26 maio 2013

Por vezes sós, por vezes tantos





Nos últimos dias o meu clube perdeu, por duas vezes, e por duas vezes entristeci. Não apenas fiquei triste, como me senti culpado. Por não ter investido suficientemente na vitória do meu clube, por não ter acreditado como devia, por não ter ido aos estádios onde os dois jogos se desenrolaram, por não ter esperado pelo jogo, concentrado e silencioso, por não ter gritado como os outros adeptos, feito a onda, aplaudido. Em ambas as ocasiões, pressenti a derrota, breves momentos antes de ela acontecer. Vi estremecer as malhas quando a bola ainda não saíra dos pés ou da cabeça dos inspirados adversários. Juntei, na fracção de tempo em que ocorreram, os sinais de mau augúrio: a face do inglês clamando vitória, a entrada em jogo do suplente, a concessão de livre de canto por parte do defesa improvisado, as movimentações sem bola dos jogadores na pequena área, o pôr-do-sol, a queda da garrafa de água, a frase insensata do comentador. Uma das câmaras focou um membro da claque adversária, na tensão que precede a explosão do salto. Eu, contra o que mais queria, adivinhei-lhe o júbilo.  Vi o grande plano da entrada em campo do suplente e li, horrorizado, as parangonas do dia seguinte, nos jornais que há anos deixei  de comprar: “saído do banco para a glória”, ou “de segunda opção para a fama”. 
Gosto dos entusiasmos colectivos. Da corrente de cumplicidades que se gera entre gente quase desconhecida. Desse mínimo denominador comum que nem precisa de ser dito. De alguns sinais de indumentária, das pinturas faciais, dos corpos transfigurados, da excitação contida. Gosto deste sentimento de pertença. Uma das raras vezes em que o meu clube triunfou e se formaram desfiles públicos, tentei integrar-me. Mas a adrenalina esgotou-se rapidamente. Toda a celebração necessita de acontecimentos que a mantenham e exaltem: a chegada da equipa à praça da cidade, o avistamento dos ídolos, a taça agitada na varanda da Câmara, o discurso inaudível do presidente. Ou de um inimigo: os adeptos do clube rival, os árbitros, o “sistema”, um político desleixado que tenha revelado, exageradamente, uma fé clubista adversa. O meu ânimo esmoreceu quando os meus companheiros de celebração começaram a insultar o adversário e a saltar, sem sair do lugar, para não serem paneleiros. Voltei para casa, mergulhado numa tristeza sociológica e na melancolia de não ter conseguido, ao menos por essa via, uma identidade.
Como acredito na participação cívica fui a uma manifestação de agricultores. Parecia promissor. Mas não percebi as palavras de ordem, a obsessão em largar tomates e hortaliças na via pública, a extensão da marcha, a rudeza dos dirigentes e a escassez de trabalhadoras rurais.
No verão passado, integrei uma concentração contra as touradas. Foi perfeita. Os objectivos são nobres e o êxito possível. Simultaneamente simples de enunciar e susceptíveis de se complexificarem à medida que os enumeramos. Evitar o sofrimento inútil de um animal, como o touro, só pode ser uma boa causa. Ao salvar o touro melhoramos também os  energúmenos que, nas bancadas, se alegram com a vista do seu sangue derramado. O touro é simultaneamente um animal que se aprende a nomear na infância e um poderoso mito. O touro da Guernica com a mulher entre as pernas, o touro que Europa ingenuamente montou numa praia de Sidon e que a amou em Creta, o touro da Osborne, de negros colhões pendentes, que era o perfil das estradas de Castela quando O’Neill lhe chamou a tão acaudilhada, o touro adorado em Mênfis, o touro que andou à solta em Viana. E do outro lado, reforçando a nossa razão apenas com a sua insistente ignorância, os desgraçados defensores das touradas, os marialvas, a dizer “estêjamos” e a atirar os cavalos contra os manifestantes. Gostei, francamente. O nível de consciência de quem participava era elevado, o índice de massa corporal abaixo do percentil 25, as T-shirts modestas, a organização apenas a necessária para fazer uma convocatória decente e escolher o lugar mais adequado para a demonstração.
Hoje sei que a nossa identidade é múltipla, interseccional, transversal. Esta complexidade contém o vislumbre de uma identidade (enfim possível), porque composta de fragmentos de todos os mundos (possíveis) em que nos movemos e enfrentamos, nem sempre como touros bravos e surpreendentes. Como disse A.C. Grayling  e cantou José Afonso, somos ao mesmo tempo filhos e netas, pais, crianças que se julgam adoptadas, heróis e votantes, europeus e africanos, celtas e magrebinos, o touro branco e Europa, o mar, navio, chalupa, escaler, moço, homem e mulher.

Amatya Sen, Identidade e violência , Tinta da China, 2007
A.C. Grayling, Ideas that Matter, A personal guide for the 21st century, Weidenfield, 2009
Carlos de Oliveira, Descrição da Guerra em Guernica, in Trabalho Poético, Assírio e Alvim, 2003
Alexandre O’Neill, Renfe, in Poesias Completas, Assírio e Alvim, 2000



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22 maio 2013

C O N V I T E - inauguração, sábado, às 22:00

17 maio 2013

O esqueleto de Siri



No IVAM, o museu de arte contemporânea de Valência, o artista dominicano Jorge Pineda, paralelamente a uma exposição dos seus trabalhos mais recentes, utilizou uma sala adjacente para um exercício a que chamou “Lição de Anatomia: Cadáver Esquisito; homenagem a Joseph Beuys.”
No exterior deste espaço escreveu: “Como explicar a arte, a vida, a morte?”
E em seguida, lançou o desafio: “Pode partilhar as suas ideias e escrever nas paredes deste espaço o que pensa, usando as partes desta obra, ossos de um esqueleto que talvez seja o de Beuys, Gabriela Mistral, Neruda, Picasso, Wharol, Frida Khalo, Jorge Luís Borges, Juan Bosch, Gego, Saramago, Júlio Gonzalez...”
O quarto, com paredes de ardósia, era providencialmente negro. Ocupando quase todo o espaço um catre com cerca de um metro e vinte de altura, de tampo de mármore escuro sobre o qual brilhava um esqueleto. Impecavelmente alinhados, os ossos de um corpo humano. Poderia ser a poeta chilena Gabriela Mistral, sim, que ao chegar ao porto de Veracruz, no ano de 1922, espantou Palma Guillén, a mulher que a esperava, pela sua altura (1,78 m). Dificilmente poderia ser Frida Khalo, que media 1,60 m aos 18 anos, quando sofreu o terrível acidente que destruiu a sua coluna, e perdeu um membro no final da vida. O esqueleto no catre era, quando a exposição abriu, no dia 1 de fevereiro, um conjunto de 206 peças perfeitas, de cré dura, 33 vértebras, incluindo as 5 do sacro e as 4 coccígeas, 12 pares de costelas, dois ossos ilíacos, fémures, tíbias, os 7 ossos do tarso, o crânio reluzente. O primeiro visitante a perceber o desafio, pegou numa falange da mão esquerda, a que se encontrava mais próxima da parede e lhe pareceu poder ser usada como um pedaço de giz e preparou-se para escrever uma frase. A camada de ouro soltou-se na superfície articular distal da falange, e ele desenhou um risco na parede, com mais dificuldade do que imaginara. Voltou-se para o amigo que o acompanhara ao IVAM e viu que um grupo já numeroso de visitantes, todos convidados para a inauguração, o olhavam com expectativa divertida. “Entre cien mundanas no he encontrado tu cara”, quis ele escrever. Era o único verso de Mistral que recordava e também a única associação que conseguira estabelecer. Mas a inesperada rudeza do muro e a do giz obrigaram-no a escrever com uma letra irreconhecível, com tal esforço que a meio desistiu. Talvez premonitória, a primeira frase do Cadáver Esquisito foi então: “Entre cien mundanas no (Gabriela Mistral)”, e naquele momento pareceu uma razão magnífica para a arte. Depois, o homem repôs o que restava da falange no dedo que lhe pertencia, cumprindo assim a orientação do autor que prescrevera, para terminar a inscrição da entrada: “Ao acabar, devolva os ossos ao seu lugar”.
Outro homem pegou num delicado osso do metatarso e, enquanto os convidados trocavam gracejos, desenhou, na parede aos pés do catre, um emaranhado de linhas e pontos que pretendiam evocar Gertrude Goldschmidt, a artista venezuelana conhecida por Gego. E não foi difícil alguém lembrar a frase em que Borges diz: “Uma pedra que cai pensa: quero ser uma pedra que cai.”
Quando os convidados na inauguração da exposição deixaram a sala – entre eles o Curador Fernando Castro Flórez e o próprio Pineda, que divide a sua residência entre Santo Domingo e Madrid, mas se deslocou a Valência expressamente para a inauguração – as outras pessoas presentes entraram, circularam pelo curto corredor que rodeia o esqueleto, uma ou outra atreveu-se a escrever, uma palavra, uma frase, um esboço. Com o tempo adensaram-se as mensagens. O rizoma de Gego encheu uma parede e as pessoas começaram a preencher as suas malhas. No mês de Março, um grupo de foliões que não percebeu a ideia e não leu, presumivelmente, a placa de orientação da entrada, começou a gravar nomes e corações trespassados. Elena ama Javier. Darcy 2013. Rachele/ Albacete. No fim de Março, depois da visita dos alunos de Artes, a directora, seguindo as instruções de Pineda, mandou colocar um banco e um pequeno escadote. As inscrições cobriam quase todo o espaço, já não havia um osso longo completo e um homem de keffieh usou a calota craniana para escrever uma frase atribuída a Neruda.

A 23 de Abril, quando visitei o Museu, os muros pareciam brancos. Não havia uma única frase legível. As palavras sobrepunham-se, densas, e anulavam-se. O pó dos ossos, que sustentara “a púrpura de rosales de violento llamear” era agora a cal indecisa das paredes, o vozear indistinto de 18.342 visitantes, a multiplicação de tentativas de resposta ao repto de Pineda: explicar a arte, a vida, a morte. O esqueleto, um achado arqueológico. Lucy in the sky with Diamonds. Ou talvez Siri, com a sua voz esfíngica: -Siri, what’s the meaning of art? -I can’t answer that. Ah ah!



Gabriela Mistral.Antologia Poetica ,1999, EDAF
Untangling the Web: Gego's Reticularea, An Anthology of Critical Response (Museum of Fine Arts, Houston)

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12 maio 2013

Parcimónia em Celas



O que importa é a enunciação física, corporal, labial, da palavra: abre os teus lábios e que ela saia de entre eles (sê obsceno). Aquilo que quero perdidamente é obter a palavra. Roland Barthes.


Talvez haja quem se lembre: Wanda Gershwitz, aliás Jamie Lee Curtis em Um peixe chamado Wanda. Quando John Cleese, um dos Monty Python, começa a falar russo, a mulher desmorona-se como um boneco articulado. Cada frase dele, em russo, é uma poção erótica na dose adequada. Ela tenta recompor-se, mas se ele fala, em russo, ela rapidamente se quebra, requebra, descompõe. A comicidade da situação reside no poder súbito, mas absoluto que o homem adquiriu através da linguagem (russo), um recurso que o torna dominador.

Bonnie Gabriel manteve durante anos um blog intitulado Words for Lovers, recomendando verbos afrodisíacos para uso diário, paralelamente à dinamização de workshops de erotismo na linguagem comum, participação em programas de pós-graduação na Universidade de Nova Iorque e na San Francisco State University. A partir deste trabalho escreveu para a Random House o aclamado livro The Fine Art of Erotic Talk : how to Entice, Excite and Enchant your Lover with Words.

Borges adquiriu “o hábito de urdir hendecassílabos” porque percebeu que isso fazia tremer as pernas de Viviana Aguilar, a rapariga da Livraria La Ciudad, que fica na Galeria del Este da rua Maipú, em Buenos Aires.

Um destes dias encontrei em Celas a minha amiga Madalena. Madalena não é grande apreciadora do género humano e é particularmente crítica dos homens, que acha pouco sensíveis, auto centrados, complicativos e excessivamente preocupados com o sexo. Tomámos um café e, contra o que é hábito e ao que me lembre aconteceu pela primeira vez, acompanhou-me até à mota que por necessidade, eu deixara estacionada junto a um muro, num passeio público. Quando estávamos perto, destacou-se de um pequeno grupo de homens que conversava, um que , enquanto apanhava os cadernos que poisara sobre o assento da mota, disse: - Peço desculpa por ter utilizado, embora com parcimónia, o seu veículo.
O rapaz era magro e tinha boa figura. O movimento que fez foi discreto e cheio de elegância. O timbre de voz era caloroso. Eu ouvi a sua frase como se fosse dirigida a Madalena. Mais importante ainda: ouvi a frase, e sobretudo a palavra “parcimónia”, como Madalena a estava decerto a ouvir, uma certeira proferição física vinda “por onde o vulnerável cão do espírito ladra e lavra” até uma rapariga que quase desistiu de a ouvir.
Pus o capacete e executei o humilhante conjunto de manobras que, para abreviar, descreverei como “baixar o descanso central e iniciar a marcha”. A minha amiga tinha o sorriso feliz que a anima nos raros momentos em que parece acreditar na máxima de Pangloss. Aproximei-me dela e levantei a viseira, enquanto, com a moto de novo parada, soltava uma breve aceleração involuntária, que soou como um grunhido exibicionista. - Sai do meio da rua, Madalena. Queres ser atropelada? E ela, sem se mexer, ainda confusa: - Quem é o rapaz que adjectivou os apontamentos de "parcimoniosos"? Como é que se pode alegrar o coração de uma rapariga com uma palavra inesperada?
Bendita palavra, de facto. Virei-me para o pequeno grupo e baixei a cabeça, dentro do capacete, o que retirou algum impacto ao meu gesto, que se queria de apreço e cumplicidade. Parcimónia. O princípio que pode ser enunciado como a navalha de Occam e que, por isso, não carece de outras explicações mais complexas. Uma palavra para ser cantada, repetida num refrão de uma canção de Vincent Delerme. Arranquei e o meu coração ia leve como as faces ao vento e assim permaneceu até quase ao fim do dia.
As palavras. Quantos amigos perdi pelas palavras, quantos feri sem disso me aperceber. Quantos me desiludiram, por terem pronunciado a palavra errada, que surgia como “a pequena mancha” que subitamente se descobre na face do ser amado.

Ainda hoje, apesar de alguma condescendência adquirida, não resisto a algumas palavras, quase todas relacionadas, reparo agora, com satisfação, resgatando Bonnie Gabriel. A palavra “fruir”, que ainda me causa um arrepio apenas ultrapassado por “desfrutar”( dois arrepios). A incrível e pavorosa palavra “ prazerosa”. Fruir, desfrutar e prazerosa são palavras atrevidotas, impúdicas, que lembram as pessoas que comem fruta sem maneiras. Sempre percebi instintivamente o que era o pecado original e me envergonhei, solidário, com a mulher que abocanhava a maçã estendida pela serpente. Esta associação surgiu-me, desde que a ouvi pela primeira vez, como uma evidência anterior a qualquer experiência, uma sabedoria inata que dispensava outra explicação e podia ser entendida com o princípio da parcimónia, uma navalha de Occam que precede a razão, que era absoluta e só podia ser verdadeira. “Desfrutar”contém a palavra fruta, (leio maçã). E depois o prefixo “des”, aqui com um sentido de reforço ou intensificação, apesar de frutar, frutificar, tornar frutífero ou ser frutuoso não necessitar de reforço adicional.
Devíamos usar apenas as palavras justas que nos afastassem do fausto, da redundância, da mundanidade e do cosmopolitismo. As palavras indispensáveis que Sophia procurava e Carlos de Oliveira, outra vez ele, dizia que vinham com “o crepúsculo, como uma poeira lenta, encaminhando a mão que escreve” ou a voz da proferição “à silaba inicial/ da única palavra/ que é/ ao mesmo tempo/ água e pedra: sombra,/ som “.

Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, Ed. 70 
Carlos de Oliveira, Entre Duas Memórias, D.Quixote 
Jorge Luís Borges, La Cifra

04 maio 2013

A circulação das frases.


Sophie Calle

A ideia de que cada acontecimento tem um propósito, uma causa final (Aristóteles), parece fundamental no modo de funcionamento da consciência humana. Estaria na origem das religiões, das técnicas, da física e da psicologia. Surgiria muito cedo no desenvolvimento infantil e evoluiria de forma automática. Outra das capacidades humanas, embora poucos gostem de falar sobre isso, é a de viver a vida pessoal, tantas vezes insatisfatória, através da construção de fantasias sobre a vida dos outros. Isso explicaria o sucesso do teatro, da novela, das revistas cor de rosa e dos reality shows ou a sobrevivência da monarquia britânica. Olhando para o nosso confuso interior, perscrutando o charco das nossas profundidades, podemos ver como, ao cruzarmos a existência de alguns desconhecidos, gostaríamos de seguir os seus passos e, no limite, viver as suas vidas. Só nesta multiplicidade realizaríamos a ambição desmedida, mil vezes desfeita e renascida, de viver “la vraie vie”, como a Elise de Claire Etcherelli, num livro esquecido do século passado. 

Isto aconteceu recentemente a uma mulher de 35 anos, Maria Dolz, directora de publicações de uma editora, que todas as manhãs observava um casal com quem nunca falou e com o qual se esforçava por coincidir durante o pequeno almoço, num café próximo do seu local de trabalho. 

É este o tema de “Os enamoramentos”, último livro de Javier Marías, pelo menos de acordo com a contracapa. Nas horríveis edições que agora invadem o mercado livreiro, normal, paranormal e anormal, a contracapa assegura habitualmente a genialidade do autor e da obra, para tal recorrendo a vozes consagradas que, estranhamente e mesmo quando se trata de uma primeira obra, já a leram e sobre ela generosamente verteram sound bites, que ficam mesmo a matar na contracapa das horríveis edições de agora. Segue-se um curto e incisivo resumo, muito útil para os especialistas instantâneos (como eu) que assim se encontram habilitados a poder falar dos livros que não leram. Sucede ainda que, mesmo no caso de os chegarmos a ler, aquelas frases cirúrgicas modelarão a leitura e as interjeições criticas com que poderemos, mais tarde, participar sem constrangimento em qualquer conversa literária, se ainda as há, palely loitering. 

E com este meio verso de Keats entramos no romance de Marías. Entramos pelo fim, pois, tanto quanto me lembro, esta é uma das últimas ou a última citação . Escolhi quatro, para falar um pouco do livro deste adepto do Real Madrid, que, tendo a minha idade me deixa acreditar que partilhamos alguns momentos fundamentais deste tempo: o Museu Ashmolean em Oxford e os relatos curtos das vidas de escritores, Enquanto elas dormem e A vida do Fantasma, o estampido do tiro que abre Coração Tão Branco e o assassínio de Desvern nesta última criação. 

A partir de Keats, que assinala a forma como uma presença obsidiante se atenua no nosso quotidiano, viajamos à primeira referência literária de “Os Enamoramentos”, um verso do poderoso monólogo de Macbeth ao receber a notícia da morte da sua mulher, antes da batalha. She should have died hereafter, diz ele. E o autor, ou a voz de Diaz-Varela, Javier como ele, um homem de boca carnuda por quem Maria Dolz “estúpida e silenciosamente” se apaixonara, discorre sobre o enigma que se encerra nesta frase, e que reproduz o que qualquer um poderia dizer no anúncio da morte de um ente próximo. “Não neste momento. Teria havido um tempo para tal palavra”. E a seguir, os célebres dez versos que Javier, o narrador, e tanta gente ainda sabe cor e que começam por “Amanhã, amanhã e amanhã”. 

A segunda citação, sempre pela voz do tal Diaz-Varela, o outro Javier, é de um dos pequenos contos de Balzac que compõem A Comédia Humana. Chama-se O coronel Chabert e relata a terrível aventura de um militar do exército napoleónico dado como morto após a batalha de Eyleau, contra o exército czarista, a mais fria batalha da história. Atingido brutalmente no crânio, o coronel foi espezinhado pela passagem da cavalaria do marechal Murat, dois regimentos com 1500 homens, e em seguida atirado para uma vala comum. Mas não estava morto e regressou, para ver como a mulher se desfizera não apenas dos seus bens mas também da sua recordação. Um Frei Luís de Sousa francês, escrito em 1835, que tem de aprender por ele próprio que “os mortos erram ao voltar” e que é Ninguém, “o que morreu em Eylau”. 

A terceira citação é de Os Três Mosqueteiros. Uma passagem que o pai de Maria Dolz costumava declamar e que se virá a revelar a chave para o comportamento e as decisões desta. “Le conte était un grand seigneur...”. Começa assim, e ao repeti-la percebemos como Maria a deve ouvir, no francês do pai aprendido no colégio São Luís dos Franceses, onde Javier talvez tenha andado. “Le comte était un grand seigneur, il avait sur ses terres droit de justice basse et haute...” 

E ficamos a conhecer o terrível relato de Athos a D’Artagnan onde ele obliquamente lhe dá a conhecer a execução, às suas mãos, da jovem Anne de Breuil, então com dezasseis anos e com quem recentemente casara, apenas porque, durante uma caçada, ao desapertar-lhe a blusa após um desmaio lhe descobrira, gravada a ferro, a marca infamante do carrasco de Lille, o sinal com que eram marcadas “as prostitutas e as ladras”. 
- Céus! Athos! Um assassínio!- exclama D’Artagnan. 
- Sim, um assassínio, só isso. - responde Athos. 

Frases de livros lembradas em outros livros, ditas pelos nossos pais, recitadas na escola, ouvidas no teatro ou a amigos, ficaram gravadas e regressam à nossa vida, para a pautarem, lhe darem sentido e com ela ganharem também uma nova ressonância, outra circulação, frases que são no início só o trauteado encantatório com que as aprendemos e depois se revelam “o som e a fúria, uma hora num palco” parecendo, por momentos, significar alguma coisa. 

Os enamoramentos, Javier Marias, trad. Pedro Tamen, Alfaguara 
O coronel Chabert, Balzac, Assírio e Alvim Os Três Mosqueteiros, Alexandre Dumas, Europa-América 
Macbeth, William Shakespeare, Relógio D’Àgua 
La belle dame sans merci, John Keats (publicado no jornal i a 5 de Maio de 2013)

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