1962, Alexandre O’Neill aproximou-se da perfeição com um poema a que chamou Jorge. Era assim:
“Podes vir./ Mamã, enfim, morta”.
Anos antes, um neo-realista ganhara alguma celebridade ao escrever Viagem aos mares do Sul. Tinha um só verso:” Eu não fui lá”.
Agora foi Manuel de Freitas, que já antes antologiara Bardamerda, um autor cujo nome torna qualquer texto supérfluo, quem deu o seu contributo. Em Jukebox 3, edição do Teatro de Vila Real, Freitas escreve dois versos:
“Um dia, felizmente/ Ninguém se vai lembrar deste nome”.
Título do poema: Cavaco Silva, 2011.
Igualmente em Abril, a Black Sun editou mais um número da revista de poesia e luxúria com o nome de Piolho. Miguel Martins escreve o poema sem título onde, em seis palavras, nos garante que o fazem
“ ... ao relento/Lentamente/.../ Relentamente”.
A entrada no Museu do Quai Branly, em Paris, faz-se através de um rio de palavras que escorrem pela rampa através da qual se ascende ao andar principal das exposições, uma instalação da autoria de Charles Sandison. Palavras sem nexo aparente, um caudal de letras, sílabas, palavras que se sobrepôem, pequenas frases. Ninguém as sabe ler, pronunciar, juntar. Escorrem pelo chão, curvam num trecho do percurso, sobrepoem-se em baixo na planura do hall de entrada.
Um dos blogues mais interessantes deste ano tem vindo a ser construído por M. de Campos (lescahiersdelamariée.blogspot.com). Através de uma entrada periódica, um pequeno poema com título, M. de Campos constrói uma persona: mulher, mãe, prostituta, batida, humilhada, incapaz de educar o cão, como antes os filhos. Os posts tendem a ser cada vez mais curtos, a linguagem cada vez mais depurada, escasseiam as palavras. Quase que diz, com Vila-Matas: só falta calar-me. No último dos espelhos sucessivos, justamente intitulado de Mise en abîme, constata desoladamente que “Não se reconhecia na fotografia”. Cinco palavras.
A degradação do espaço público criou um movimento de recuo para o corpo. Não são precisas agora muitas palavras. As palavras que existem não servem. São as palavras da nova Língua do Imperio com as quais se exprime o grupo no poder neste país. Horários zero, para dizer desemprego. Reajustar, em vez de destruir. Sustentabilidade, significando falencia a prazo. Redimensionar, antes de encerrar. E estranhamente, como um verme cúmplice na rosa putrefacta, atestando que nem tudo está previsto, a palavra resgate.
Poucas palavras fazem agora sentido. Viramo-nos para o corpo, a cruzeta ambulante da nossa história, quase sempre com melancolia. Ah, mas é preciso gostar dessa pele, desse coração que talvez cometa ainda uma proeza insuspeita, da mão que há-de segurar a pedra, do corpo que aspira secretamente à sua glória.
Não precisamos de muitas palavras, Carminho e eu, para nos entendermos. Já nos interrogámos sobre tantas coisas. E percebemos algumas. Estas férias, por uma sucessão de felizes acasos tivemos acesso às duas traduções de O Leopardo, o mítico livro de G. Tomasi di Lampedusa.Esta abundancia de meios permitiu a partilha em silêncio, cheio de conteúdos, como se assistíssemos a um filme. Sem combinação prévia, as capas, amaldiçoadas pelo gosto dos editores, fitam-se. Lemos a velocidades ligeiramente diferentes. Rimo-nos nas mesmas passagens, ela com alguns segundos de atraso, como os correspondentes do telejornal. Declamamos pequenos períodos mais eloquentes: a revolução burguesa subindo as escadas do palácio de Donnafugata, no fraque de corte ridículo de Don Calogero. Perguntamos ambos quem seria o poeta francês que escreveu os versos inquietantes que não largam a cabeça do príncipe Salinas ao regressar do assalto a Mariannina (Seigneur, donnez-moi la force et le courage/ de regarder mon coeur et mon corps sans dégout). Confrontamos as soluções dos tradutores, quando soam alarmes. Mas poucas vezes, porque ela não é dada a exercícios de tradução comparada, nem os textos são assim tão diferentes. E sobretudo porque Carminho gosta de acreditar que está a ler no original, o que é uma variante culta da ideia ingénua que alguns leitores têm de que só existe aquele texto. Tolstoi e Pamuk, Selma Lagerlof e Marguerite Duras, todos escreveram na mesma língua, por coincidência a língua mãe de Carminho. É uma atitude semelhante à dos que detestam ouvir a fisiologia do amor, como as crianças que se chocam quando um dia visitam as terras do interior e descobrem, com uma discreta náusea, que os peitos de frango parecem estar pendurados numa coisa viva que depenica o chão das capoeiras. Mas convém que não me afaste muito do relato desta visita conjunta e quase silenciosa ao Leopardo. Esta experiência de leitura é uma metáfora das nossas vidas. Se não houver sobressaltos havemos de atingir juntos o fim da história.

O Leopardo, G. Tomasi di Lampedusa, Teorema, tradução de José Colaço Barreiros, 2007 e ed. Visão, 2000, tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo.



um gestor que é administrador em 73 empresas

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