31 julho 2005

Livros de férias

Olhe aquele que saíu há pouco naquela colecção...ajude-me por favor, naquela colecção que editou o Prémio Nobel do ano passado ou de há uns anos, está a ver, aquele autor alemão, ajude-me... austríaco , ou do leste, um romance que não é bem um romance, é mais um livro de História, acho que sobre a Reforma, ou sobre a Inaquisição, olhe é um best seller, ou já foi, ajude-me, ajude-me... tenho um amigo que mo aconselhou vivamente, até me disse que um suplemento de um jornal o recomendava como o livro ideal para as férias...se eu ao menos me lembrasse exactamente de quem é que me falou desse livro, ajude-me por favor.

Estilos

Ela detestava o modo imperativo. Ele ainda tentou o pretérito imperfeito do modo conjuntivo. O começo do desentendimento deles foi no terreno do tempo. Mas o que ela não pôde mesmo suportar nele- e disse-lhe, ela era muito frontal- foi o recurso sistemático da conjugação perifrástica.

Ela sabe o que os portugueses querem

Mário Soares não tem nada a ver com o futuro nem com os interesses dos portugueses.
Helena Matos, no Público de ontem.

Afasia anti patriótica

O puto era bilingue. Absolutamente bilingue, garantia a mãe. Depois que foi atropelado só entende e fala francês. Não há nome para esta lesão cerebral transitória.

Férias em Portugal

A avó, na casa ao lado, ainda apurava a sopa da panela. O pai ainda não tinha tirado as malas do porta bagagens. A mãe ainda não tinha aberto as janelas para arejar a casa, há um ano fechada. O puto já desencantara a bicicleta e, mesmo com os pneus em baixo, pedalara até casa do Samuel. O avô ainda perguntava ao pai pela viagem, se tinham encontrado muito trânsito em França, onde é que tinham pernoitado. O puto já voltava de casa do Samuel. A tia mais nova já lá vinha alvoroçada com as prendas de França. O pai fazia extensôes musculares, 3 500 quilómetros de estrada não são brincadeira. O puto já tinha sido atropelado.

Teologia

Não sei se deus existe. Mas existe a curva das nádegas de Katherine F. E se a curva das nádegas de Katherine F. não faz sentido, que sentido tem afinal a vida.

30 julho 2005

A ameaça do 24-S


Toda a gente tem assunto de conversa.
Só a bailarina é que não tem.

29 julho 2005

Strasbourg


Quando Lúcia partiu era difícil trabalhar na estação. Sobretudo nos dias em que ela costumava telefonar e à sexta-feira, por causa do fim-de-semana. Esperava sempre que ela me convidasse no fim-de-semana. Quase nunca aconteceu mas não importa. Era assim que passava a semana e acordava à sexta-feira. Nessa expectativa. O tempo passava depressa e parecia-me que tinha todo o tempo do mundo para resolver a questão que havia entre mim e Lúcia. Às vezes pensava na minha vida. A minha vida verdadeira estava para vir. A vida que vivia era um prelúdio. A continuação do secundário. Uma coisa que acontece sem nos preocuparmos a não ser com a inscrição e a assiduidade mínima. Eu assistia à minha vida mas não estava bem lá. Fazia o que devia ser feito. Os cursos de promoção, os relatórios periódicos, a definição de objectivos para a avaliação. Picava o ponto, dava horas se fosse caso disso, substituía os colegas em apuros. À tarde um ou outro amigo esperava por mim no café. Nunca lhes falei de Lúcia. Mas sentia relativamente a eles uma grande superioridade. Eles viviam uma vida simples, reles. Como a minha parecia antes de conhecer Lúcia e perceber. Um dia tudo iria mudar. Numa terra que não conseguia imaginar, um homem como eu, mas intensamente mais vivo, mais cheio de energia e decisão, trabalharia com as mãos, sem outro salário que o olhar benévolo de Lúcia. Bastava-me esperar. Esse tempo viria. Não via sinais dele. Mas era cego e só à luz desse tempo os meus olhos se abririam. Os fins-de-semana passavam lentos. Às vezes duvidava que Lúcia existisse. Que tivesse tocado a cara dela com a ponta dos meus dedos, que tivesse tido coragem para lhe pegar na mão e no cheiro. Em Nelas. Mas eram raros esses tempos de descrença. As noites sempre me traziam um sonho, que de manhã podia ter perdido mas de que persistia, como uma certeza no peito, a doçura da minha próxima e verdadeira vida.
Quando Lúcia partiu, foi na minha vida futura que morri. Na estação já não se ia para lado nenhum, nenhum telefone que tocasse seria o dela. Nem sexta-feira precedia outra coisa que o fim-de-semana. E no café, à cerveja, era um rapaz como os outros.
Não deixava de escrever. Se não escrevesse tinha de beber. Antes escrever. Em papéis de deitar fora, porque em nada do que escrevia se dizia o nome dela, a forma de andar, o corpo magro, as costas, a graça do cabelo sobre a nuca. Houve dias em que enlouqueci. Só me lembrava dela afastando-se, caminhando de costas sem se voltar. Não me lembrava dos olhos, nem dos lábios, nem da claridade. Então vagueava nos lugares da minha cidade, onde ela não estivera, e se por acaso encontrava alguém que não fugisse perguntava-lhe: - És daqui? O que fazes? Como te chamas? E procurava segui-la até casa com a esperança de voltar a essa rua e ela me dizer: - Vê bem a minha cara. Foi para aqui que vim. Este é o prémio por teres esperado. Toma a minha cara de frente, vê-a bem. Não te esqueças dela. É a cara que levarei para a tua vida verdadeira.
Escrevia. Quando não escrevia, sentia que atraiçoava Lúcia. Escrevia primeiro nos cadernos de sempre, depois num portátil infelizmente sem grande autonomia, que me trouxe mais fluência, mais balanço, mais mancha no ecrã e copy past.
Depois começaram-me a morrer os substantivos. Começou pela morte dos substantivos comuns, seguiu-se a dos substantivos verdadeiros. E com eles morria quase tudo.

28 julho 2005

Cavaco moderno

Os opinion-makers do Cavaco esforçam-se por provar que o homem é mais moderno que o Soares (ontem Duarte Lima, que parecia uma máquina de declinar mensagens correctas, na sicnotícias). Eu estive com Cavaco num aeroporto. Olhei-o talvez com demasiada insistência. Ele cumprimentou-me educadamente com o cuidado que deve reservar aos admiradores e futuros votantes. Aproveitei e pus-lhe algumas questões, digamos que primeiro Kantianas, depois inspiradas em Habermas. Posso garantir que o homem não é nem moderno nem post-moderno. É de Boliqueime.

Caminheiros, não há só trilhos

a.estrada:

Em linha, pronta a ser adicionada aos marcadores, uma nova publicação electrónica
"de crítica, criação e opinião". Que parece um blogue mas não é um blogue.

Fundadores: António Tavares Lopes, Rui Bebiano e Tiago Barbosa Ribeiro (do Sous le pavé la plage, e de A Noite).


a. estrada: ou, mais simplesmente, .:
a partir de 28 de Julho em http://a-estrada.com.pt

27 julho 2005

Sócrates isolado no Público

O Público foi saber o que é que EPC pensa do Soares candidato. O Público é assim. Persegue-nos com o EPC como a Polícia de viação com as multas. Ele disse que havia um grande desfasamento entre o PS e as pessoas. Não há nada como as férias para sabermos o que pensam as pessoas.
Embora haja sempre um intelectual disponível ,o broxe de um intelectual não é coisa a que um político se possa afeiçoar. Enganei-me como habitualmente. EPC não será o Delgado de Sócrates.

26 julho 2005

As minhas amigas são todas notáveis

Posso falar aqui das minhas amigas porque elas não lêem blogs, o fazem com o distanciamento necessário à critica literária, ou já morreram. As minhas amigas têm todas particularidades físicas notáveis. Que as tornam lindas, mas que estão na fronteira da excentricidade. Um pouco mais das suas marcas peculiares e continuariam únicas mas menos imediatamente encantadoras.
A Gina tem cabelos ruivos, cada ano mais curtos. A Renata uma face tão mutável que temos sempre de certificar a identidade por senhas ou sinais. A Alma um nariz como César, que hipnotiza quando a olhamos de frente. A Dada vírgulas e umas mamas que a precedem. A João parece estrábica e isso é muito perturbador. A Simone umas pernas enormes. É muito difícil fazer escalada atrás dela porque ela nos troca as passagens. Os dentes da Lena parecem todos incisivos. A Inês tem um brilho especial sob a face escavada dos pés. A Ema uns cotovelos que viram sempre os pulsos para a frente. A Francisca um ventre tão côncavo que não pode usar cintas descidas. A Sara está sempre despenteada. A Maria mete os pés ligeiramente para dentro. Quando a vejo ao longe parece que caminha na minha direcção.

24 julho 2005

Fim de semana em Haguenau


Em Strasbourg Lúcia encontrou Berthe. Ela trabalhava no Departamento das directivas Habitat e era da Suiça romande. Entre as duas nasceu uma forte amizade. Berthe convidou-a para um fim de semana na floresta de Haguenau . Tinham alugado uma casa de madeira nos terrenos pantanosos junto ao rio Sauer, rodeada de carvalhos e pinheiros silvestres. Deram um passeio pelos trilhos e ouviram o grito de uma ave que era o urogalo. Cruzaram-se com um velho que lhes contou a história da terrível praga dos carvalhos, dizimados pelo bombyx no começo do século XX. Anoiteceu cedo e elas cozinharam sopa de cebola e um pudim de arroz com molho de espinafres, na cozinha da casa, com as janelas abertas para o bosque. Demoraram imenso tempo a soltar uma a uma as folhas dos espinafres, a lavá-las à torneira num saco de rede, a passá-las aproveitando o suco para o creme. Iam rindo à medida que a refeição tomava forma. Não tinham passado nem futuro nem outra coisa que não fosse a alegria de estarem ali, a cozinhar e a rir. Lúcia feriu-se num dedo e Berthe pegou-lhe no pulso e chupou o sangue que se soltava. - A saliva é o melhor coagulante, disse Berthe. E o teu sangue sabe a cebola, também disse.
De noite Lúcia sonhou que estava num terraço sobre rochas de granito claro. Quando olhava com atenção via que as rochas eram sulcadas por inúmeros insectos de carapaças negras e castanhas, de vários tamanhos e enorme voracidade. Os maiores comiam os mais pequenos, encurralando-os nos buracos da rocha. Num canto do terraço, junto a um arbusto, tremia uma espécie de gafanhoto sem pernas, envolto nas malhas de uma aranha. Quando se aproximou percebeu que só restava o invólucro do bicho, a dura cutícula de queratina. Sonhou tudo isso sem angústia, porque sabia que não havia granitos na floresta de Haguenau .

22 julho 2005

Chinelas

Eu antes tinha medo dos teus calcanhares. Que não estivessem irrepreensívelmente lisos e claros. Agora percebo que são uma prova da confiança que tens em nós. Mas como no dia em que chegaste, o chão dos tacões é sempre o peito.

A roupa das mulheres: atilhos

Os atilhos. A graça dos atilhos. Nas calças, sobre os tornozelos. Num ombro, o atilho assimétrico. Atilho que não ata nem desata. Atilho inútil. Atilho que nunca ao corpo impediu que se soltasse. E é como essas partes que ficaram de um uso já esquecido a que chamam reliquat.

Como Zenão. Como Aristóteles

Um amigo disse-me que o Afonso se colocava numa posição dinâmica, como Aristóteles, enquanto eu olhava o tempo como Zenão. Mas eu não olho.


Há dias horríveis em que vejo inscrita
no pino do Verão a corrupção do Outono.
Em que das três caras que
dizem
as mulheres trazem consigo
só vejo a que as resume.
E a sopa queimada na panela.
A mola desenrolada do relógio.
Um sono irreprimível.
O caderno onde vais escrever
detrás para a frente estas palavras.

21 julho 2005

Até ao fim

O rapaz era tão triste que as namoradas se deprimiam consecutivamente. Como era solícito, acompanhava-as sempre ao psiquiatra.

Chame a polícia

Campos e Cunha veio-se embora como os despedidos das empresas em falência. Calado, com o patrão a explicar as suas razões. No Portugal de Sócrates há um novo nome para a dissidência: o cansaço.

As Mulheres de O Mal: Emily Brontë

Escreveu um livro, Os Montes dos Vendavais. E poemas que diziam dos animais, dos caminhos que percorria, do vento e da chuva, de um cão chamado Keeper. Quando morreu, aos trinta anos, Charlotte encontrou-os. Foi a primeira pessoa a lê-los.

20 julho 2005

O colete fluorescente



É o meme deste verão como ontem a bandeira. No lugar do morto, geralmente vazio. A forrar o banco. Porque querem protestar. Porque se for necessário têm-no à mão. Porque os miúdos, no banco de trás, não sujam os estofos com os pés. Porque gostam, a cor é fascinante. Porque até parece que levam alguém ao lado, o descanso da cabeça é a cara. Porque os outros usam. Sobretudo porque os outros usam. Os vírus da mente não precisam de razões para se replicarem. Mas a mente infectada gosta de se explicar.

As Mulheres de O Mal: Maria de Lourdes Pintasilgo




Maria de Lourdes Pintasilgo nasceu em Abrantes em 1930 e foi Ministra dos Assuntos Sociais(1974-75), embaixadora na UNESCO (1976-79) e Primeira Ministra (1979-80). O seu contributo foi marcante na cidadania, no reforço do papel da mulher nos diferentes campos da actividade humana, na reflexão religiosa e na teologia, na construção da Europa e nas relações internacionais.
Hoje às 18:30h, na Casa da Cultura em Coimbra, Maria de Lourdes Pintasilgo é recordada a propósito do lançamento do livro “Palavras Dadas”. Falam Maria Irene Ramalho, Boaventura S Santos e José Manuel Pureza.

Lúcia quando partiu

Nesse Verão Lúcia encontrou um amigo da escola. Ele agora vivia em Strasbourg. Disse-lhe que era uma cidade agradável, com gente de todo o lado sempre a guardar dias de folga para conhecer os países da Mittel Europa. Deu-lhe umas direcções, ela preencheu uns formulários e três meses depois chamaram-na para uma entrevista que correu bem. A mãe não percebeu o que ela lhe estava a contar. Nos últimos tempos a mãe não percebia quase nada. Lúcia arranjou-lhe um quarto num lar de Silgueiros chamado O Sossego. Custou-lhe. Mas a mãe tinha descontado mais de vinte anos para a diocese e pareceu-lhe ficar bem instalada. Visitou-a duas vezes sem ter a certeza de que ela a reconhecia. Uma tarde, nos Correios, recebeu uma chamada de Strasbourg. Tinha contrato por três anos. As amigas organizaram um jantar de despedida numa pizzaria de Nelas. Perguntaram-lhe se queria que convidassem alguém em especial. Ela disse que não havia ninguém especial.

19 julho 2005

Isto não é o vento nos robles, meu filho



Onde caminharemos quando ocuparem todas as cumeadas? Apreciando a lisura das pás? Contando-lhes as voltas? Pedindo aos habitantes da cabina cimeira que não virem para nós os gumes frios? Em dias claros o seu assobio chega à cidade. E assobia uma canção de escárnio, cujo refrão, Iberdrola Iberdrola, os meninos repetem sem perceber porquê.


(Inspirado no Alcatruz)

18 julho 2005

A questão de Lúcia

Antes de Lúcia ter atravessado os Pirinéus, o rapaz dos Correios beijou-a,nas escadas do prédio de Nelas. Tudo feito em silêncio, que a mãe dormia. O beijo que foi do sorriso, o calor do pescoço dela, o puzzle dos ossos resolvido, uma perna que se descalça, um reboliço. Depois outra vez o silêncio. Depois Lúcia a dizer:-"O sexo é então isto?"

O tempo

O tempo não existe. Acho que já uma vez aqui tentei demonstrar essa evidência, pelos vistos sem resultado. O tempo passado não existe a não ser na memória dos seres com memória. De uma coisa que só existe na memória não se pode, verdadeiramente, dizer que exista. O tempo futuro, esse, seguramente não tem, até acontecer, nenhuma forma de existência material, que virá a verificar-se ou não. Se algo parece pacífico hoje, é essa impossibilidade em prever o tempo que virá. Resta-nos o presente. Mas se nos detivermos um pouco sobre este assunto, facilmente percebemos que quando tentamos capturar o momento presente, ele escapa-se como a sombra ao néscio, e se alguma coisa agarramos é o passado. Podemos decompô-lo sucessivamente. Mas mesmo esse instante que é um relâmpago, um estampido, um estremecimento da mente, quando o analisamos já não está presente, ou apenas como o mostrador de um relógio fuzilado. Esta reflexão parece-me tão difícil de rebater, tão independente de outra coisa que não seja o deslizar livre do pensamento, que seguramente já ocorreu a muitos homens, filósofos ou não.
Quando percebi que o tempo não existia, o mundo material deixou de fazer sentido. Se as tragédias só existem verdadeiramente na fracção milionésima em que podem ser algo mais que passado, então mesmo as nossas penas são suportáveis.

16 julho 2005

A montanha antes do dia

Quando Lúcia atravessou os Pirinéus eu era J., o funcionário dos correios, e olhava as minhas mãos, onde viveria o rasto. Preenchia-me aquele rosto transmutável até às lágrimas, como se fosse dorido da vida toda, mas às lágrimas durante um beijo só. Se acordo antes do dia é para me lembrar assim. E pergunto cedo o caminho da montanha.

15 julho 2005

Vive le 14 juillet


Vou passar a festejar estas datas no dia seguinte. É a precaução revolucionária a que alude o Zé Mário.

Firmeza




Agora temos homens fortes. No Estado e na Fundação. Rui Vilar não voltará a dançar e a sua decisão é inabalável.

Os Ossos



É nos ossos que está o sangue primitivo
O que leva as células- mãe, o que não escorre
É nos ossos que endura,
A menos que arda,
A mensagem cifrada que nos guia.

O que no fémur sempre me enternece
É a ligeira anteversão do colo.
O grande osso das pernas
Rodando no ilíaco,
descendo para o redondo perfeito
do joelho

E as espinhas ilíacas são uma vertigem.
Agora expostas
quase sempre cegam.

Das vértebras cervicais
os japoneses sabem.
E a curva das dorsais
é que projecta as mamas.

Os do metacarpo alongam
as mãos mais curtas.
E o astragalo? Experimenta como
dizê-lo pode mudar um dia.

E os ossos que viram para trás: o sacro,
O occipital, concavo de outra mão,
esse osso duro do cotovelo.

Os ossos com que nos olham:
Os malares, a cabeça dos úmeros,
As clavículas
A sínfise do púbis
onde (não devia ainda revelar)
Borges cegou
com o brilho do Aleph.

14 julho 2005

Como persistimos (2)

Persistimos primeiro como os senscientes, um ser magnífico que nem se questiona. Depois como o bicho-da-seda, não é Afonso? E finalmente como a Taenia saginata.

O carácter dos ossos

Quando Loreta voltou a ver o Mamute ele abraçou-a, logo no aeroporto. Ela pensou: é o fim do amor, os ossos dele não são iguais aos meus. Já no banco atrás no táxi a certeza não era tão grande. Os ossos das mulheres são de geometria variável.

Haja Alguém(4)

"Nós que trabalhamos neste ramo encaramos a dança com honestidade."
- Teresa C, administradora de Fundação.

13 julho 2005

E, claro, o Filipe

Uns rapazes de Leeds

Sobre as bombas de Londres o Afonso escreveu A Besta. E o Lutz Perceber é que não. A Besta remete para um link perturbador. O tipo de coisa que estamos à espera que não nos contem.
O que o alguns blogs (Bombyx mori, Quase em Português com um comment de Susana felizmente longo, Cocanha, etc) escrevem, tem-me parecido bem melhor que as mesas redondas da televisão, onde a prestação da esquerda é quase sempre previsível ou mal informada. Da direita eu não falo, que a direita controla há duzentos anos os serviços de segurança e eu não estou para lhes dar argumentos. Já basta o NIF. A próxima vez que for preso só declaro o NIF.

Um blog novo



Rimbaud Warrior, um blog de Manuel Resende, sucursal de QF&M

Como persistimos


Será a persistência uma questão de endurance ou de perdurance? Guardamos, através do tempo que passa, um novelo compacto que nos identifica e permite acreditarmo-nos um. Ou somos como o bicho-da-seda, ou melhor como uma Taenia saginata sem escólex, vamos largando anéis inférteis, destinados a secar. As respostas a estas questões são difíceis. Mas a forma com as encaramos cheia de consequências.
Loreta é jovem demais para ser outra coisa que um ser pleno, que veria nesta divagação um sinal mórbido. Lúcia, quando a conheci, era a imagem da perdurancia: na fronteira entre Nelas e o mundo, apontada ao vale glaciar que cruza a serra. Eu só persisto por força dos registos. Sei que fui Heitor, o funcionário dos correios, Simão, o escritor chinês da pequena pensão, porque encontrei as cartas da minha avó, o cavalo de papelão, os mails de Loreta, o caderno de capas vermelhas roubado à Estação de Celas dos CTT. Nenhuma forma de endurance preserva em mim a identidade do miúdo que subiu ao sótão, do homem que foi com a rapariga ao Palácio de gelo e se comoveu ao vê-la calçar os patins, que ficou a olhar para as mãos depois de perceber que Lúcia não voltaria a ligar. Não transporto nada do que fui. Como escrevo, comovo-me ao reler as páginas dos velhos cadernos. Mas a minha comoção é literária. E não é semelhante à que tive ao escrever os factos. Se não enduro nem perduro, é um milagre persistir. Se deixar de escrever, serei plenamente nada.

// foto de André Bonirre

Haja alguém

"Nós que trabalhamos neste ramo encaramos o sexo com honestidade." - Claudia Claire, stripper, aqui.

12 julho 2005

Album (2)



// André Bonirre

A confidência amorosa

Antes de sair de Nelas, Lúcia procurou uma amiga. O objectivo era tomá-la como confidente. As mulheres vulgares devem retirar da confidência amorosa algum prazer. A boa escolha, a escolha criteriosa, esse dom feminino, exige este apuramento que é contar, ouvir-se contando, nomear o ser amado, ver como resiste contra a face do confidente. Os amores contrariados fortalecem-se com a confidência. Sophie de Volailles escolheu Mme. de Merteuil como confidente e foi aí, e não na investida de Valmont, que se perdeu. Loreta nunca teve confidentes. Mas Loreta não viveu em Nelas, nunca trabalhou nos Correios nem teve amores contrariados.

11 julho 2005

Abro a janela e vejo os fogos

Se eu fosse agricultor
numa terra por onde passasse o Tour
Ou livreiro em Buenos Aires,
Ou criado de mesa no Restaurante
Armas de Quito
Ou investigador no projecto Freeze, última fronteira,
Seis meses de reclusão na Antártida
num igloo a abarrotar de massa crítica
Ou se pedalasse pelo mundo
(em breve na Argélia
com notícias no site
pedaliandoelglobo.com)
Ou se fosse secretário
Assessor conselheiro
de miss Kidman
Ou me encarregassem de investigar
O crime da Poça das Feiticeiras
Ou fosse professor estagiário
Doutorado sem Mestrado
Ou fosse boxeur e me dessem
A porrada que dizes que mereço
Mas no final ganhasse
E fosse sagrado campeão dos pesados
Se Coetzee me mandasse o manuscrito
Do livro de memórias
Se soubesse apurar o refogado
Comprar fronhas que sirvam na almofada
Lembrar-me do dia de anos
Da Rosarinho
Se tivesse massa para comprar
O Libretto da Toshiba

As Putas em Agenda


Depois de mais de duas dezenas de espectáculos no Teatro-estúdio da Casa Municipal da Cultura, a Bonifrates vai apresentar, em Julho, no Teatro Académico de Gil Vicente, a peça “Puta de Vida”, nos dias 14 e 15, às 21h30.

Gulbenkian extingue Ballet


Há demasiado silêncio em torno desta brutalidade. A coisa em si (extinção de uma companhia de qualidade) e a forma como foi executada (Teresa Gouveia e Emílio Rui Vilar não vieram comunicar aos bailarinos a decisão, que implicava o cancelamento de seis espectáculos). Ontem na Pública, pela voz de Alexandra Lucas Coelho, dois bailarinos dizem como a vida mudou. A Fundação actuou como as empresas em deslocalização. Mas os intelectuais do costume não se mobilizaram e a notícia teve ecos discretos na imprensa: será que já são todos, mas todos, Fundação-dependentes?


(Petição contra a extinção em http://www.petitiononline.com/bg05ext/)

7 de julho de 2005 (lembrando a guerra)


Na guerra, quando soavam os alarmes, era para o metro que fugíamos.

Jantar no restaurante à beira rio (cont.)

Não tenho agora nenhum lugar para fugir
Nem regressar.
Descendo em mim
encontro a morte
.
E encontro a morte se subir.
O que separa
o rapaz que faz rir a rapariga loura
do homem que come
na mesa ao lado?
Quase nada
(além da rapariga):
A noção de Brasil, de Holanda,
chamar melhor ao mundo,
acreditar que o vinho
a comida
o riso
vão durar.





Créditos: Tempo Dual e um comentário anónimo no caixote.

10 julho 2005

A frase da semana



"...pensar que somos civilizados demais para voltar aos crimes do passado é uma ilusão que partilhamos com os criminosos do passado"


Vasco Pulido Valente (Público de sábado)

Colisão



Crash é um filme demolidor sobre a cidade dos Anjos. No início ouve-se a voz de um homem, para lá do cansaço, a dizer que os habitantes de Los Angeles esmagam os seus automóveis uns contra os outros porque deixaram de poder roçar os ombros pelas ruas. Não há pessoas boas em L.A. Aqueles com quem nos identificamos, levarão consigo, para o resto dos dias, o sangue dos que mataram. Podemos ser salvos pelas mãos que ontem nos violaram. Cada comunidade trata a outra como inferior, numa espécie de matrioska de racismo, em que os segregados segregam e a boa cor nunca é apurada. A hipocrisia democrática reina. Não há fuga desta rede, a menos que um anjo do Irão ainda resista.

Crash, de Paul Haggis com Don Cheadle, Terence Howard, Matt Dillon, Bahar Soomekh, Brendan Fraser, Laranz Tate, Thandie Newton

A filha do Regicida



Ele chamava-se Buíça, era professor, vivia numa casa modesta com uma gaiola de pombos na varanda. Era membro da Alta Venda carbonária. Não sei mais nada deste homem, que numa esquina do Terreiro do Paço tirou uma carabina de debaixo da capa , saltou para o coche real, com D. Carlos já morto, e disparou dois tiros certeiros contra o príncipe herdeiro. O repórter da Ilustração fotografa-lhe o corpo, exposto numa esquadra da rua do Arsenal. E mais tarde, em casa de Buíça, há –de mostrar-lhe os filhos: um lactente a chorar, ao colo de uma miúda de cabelos e olhos claros, testa levantada e um sorriso.

A exposição da Cordoaria de Joshua Benoliel (*): 0 “ enfermo da Europa”.


foto publicada em objectiva3.blogspot.com


Passamos em frente daqueles muros e o país que somos vai-se agarrando a nós como suor, lama, sopa apodrecida. As avenidas, os passeios e as árvores de Lisboa, o Cais da Colunas, o grande rio Tejo, as fábricas e os armazéns. Parece uma cidade da Europa ainda com o balanço pombalino. O pior é a gente. De cabeça coberta consoante a condição: os barretes dos saloios, as boinas dos que tinham chegado das Beiras, os bonés dos operários, os vários chapéus dos burgueses, as cartolas dos políticos e dos aristocratas. As mulheres cobertas, como hoje no Islão moderado. Os padres. O cardeal –patriarca à saída da Sé: pode-se cheirar o bafio dos paramentos. O regicídio, o instante que nenhum fotógrafo registou. Os corpos dos três assassinos, ainda por reconhecer, na esquadra dos Capelistas, linchados pela populaça. O quarto de D. Manuel II, “o Patriota” como agora se ensina às crianças, no desalinho com que o abandonou, na Revolução republicana. Os políticos da República, antigos, os mesmos panos, o mesmo peso. Uma face redime-nos daquele país de ombro postiço e sovaco. Mas dessa face nada saberemos.

Joshua Benoliel, representado na Cordoaria (Lisbon Photo), é creditado como um dos nossos primeiros foto repórteres. Publicou na publicação Ilustração Portuguesa de O Século.

Telhados de Vidro, nº 4

Saíu o nº 4 de Telhados de Vidro, a publicação não-periódica dirigida por Inês Dias e Manuel de Freitas e editada pela Averno
(preço de editor 13 euros).


Dois textos (que parecem inéditos) de Herberto Hélder, um poema manifesto de J.M. Magalhães, poemas de Rui Nunes, Thom Gunn traduzido por Rui Pires Cabral entre dezoito contribuições.
Silvina Rodrigues Lopes assina um pequeno ensaio sobre o fazer-poético, demolidor relativamente às “especializações em estudos literários”, e aos que, da crítica literária à moldagem da opinião pública, contribuem para “ ajustar o mundo às dimensões de parque turístico ou feira de diversões.”.
O texto afirma a poesia como terreno comum “à filosofia, ao pensamento, à atenção que se (nos) desloca para o outro”.
A citação de Dostoievsky sobre o turismo é saborosíssima. As de Ruy Belo e Rui Pires Cabral confirmam o que já se sabia: há uma linhagem na poesia (portuguesa) que passa agora por esses dois poetas. Aqui no Mal agarramo-nos às palavras deles quando tudo o resto parece faltar. São elas que, quando a poeira das bombas já não cega e o template regressa, nos seguram os olhos para voltar a ver.

08 julho 2005

Londres

É a guerra total mas não vemos o inimigo. Morrer sem combater, foi-nos reservada a pior das indignidades.

07 julho 2005

Album (1)



// André Bonirre

Jantar à beira rio (2)

Um homem come sozinho no restaurante à beira rio e à medida que vai comendo entristece.

Eu, que lhe tinha desejado bom apetite quando ainda sorria, pergunto agora: "- Está bem passada a carne?".
"-Óptima", diz ele, " choro, porque é tão triste comer sozinho à beira-rio".

Jantar à beira rio (1)

O rapaz conta uma história
a rapariga loura ri
anoitece e o morcego
lança um vôo frenético
passa um rapaz de BTT

todas estas coisas inúteis requerem
uma quantidade enorme de energia

05 julho 2005

Explicação

Hoje ao fim da manhã, quando acrescentava Solvstäg aos links do Mal, o template desapareceu. Fiquei com o meu fundo a fitar-me. Não foi bom. Às dezassete horas percebi que o Mal não voltaria. Há dois dias, um post sofrido tinha evanescido sem explicação. Um racista comentou qualquer coisa de incompreeensível. Uma tal série de presságios anunciava uma catástrofe. Mas nunca estamos preparados para a dimensão do desastre nem contava que fosse pela mão do Solvstäg que ele viesse. A metamorfose regressiva que o meu amigo ensaiva em outro lugar tinha-me caído em cima, em sessão única e sem pré-aviso. Perdi todos os links. Perdi a fotografia do escritor chinês de In the mood for love em que envergonhadamente me revia. Perdi os comentários dos meus amigos. Devo ter perdido mais coisas. O tempo o dirá.

Solvstag, o melhor blog depois do Melhor blog do Mundo

Não é O Melhor Blog do Mundo. Mas é o mais parecido com ele.

Loreta, a colher sangue no laboratório

A cor dela era a da areia dos desertos ao entardecer. Ele pensou nas Flores do Mal, na doença chamada melancolia e numa outra, que era uma anemia por falta de ferro e excesso de clausura, prevalente nas jovens de Paris, justamente afastadas, por pais avisados na imprensa burguesa, de pessoas como Charles Baudelaire, o inimigo da clorose. Quando lhe tentou falar, ah mas não foi fácil, ela respondeu com doce determinação:
-Eu não vou falar consigo da minha doença.

Daniel Dennet

A tradução do livro de Dennet, Freedom Evolves, que ontem classifiquei como o acontecimento editorial do ano, é uma edição de Temas e Debates.

Oscar Wilde

Preocupado com a elitização da luxúria Wilde propôs a masturbação como solução: está ao alcance de todos, é limpa, agradável e pôe-nos em contacto com pessoas interessantes, escreveu.
(lembrado por Simon Blackburn que a pedido da Oxford University Press escreveu um livro sobre A Luxúria, cuja tradução espanhola é agora anunciada no Babelia)

A Frase Da Semana

Todas as grandes obras já foram traduzidas ou estão a sê-lo.

(Carlos Monjardino, interrogado pelo Mil Folhas sobre que livros gostaria de ver traduzidos)

04 julho 2005

Os Homens de O Mal: Oscar Wilde



Oscar Wilde, um dos maiores escritores e dramaturgos do século XIX, foi levado a julgamento e passou dois anos numa prisão, acusado de sodomia. Morreu pobre, de meningite, numa pensão francesa, onde a sodomia era tolerada. Wilde era um socialista e escreveu textos quase desconhecidos sobre a pobreza e a propriedade. Autor de aforismos célebres alguns particularmente sábios: "Um homem pode ser feliz com qualquer mulher desde que não se apaixone por ela" (talvez traduza mal ou a memória me engane).

Os Homens de O Mal: Daniel C. Dennet



Daniel C. Dennet é um dos mais poderosos filósofos actuais. Esteve algumas vezes em Portugal, na última das quais, em Julho de 2004 deu duas conferências e uma entrevista para o Público. Tem pelo menos dois títulos disponíveis em português: Tipos de Mentes (Rocco, 2001) e A Ideia Perigosa de Darwin (Temas e Debates). A notícia do mês é a publicação da tradução portuguesa de Freedom Evolves, uma reflexão sobre o livre arbítrio.
Se nós somos o Sistema Nervoso do planeta Terra (do Sistema Solar), a consciência de Daniel Dennet é um momento avançado desse Sistema Nervoso.

O episódio de S. Jorge ( catalepsia)

Em certos momentos da noite
Dou por mim tão longe
Que podia escrever coisas terríveis

Mas o episódio de S. Jorge não
Não combati, alistei-me porque tinha de ser
e não combati.
Estive nas fogueiras onde as chamas não ardem
E os gritos das bruxas eram insuportáveis.
Escrevi.
Celebraram-me os versos
nas campanhas de Africa,
Passei os Pirinéus
ao contrário de Benjamim
que não cruzei.
Anos a fio fui às putas
nas casas de passe
que o clube discretamente
recomenda.
Odette de Crécy era o meu género.

Na paz do regresso
tentei estabelecer-me no comércio
do marfim, então legal:
E tive dias de sesta tranquila
Porém tu sempre me lembravas
e era S. Jorge
que trazias.

(créditos para Sandra Costa do Tempo Dual e para o Afonso do Bombyx )

03 julho 2005

Outro começo

Receio ter perdido para outro lugar o absolutamente necessário: à flor da pele, todas as palavras.

Canção (fragmento)

As meninas a sentir
Os meninos a fingir
Ainda está para chegar
Quem isto venha mudar.

( Trás-os-Montes, canção infantil)

Os homens de O Mal: Robert Fisk



Robert Fisk é o correspondente do jornal britânico The Independent para o Médio Oriente. Vive há vinte anos em Beirute. Foi muitas vezes uma voz isolada, quando os correspondentes ocidentais relatavam a invasão do Iraque do interior dos tanques americanos. Este fim de semana Robert Fisk assina uma crónica singular no Courrier Internacional. O que ele diz é que, visto do Médio Oriente, o discurso sobre a decadência e decomposição da Europa que os media não param de difundir nos últimos tempos, é obsceno. "Porque é que nós, europeus não somos capazes de compreender a nossa paz, a nossa satisfação, a nossa segurança, o nosso luxo extraordinário, o nosso nível de vida futurista, a nossa sorte quase divina, as nossas vidas longas e maravilhosas?" E conta que quando chega a Paris , apanha o RER, entra no Eurostar para Londres e olha para os passageiros, os seus "compatriotas europeus, vergados ao peso da sua existência no Primeiro Mundo, estafados pelo horário de trabalho mínimo, incomodados com as leis sobre os direitos humanos e protecções que as pessoas do local onde vivo nem imaginam existir. "
Robert Fisk diz depois que esta incapacidade em ver a nossa realidade vai a par com a euforia optimista com que olhamos para o Médio Oriente. "Mentimos a nós próprios sobre a tragédia do Médio Oriente e sobre o paraíso que é a vida na Europa".

Adriana Partiprim (Fim)

E já agora. A Calcanhoto estragou A Bailarina. A canção que num Verão carioca o Chico e os amigos escreveram para as meninas, entre as quais estava a Bebel Gilberto, saiu de plástico. A Calcanhoto já rapou o pentelho. A laser.

Adriana Partiprim (DOIS)


Os meninos faltaram. As irmãs sabem as letras de cor e deliraram. Para muitas foi o primeiro concerto da vida. O ambiente era de festa estival. Um prolongamento das cerimónias de encerramento do ano escolar nos colégios, com a mesma suave excitação e a confiança sorridente no futuro. Mas os rapazes não dão neste peditório. Nos raros casos em que foram arrastados pelas dinâmicas familiares, adormeceram ou puseram cara de aborrecimento. O concerto assinalou esse momento único na vida em que as meninas querem sentir e os rapazes ainda não precisam de fingir.

Adriana Partiprim (UM)



Na praça de armas do castelo de Montemor-o-Velho eram milhares. Pais e filhas. Adriana fez o seu show. O alinhamento de Adriana Partiprim, entrecortado por uma homenagem a Vinicius e uma gataria que Ferreira Goulart escreveu cinco anos atrás e ela musicou. Tudo bem, profissional, limpinho, o tempo adequado ao limiar de atenção das meninas, que tinham entre três meses e trinta anos. Passaram alguns anos desde que ela apareceu. É hoje uma profissional do show-bizz, competente, com bom gosto e sucesso.
As crianças gritaram-lhe: Estás aí Adrianinha? Mas ela não ouviu. Já não ouve.

02 julho 2005

Broche é Bom

É ao sábado que se nota mais. Aos sábados o Sócrates está muito sozinho, sem o vigoroso broche do Prado Coelho. O broche EPC é um broche que perde a vergonha e ganha consistência à medida que se repete. Um broche musculado, agressivo. O broche do intelectual que se surpreende a dizer as frases quadradas dos broeiros dos aparelhos partidários. E gosta. Gosta cada vez mais. A certa altura, na sétima semana de fellatio consecutivo, já não precisa de argumentação. O broche vale por si, o broche acabará na plenitude de broche em si, repudiando outra dialéctica, bastando-lhe tão só exibir aquilo que um intelectual repudia: a razão do mais forte, a frase prepotente. EPC empurrará todos os dias úteis Sócrates para o seu abismo, até ao dia em que se retirará, pudico, limpando os beiços socialistas com a mão, como os políticos envergonhados depois da sardinhada.

(alterado tendo em conta os comentários, 03/07/05 às 20:40H)

A um blog que começa (litania)



Presta atenção às palavras ou elas desenterrarão os mortos. As palavras circulam como vírus à procura de bocas, orelhas, pequenas fissuras na textura da pele e das mucosas, a tela que ofereces ao mundo. As palavras que foram ditas pela boca das mulheres a morrer nos trabalho do parto, da terra, da criação. As palavras das legiões de homens silenciosos nos barcos negreiros, as palavras dos caçadores recolhidos nas grutas antes da passagem da manada, as palavras do velho, ferido, que é deixado para trás, as palavras do pastor na transumância, as palavras que a actriz diz no camarim, as palavras da confissão extraída sob tortura, as palavras do verdugo ao ouvido da vítima. As palavras que não tivemos tempo de dizer aos que nos deixaram , as palavras sem sentido que Agustina atribui aos verdadeiros poetas, a palavra clara da mãe ao despertar, as palavras que escorrem da garganta das mulheres embrulhadas no prazer, as palavras que faltam à consolação, as palavras que os altifalantes sussurram nos aeroportos , as palavras de César ao ser apunhalado, as palavras doa que arderam nas fogueiras, a palavra que Ana não ouviu a Buhkarine quando o tiro lhe atravessou a nuca, as palavras que os padres dizem aos moribundos, as palavras com que as mães consolam as crianças, as palavras que o rei Sebastião ouviu a Camões, as palavras com que Borges descreveu o Aleph, as palavras com que Sherazade segurou a vida, as palavras que davam acesso a Tebas, as palavras que as hostes dos anjos se esforçam por ouvir, as palavras senhas usadas no castelo de fronteira por onde, um dia, os Tártaros hão-de vir, as palavras com que começas um blog, tão justas, tão perfeitas que tens medo que outras assim não voltes a encontrar.

Orgulho de todos, Señorías



“algún otro, hecho como yo,
ciertamente surgirá y actuará libremente”
.

Ontem Constantino Cavafis vivo, recordado pelo primeiro-ministro de Espanha.

01 julho 2005

À suivre


Estamos só a ensaiar. É só um jogo. Podemos perder. A vida verdadeira vem depois. E não é bem depois. É a seguir . Como numa novela de continuação. Agora as unhas afundam-se no braço sem que doa.

Ao Bombyx mori para ele ficar



Quando eu era Mariana tinha medo das borboletas. Fechava os olhos, ignorava-as. Via o dr Conceição a passar com a sua rede, o dr. Garcia com a casa forrada de belíssimos exemplares em expositores encomendados na Holanda. Mas, à cor vivíssima das borboletas, eram toleráveis as imagens desfocadas dos biólogos e dos coleccionadores. Um dia, um homem que perguntava coisas, perguntou-me do medo. E pela primeira vez parei à volta do meu medo das borboletas, isto na serra da Contenda, enquanto passavam, na periferia do meu campo visual, alguns exemplares horrendos, um deles roxo, a cor do pânico, se não sabem. Talvez atrás do medo das borboletas estivesse outro, inominável. O homem percebeu e deu-lhe o nome, para meu nojo e alívio. O meu inferno são as larvas, esses seres moles, coleantes, gregários, avançando com rastos de baba em direcção às vítimas. O meu horror às borboletas deve ter surgido no dia em que percebi que elas descendem de um casulo onde este ser imundo se encerrou, para alívio dos meus males, infelizmente a título temporário. O homem disse que talvez eu temesse, na borboleta, a brevidade da vida. Mas já não ouvia. Estava perdida nas metamorfoses regressivas. Via os bichos com asas a fazer casulos, de onde saíam opulentos, envelhecendo até serem ovos secos, partículas de um pó fértil, apenas em zonas cinzentas para lá dos rios.