31 agosto 2005

Douglas, o cavalinho canadiano


// andré bonirre

30 agosto 2005

Fantástica blogosfera

Eduardo a fografar os amigos no Agrafo

O fim do Verão por Polly na Diotima: "Oxalá o meu amor dure o Inverno inteiro."

Livros: In Vino Veritas, de Kierkegaard



O sistema Kierkegaard e as mulheres. Seis homens, num jantar irrepetível, discorrem sobre as mulheres e o amor. O filósofo dinamarquês (1813-1855), numa época em que o conhecimento das mulheres era restrito, demonstra uma grande capacidade de análise. Um Jovem que fala do amor como o cego sobre as cores (mas se o amor infeliz é assim a morte certa que feliz sou eu que nunca amei), um Costureiro que diz que a mulher pertence a um fantasma que nasce do conúbio desnaturado da reflexão feminina com a reflexão feminina, um Eremita: a coisa mais elevada que uma mulher pode fazer por um homem é surgir perante o olhar dele nesse instante certo; de seguida vem então a coisa maior que ela pode fazer por um homem, e essa é tornar-se-lhe infiel, quanto mais cedo melhor. Um Sedutor, que diz dos outros: os quatro de volta de uma rapariga não produziriam mais do que vento, e discorre sobre a burla e o casamento. Há enfim o narrador, William Ahfam, um heterónimo de Kierkegaard, cuja fala é quase ocultada.
Umas senhoras à mesa e teria sido outra a filosofia dinamarquesa do século XIX.

O livro tem tradução (do dinamarquês), notas e posfácio de José Miranda Justo e é uma edição cuidada da Antígona.


Este excelente blog fez uma recensão do livro que a Antígona lançou em Abril deste ano. Ver também no DN a crónica de Ana Marques Gastão.

29 agosto 2005

Anti-humanismo teórico



A miúda tem dez anos e naquele momento caminha ao meu lado no paul. É ela quem vê levantar-se nas tabúas os guarda-rios e ao longe a águia sapeira entre os amieiros. A certa altura espanta-se com a cor dos juncos. A miúda tinha visto um tourão, mas não sabe ainda o destino dos sapos. Quando, depois de uma pergunta sua viu a minha hesitação, disse com um sorriso condescendente: - Podes responder, não te preocupes. Eu não gosto do género humano.

As cinzas de Heitor

Quando eu era Heitor acreditava nas leis da história. Não sabia quantas eram, nem onde estavam escritas. Nem talvez lhes chamasse assim. Mas acima das pessoas reais que conhecia gostava de umas que estavam para vir. Não custa nada a acreditar quando se está à espera de alguém. No eléctrico, quando via uma pessoa que parecia especial, tentava que os meus sentidos memorizassem aquele instante: não apenas ela, o corte de cabelo, o livro nas mãos, o modo como mexia a cabeça. Quase nunca via os olhos de frente. Era o tempo em que as mulheres não tinham ainda os olhos levantados. E tanto como a imagem dela eu queria a luz do dia, os cheiros da linha quatro, a campainha de aviso, os homens pendurados na plataforma que subiam e desciam em andamento com invejável perícia. Viria a mulher e o dia. E depois do dia viriam os homens novos, solidários, calorosos e proprietários colectivos dos meios de produção. Uma crença destas povoava a minha vida quando era Heitor. Não era difícil colar as raparigas que ia conhecendo com a heroína fatal do meu destino, nem a organização clandestina dos operários e camponeses com o agente investido pelas leis da história para a marcha triunfal. Heitor morreu aos poucos. Guardei-lhe as cinzas num sótão óbvio. Como falo destas coisas devo ter dito a alguém. Hoje de manhã passei por uma das casas onde vivi quando era Heitor. Não me lembrava do local exacto onde escondera as cinzas. É horrível, digo-vos, ter perdido as cinzas do que fomos.

28 agosto 2005

Lê os meus lábios

Não conseguimos hoje entrar em nenhuma das simpáticas terras da província sem, depois dos terrenos queimados e das rotundas, nos depararmos com uns outdoors gigantes de cidadãos que por razões obscuras se quiseram assim dar a conhecer a um vasto público.
Eu percebo que não haja assessor de imagem brasileiro para todos. Mas o facto desta gente não ter amigos nem correligionários capazes de lhes dar um pequeno conselho, diz bem do grau de isolamento autista.
Mãos à obra, Vendas Novas vai continuar ou Vendas Novas vai-se reeencontrar, conforme se tente uma reeleição ou a alternância.
E em muitos lados, é dos meus olhos, ou o lábio descaído, os olhos exorbitados, a face corada dos alcoólicos?

Um muro, diz

O melhor dos muros actuais é o da Cisjordânia. Outro muro interessante é o de Melilla, em Marrocos, que nos protege dos sub saahrianos. Também há um muro pouco conhecido na fronteira sul dos Estados Unidos, junto ao México. Nenhum se compara ainda, nas funções e na eficácia, ao verdadeiro Muro, onde, nas palavras de Eric Hobsbawm, se realizou a vocação de obras públicas da antiga RDA.

Depois de Gaza a Cisjordânia

Fundamentais para se perceber o que está a ser decidido em Gaza, Jerusalém e na Cisjordânia são as crónicas de Alexandra Lucas Coelho (O Oriente próximo) e o texto de Amos Oz ontem publicado em El País.

VPV dá a linha mas a esquerda é mouca

Vasco Pulido Valente analisou no Público o cenário eleitoral das presidenciais e deu conselhos ao PC e ao BE. Por duas vezes se esforçou por provar que a estratégia de três candidatos nas primárias e tudo junto na segunda volta, dará a vitória ao candidato único da direita. Concordo com ele e acho comovente a sua preocupação em impedir o regresso de Cavaco.

O mistério do piano man

Há uns meses a história correu mundo. O site da BBC teve de fechar tal foi o afluxo de mensagens. Numa das nossas televisões, um professor de suspensórios, daqueles que costuma apresentar os ranchos folclóricos da Golegã, deu uma entrevista dizendo que se recordava perfeitamente dele. Trabalhara aqui na construção e quisera a sorte que lhe tivesse pedido boleia. Apercebera-se logo do carácter excepcional do jovem. Depois foi o silêncio e agora um tablóide, o Daily Mirror, conta o fim da história. Como sucede todos os dias desde há quatro meses, uma enfermeira entrou no quarto e, com o que Ian McEwan chamaria o tom condescendente das enfermeiras perguntou: - Bom dia. Então é hoje que vamos falar? E o rapaz louro respondeu : - Sim. Tenho vinte anos, sou alemão.
Esta foi a versão inicial do jornal português que leio habitualmente. Mas na versão completa do Mirror ele teria respondido: - Sim. Tenho vinte anos, sou alemão e gay.Dir-se-ia que o público português não estava preparado para aceitar de uma só vez toda a verdade.
A seguir foi de novo o silêncio e notícias que parecem elaboradas por um débil mental para uma plateia de cretinos. Os concertos que ele tocava interminavelmente eram afinal o matraquear repetitivo da mesma tecla, a equipa do hospital psiquiátrico vai processá-lo por abuso de confiança, o estado inglês vai apresentar-lhe a factura, etc.
Mesmo tendo em conta a advertência de Pio Abreu na introdução ao livro Como tornar-se um doente mental, é difícil não concluir que chegámos ao grau zero da construção dos mitos. Nem sequer há já preocupação em assegurar a congruência das histórias relatadas, o seu acompanhamento mínimo. Reproduzem-se as notícias do Daily Mirror, sem as convenientes aspas. O piano man era bom de mais para ser verdade. E a saúde mental britânica? As equipas multidisciplinares? Os milhares de jornalistas que escreveram sobre o acontecimento?

26 agosto 2005

Memórias do Cotovelo

Há uns anos, havia na rtp um programa a que chamavam Travessa do Cotovelo. A coisa acabou mal. Uma senhora chamada Rita Ferro, rodeada de uns senhores decrépitos, com a ousadia que as despedidas e as baixas audiências dão, brindavam ao salazarismo. De resto lembro-me de um ou outro lampejo de qualidade. Maria João Seixas (MJS) quis vir lembrar que esses momenta se deviam a uma colaboradora chamada Helena Matos. Embora seja duvidoso que a história vá registar tais minudências devemos agradecer-lhe a referência. Já o resto não se percebe. Ou percebe-se bem demais. A esquerda portuguesa está tão mal que qualquer identificação com ela se confunde com o culto da ICAR. Mistério dos mistérios.

(este post refere-se a um artigo de MJS publicado na folha do sôr zé manel furnandes, sem link porque a folha deixou de estar disponível. O episódio só merece registo para se perceber o estado de dissociação mental a que chegou a esquerda do presidente. Quanto a Helena Matos, não se preocupem, porque o responsável pelo Correio dos Leitores do Público já organizou o desagravo. Os putos da direita ainda vão ter os quartos forrados a Helena Matos.)

24 agosto 2005

Educação Sentimental

A miúda tem 15 anos e está apaixonada. Eu disse-lhe para ela desinvestir, por duas ordens de razões: se está tão envolvida neste momento, se o que sente é tão grande e poderoso, não pode nunca dizer sem mentir essa frase que é um dos ingredientes máximos do amor – amo-te hoje mais do que ontem. Além disso quem assim agora tanto ama, que sentimentos pode dedicar ao que encontrar depois.

Aos 15 anos o amor é grande e depressa. Numa semana pode ser tudo outra coisa. Além do mais ela não há-de estar nada preocupada com o que vai encontrar. Hoje é sempre mais do que ontem, pelo menos parece.


A miúda ouvia em silêncio. Porque é que lhe corria uma tristeza determinada? Então voltou-me aos ossos o que se sente aos 15 anos.

countdown #12*

Aaaaaaahhhhhhhhhhhhhhhh!

e que permaneça o grito se as aves feridas
continuam a morrer entre as árvores

............................................as aves feridas
.................................entre as árvores

............................o grito.....as aves
..........................................as árvores

..........................................as............feridas
continuam a morrer

........permaneça o grito
...................................entre as árvores

(Sandra Costa , no Tempo Dual)

A vida continua



Nem tudo foi mau na primeira noite de fogo. Faltou a luz muitas vezes. Numa delas ele ganhou posição da frente dos meus pais até perto de mim, deu-me um beijo e senti-lhe a mão, atrevidota.


(Da caixa de comentários, assinado Leonor)

23 agosto 2005

Falta pouco


Bruce Nauman



Faltam meia dúzia de libras esterlinas
Ver dançar Pina Bausch
Acabar finalmente La Recherche

Falta rasgar os cadernos
E alguns papéis
E deitá-los no vidrão da reciclagem

(Falsa consciência ambiental
Ou pudor de usar o fogo
Nestes dias)

Falta apagar as pastas do computador
Fazer delete all sem ler de novo

Falta encostar-me ao pescoço de Jammes
E depois dizer-lhe:
Pára, deixa-te de sentimentalismos
E dos ruídos estranhos que fazes
Se estás triste

Falta um charuto cubano
Um whisky irlandês
Aquela coisa no meio

Coimbra



Vale de Canas, noite de 21-VIII-2005.
Um médico perante uma septicémia, sem antibióticos. Resta-lhe fazer um prognóstico animador (HCM)


Copiado do Alcatruz

22 agosto 2005

Coimbra

"Dona Maria de Lourdes regressou dos Festivais de Verão. Poisou a mala, lavou os olhos, colocou a máscara de cirurgião. "Pareces o Michael Jackson", disse a filha, "cala-te e põe também", respondeu D. Lourdes. A cidade era um arroto de cinza com uma bolinha vermelha por cima, tipo ponta de cigarro. De noite, os loucos foram evacuados. Os outros ficaram."

Do Miguel, O Olho do Girino

Coimbra


No teu cativeiro, meu velho deus Hórus, incapaz de voar.
Eu seria o mais fiel dos crentes se para que te salvasses fosse preciso acreditar .


(Ontem, domingo entre as 14 e as 24 horas ardeu a Mata Nacional de Vale de Canas. Na encosta que desce do Tovim ao Mondego, era um dos poucos parques verdes da cidade. Nas visitas escolares, citando um biólogo da terra, os professores garantiam que uma das suas árvores, com 85 metros, era a maior da Europa. Alguns meninos aprenderam a correr nos seus trilhos. No coração da Mata, um pequeno cativeiro de aves de rapina dedicava-se à recuperação de aves feridas, e tinha ontem de lotação dez águias e falcões. No sábado um incêndio lavrara toda a tarde e acalmou-se a algumas centenas de metros da Mata. No domingo, às doze horas, o fogo reacendeu-se, inicialmente um pequeno foco na margem esquerda do rio, junto à cortada para Miranda . Não havia ninguém para defender a Mata. )

Coimbra



Do Choupal até lado nenhum. A Lapa ardeu.

Coimbra



No dia dois de Abril fomos a um visita de Estudo a Vale de Canas. Foi a primeira vez que a maioria dos alunos se deslocou à Mata de Vale de Canas. Visitámos a casa do fogo, que era construída em madeira e xisto; vimos também algumas ávores, que são as maiores de Portugal; visitámos as aves de rapina e por fim fizemos um herbário com um jogo.
Renato (Escola 1 de Carpinteiros)
.

Coimbra

Coimbra acordou em alerta verde. Já ardera tudo.

Coimbra

Como na Idade Média. O fogo , a peste, é um castigo de deus. Temos de castigar os incendiários, os envenenadores.

Coimbra

Quando as cinzas lhe caíram em cima o governador civil activou o Plano Distrital de Emergência.

Coimbra

Quando as ovelhas ardem alguém grita correndo contra o vento.

Coimbra

As ovelhas morrem todas viradas na mesma direcção.

Coimbra

Duzentos bombeiros envolvidos, treze carros, dois helicópteros. Corporações de três distritos. A ligação entre o INEM e os Bombeiros foi excelente.
Ardeu tudo.

Coimbra

Ardeu a Mata Nacional de Vale de Canas. Soltaram as aves do Hospital?

20 agosto 2005

O silêncio de deus em Gaza

Eles lutaram no Knesset. Mobilizaram os apoios em Israel, na Europa e nos Estados Unidos. Anunciaram a sua resistência. Apelaram à desobediência dos soldados. Quando tudo pareceu falhar juntaram-se na sinagoga para rezar. Aquele deus não os ouve. Vejam como são retirados um a um, os mais bravos, sem que o ar estremeça. Aliás aquele deus não dá de si há muitos anos. Quem se lembra das suas últimas promessas? Viu o seu povo ser expulso, perseguido por motivos fúteis, metido em comboios sem regresso. De um deus destes nada se pode esperar, mesmo se se trata de fiéis assim, gente boa, que vive como há dois séculos faziam os avós dos avós, em pequenas cidades do Leste da Hungria, da Ucrânia, da Rússia, das quais hoje não resta a praça, nem o nome. O deus dos palestinianos também não é deus em que se possa apostar. Onde estava ele há vinte e cinco anos? Do deus que consentiu a retirada do Líbano, o extermínio de Shatila, a derrota infame dos seis dias, só se pode esperar uma pequena vingança, a retirada unilateral do inimigo. O deus que está a dar não está nessas terras cheias de lixo e gente que sofre. Olhem para Colónia. Deus está em Colónia. Desce o rio Reno que é um rio a sério, com água, barcos, energia. Num dos barcos vem um homem de branco. Nas margens estão jovens que nunca conheceram fome, nem guerra, nem atiraram uma pedra. Rezar é bom. Os escravos sempre encontraram na oração algum alívio. Mas se querem vitórias rezem a um deus que tenha alguma possibilidade de as assegurar.

O Programa do Governo



Ardeu tudo em volta. Ainda não se pode ver. Mas quando assentarem as cinzas, brilharão , incombustíveis, os moinhos da energia eólica.

Boris Vian

Do meu quarto de banho no hotel vem um barulho como se estivesse alguém agonizando.
- É ar condicionado, dizem-me.
- Eu sei, mas porque é que não deixam a criatura respirar à vontade?

(This is not) The end of the affair

O Aviz não prolongou a temporada e Pedro Mexia não escreverá mais Fora do Mundo. Hoje, na Antena Um, ao meio dia, ao longo de estrada onde tudo ardia, Francisco José Viegas entrevistava Pedro Mexia. Havia vento e um calor insano
and in short, I was afraid.
Mas aquela era uma conversa protectora. Antes de haver blogs, antes de Eliot e outras observações, já Pedro Mexia era um dos meus poetas favoritos. Os textos de Mexia na Coluna Infame eram fabulosos. Os invasores do Iraque não mereceram nunca uma escrita assim. Depois o Dicionário do Diabo e Fora do Mundo confirmaram um diarista invulgar. Mexia voltará porque não se esgota no colunismo nem na participação televisiva.
F.J.Viegas teve um papel importante no nosso bloguismo. Um entusiasmo contagiante para descobrir a gente de qualidade que há dois anos começou por aí a escrever, bom humor, um talento de polemista que a sua função de apresentador encobre. Tudo isto nos fará falta enquanto não abrir a nova época.
Por isso, embora ardessem em volta fogos não recenseados, a seguir viesse seguramente um Sócrates insensato que saltou do Quénia para a campanha eleitoral permanente, sentia um certo conforto, porque alguém tinha ainda tempo de antena para dizer, como em The Love Song of J. Alfred Prufrock:
“This is not what I mean at all.
This is not it, at all”.

19 agosto 2005

trama



// andré bonirre

18 agosto 2005

Agenda: no domingo às 12:05h

No próximo domingo às 12:05h (repete às 23h )o programa da Antena 1 de José Nuno Martins estará a cargo de Marie -Thérèse Faidherbe.
É grande expectativa em torno das escolhas musicais de Marie-Thérèse.

A imitação da morte

Vai ser sempre assim. Podemos sempre voltar para aliviar a dor dos que ficaram. Às 3:57 pm de ontem o bicho da seda voltou.

17 agosto 2005

Terra do Fogo

O que faria se estivesse em férias e a empresa de que sou presidente do conselho de administração ardesse? A faculdade a cujo Conselho científico presido? O Hospital, a Biblioteca, o Museu de que sou director? Se ardesse o meu pinhal, os meus campos de cultivo? Quando chegasse já tudo teria ardido (mas a Pampilhosa da Serra arde há cinco dias, tempo suficiente para regressar da Nova Zelândia ou das Fidji). O vice-presidente disse-me que não era preciso voltar. Não tenho nenhuma preparação especial para enfrentar os fogos. Mas seria capaz de continuar as férias? A minha presença seria simbólica. Mas simbolizaria o quê? Que estaria com os que trabalham comigo a olhar as cinzas, avaliar os prejuízos, confortar os feridos, chorar as perdas irreparáveis, ver se os apoios necessários chegam com a celeridade prometida.
JMF, geralmente lúcido na Terra do Nunca, escreve hoje no Diário de Notícias um editorial de que se arrependerá, se usar para o poder socialista o mesmo rigor analítico que utilizou com os governos anteriores. E não precisa de esperar um ano.

Festa de Verão da ICAR

Em Colónia serão 400.00 jovens e 7.800 jornalistas. Os jovens que saíram de Portugal querem ser vistos como peregrinos e não como turistas. Peregrinos ou viajantes. Aceitamos que sejam. Mas não se esqueçam que atrás de Bento XVI está Ratzinger. O escolhido pela ICAR para estas festas de lazer (holi day) que sempre lhe foram tão queridas. Nestes dias pratiquem a castidade, se é essa a vossa opção. Mas com duas condições: não se pensem superiores aos vossos colegas que curtem e desconfiem de qualquer relação entre a suspensão da sexualidade e os “grandes problemas do nosso tempo”.
E já agora uma precaução: ele pediu-vos para porem em relevo o sinal da cruz nas ruas da Alemanha. Guardem-no nos vossos corações. Muita cruz chama muito crescente. E esse não pode ser o novo vento que sopra da Alemanha.

16 agosto 2005

Nas ilhas os amigos

Os meus amigos estão em ilhas
Com o mar pela frente
Sempre em maré alta
Usam pequenas tatuagens
Como são lindos, musculados, jovens
A mancha vai-lhes bem
Ao fim da tarde
Embrulhados em panos
De cores garridas
Os filhos adormecem na areia
Quase não comem
Bebem o sumo do maracujá
E estão leves como o vento
Que sopra nos canais
Apanho tanto sol
Que me ardem as meninges
Leio só poetas felizes
Palavras ingénuas
Como as palavras dos amigos
Cegos pela brandura
Com que nas ilhas
Os dias anunciam
O fim do verão

15 agosto 2005

As perguntas difíceis

Porque é que a água do mar é salgada? - perguntou a miúda. Expliquei-lhe que todo o sal é da terra e que as águas do mar se temperam nos vales submersos. A miúda disse que o rio Amazonas, que é largo como o mar, havia de ser assim salgado. A minha ignorância é grande relativamente às coisas simples e a miúda ainda não tem idade para gostar de ser enganada.

Saudades de Sampaio

Sampaio condecorou os U2. Aqui está uma coisa que Cavaco teria alguma dificuldade em fazer. Os assessores do Presidente lembraram que, como o tema era a fome no mundo, a Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento tinha de ser convidada para a cerimónia.

Rubem Fonseca

O último livro de Rubem Fonseca (crítica de Veja) é tão decepcionante que consta que lhe vão tirar o Prémio Pessoa.

Lição de Francês

Em Gaultier
Não se lê o tê
Em Thibault
Nem o lê nem o tê

Em ensoleillée
Só o primeiro lê
É que se lê

Rosé não tem tê
Corset tem tê
Mas difícilmente se vê

14 agosto 2005

É só o começo

Alguns deputados do PT choraram copiosamente quando o publicitário Duda Mendonça revelou ao Parlamento a existência de contas no estrangeiro que demonstram o envolvimento da cúpula do partido ( e talvez de Lula) no episódio de compra de deputados conhecido por mensalão. É talvez por aí que se deva começar. Chorar copiosamente.

11 agosto 2005

A alegoria do Henrique

10 agosto 2005

Mais do momento presente



"Quando morremos perdemos só o momento presente, pois o passado deixou de existir e o futuro ainda não chegou. Olhemos em volta e perguntemos: merece realmente a pena guardar este momento presente."


Marco Aurélio (Meditações)

A Mania



A.C. Grayling diz que os gregos distinguem entre agape, o amor altruísta, desinteressado, e o amor entre camaradas de armas, storge. Ao amor entre irmãos ou ao flirt casual chamavam ludos . Ao entendimento de longo curso, pragma. E a paixão romantica era designada de mania e desprezada por ser obsessiva, amarrar o corpo ao domínio de eros, exterior à razão.
Já C. S. Lewis distinguia, na emoção amorosa, a afeição, a amizade e o amor erótico.
À agape chamaram os latinos caritas. Esta foi a palavra que Paulo usou na epístola aos Coríntios e que Fernando Pessoa se queixava de não ter. É provável que fosse o amor prático de Kant. Não sei as marcas desta agape na nossa fala de hoje. Já a caritas degradou-se. Nenhum amante reclamaria a caridade. Mesmo na sua força original, este amor não existe, clama o gene egoísta. É o mais falso dos amores.
ludos é simpático. Ligeiro. Um amor de verão. Que usa roupa leve, nada esconde, nem promete. Só a bailarina não quer ludos.
Storge é o amor homossexual antes de sair do armário. A caça, a pesca, a mesa do café, o futebol.
Pragma é uma chatice. Faz férias no triângulo Viena-Budapest-Praga, em Punta Cana, nos resorts do Nordeste brasileiro, inunda o litoral menos as praias do Ruy Belo, onde o sol é ameno, há vento e a memória de uma mulher que ficou em Castela.
A mania destrói, rebenta as mãos, os lábios, a testa.

A mania são as bexigas loucas. A mania são caimbras abdominais. Vómitos, náuseas, embarcar sem sair do cais.
A mania é a insónia cintilante. É a tesão que dói. A mania é a baba que rebenta o casulo.
Vem a mania e ludos empalidece.
Storge é uma máscara da mania, quando falta a coragem.
Agape é a mania de Sófocles. Dos velhos, timoratos, doentes, funcionários.
A mania é quando o ser transborda de si mesmo para o outro (Barthes).

O nome certo do amor é a mania.

08 agosto 2005

oito de Agosto

Um dos seus bloggers favoritos chamou-lhe lírica incorrigível e ela fez jus a esse nome inicial. Ela sabe quando a brisa é só um pressentimento das ramadas mais altas. Ela detecta os venenos que param a circulação, rebentam nos sacos ou se acumulam na raiz dos cabelos. Mas o seu coração não conhece o mal. Ela cuida do sem abrigo. Sabe que somos antigos como os animais nossos irmãos, as árvores, os fungos e as bactérias, e como elas destinados a desaparecer sem outra notícia. Mas o seu rasto é decifrável porque escreve sempre as letras com que o dia se declara novo.

07 agosto 2005

Adições

A superioridade das armas

Quando o Atahualpa foi preso pelo conquistador a superioridade do espanhol era o aço, as armas e os germens mortais que levava com ele. O padre que brandiu ao índio as sagradas escrituras pensava de outra forma. Esta ilusão continua a cegar-nos.

Fernandes lança Fat Man sobre Nagasaqui com a ajuda do companheiro Vasco



Às vezes penso que nunca mais vou escrever sobre a política. Que Sócrates e Vara, Santana e Guedes, o emperuado à espera de nova oportunidade, o lado esquerdo da bancada, são um problema vosso.
Mas há dias em que não se pode.
Eu sei que isto onde escrevo não é nada. Uma passagem para lado nenhum de alguns amigos que provavelmente pensam o mesmo.
Mas houve sempre demasiado silêncio neste mundo.
E escrever é refazer o mundo, fazer de conta, opor à força a resistência da reflexão.
Como a esquerda não pensa ou não tem onde, tem vergonha ou está de férias, os amigos da bomba atómica andam aí à solta. Ontem o Fernandes, hoje o Pulido Valente. Compreende-se o à vontade. Sessenta anos é muito ano. Sobretudo se não há sobreviventes. Ou se falam japonês.
Asseguro-vos: debaixo dos destroços de Hiroshima que as fotografias a sépia repetem, há corpos irreconhecíveis. São os corpos dos que tiveram a felicidade de morrer no primeiro minuto. Porque à medida que nos afastamos do epicentro, aumentam as penas de ter escapado.
O Japão era um país feudal, governado por uma oligarquia despótica e que dera provas de imensa ferocidade em todos os países ocupados. Okinawa tinha sido terrível. Mas o Japão estava sozinho quando na Europa já se tinha festejado a libertação. Hitler, Mussolini e os seus cúmplices mortos, em fuga, ou a branquearem os alinhamentos anteriores, sem iniciativa.
A arma atómica era uma coisa nova. Não se conheciam os efeitos, diz-se. Mas os cientistas que nela trabalharam- e que devem ser considerados criminosos de guerra, conjuntamente com os políticos e militares que deram a ordem da sua utilização - sabiam com que materiais trabalhavam. A radioactividade era conhecida, bem como a existência de efeitos a médio e longo prazo. O alvo e o ponto de deflagração das bombas foram escolhidos em função da maximização dos efeitos letais na população. Não apenas os objectivos eram civis como estava a ser utilizada uma arma sem paralelo nem correspondência histórica. Não que a história abunde de ética. Mas os fins não justificam os meios. E se sessenta anos não ensinaram nada aos nossos historiadores e líderes de opinião temos que tirar conclusões. Eles hoje não se opõem ao terrorismo islâmico por ser terrorista mas por ser islâmico. Fosse ele em favor dos sagrados objectivos do livre comércio e da democracia e seria justificado, pelos vistos. Os neo cons teorizaram assim quando propuseram a guerra preventiva. Os panfletos das escolas corânicas não devem dizer coisa muito diferente.
No fim da segunda guerra mundial o campo aliado lutava contra o Eixo e lutava entre si para assegurar posições no futuro. Os golpes que vibravam à Alemanha e ao Japão tinham sempre um segundo objectivo estratético. Os soviéticos entraram na Alemanha com a bandeira vermelha e na caminhada de Berlim não se distinguiram muito das hordas nazis no seu solo, uns anos antes. O bombardeamento de Dresden pela RAF foi um crime. Mas usavam as mesmas armas dos inimigos. No Japão, há sessenta anos cometeu-se a outra face do Holocausto. A incineração dos amarelos. Lamento ter mostrado as cinzas. Não é coisa que se faça. Estes debates devem ser limpos, como as acções de formação nas universidades americanas, para ex- esquerdistas convertidos ao escutismo.
Acontece que ter estado do lado vencedor não significa que deixe de se considerar a vida de Suzikura Aboe, uma rapariga de dezasseis anos que morreu no Hospital Central de Hiroshima (escolhido para o epicentro da deflagração), tão digna de apreço, tão barbaramente ceifada, como a de Anne Frank morta de exaustão e desgosto num campo perto de nós.

A Frase

...Parece que saímos de um grande desastre, ou de uma guerra, ou das mãos de um tirano sádico e pirómano.


Vasco Pulido Valente, O Público de 06/08/05

Ainda Hiroshima




Nunca ouvimos a voz dos sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki. Nos primeiros tempos porque eles não escreveram. Como no Holocausto, o que sobrou foi o silêncio aterrado, o repúdio das palavras. Nunca se fora tão baixo na nossa condição e não havia nomes para aquilo. Um conjunto de grandes escritores ocidentais escreveu depois sobre o Holocausto, e depois sobre o Gulag, os campos de reclusão e extermínio. Mas do oriente demorou a chegar. Ontem no El País (de novo on line como se lembrou na blogosfera) publica-se um registo de sobreviventes que só agora ganharam a coragem de contar. E um excelente artigo de Emílio Subyrats sobre o silêncio das palavras. Aí se recorda que os cientistas, militares e políticos que produziram a bomba, esses super assassinos do século 20, desconheciam os seus efeitos reais. E que as primeiras equipas médicas a chegar ao campo de morte não iam aliviar o indizível sofrimento, mas descrevê-lo. As imagens de fotografia aérea que possuímos daquela devastação, colhidas pelo exército americano, reflectem o mesmo interesse científico. Truman referiu-se àquele dia como um grande sucesso. Que um jornalista ocidental que se reclama do pensamento liberal, um entusiasta agora mitigado dos neo cons, tenha proposto o exercício intelectual de nos pormos na cabeça do broeiro que calhou substituir Roosevelt, e isso não tenha tido reacção visível neste país em decomposição, parece-me preocupante.
Paul Celan escreveu, ao longo de anos, um poema doloroso que João Barrento traduziu e explicou. Algures dizia assim:

Mãe, eles ficam calados.
Mãe eles consentem que
A ignomínia me difame.
Mãe, ninguém cala a boca aos assassinos
.


Foto : Hiroshima, em 1952
Paul Celan, A Morte é uma flor, tradução, notas e posfácio de João Barrento para as Edições Cotovia, Lisboa 1998.

06 agosto 2005

As causa da morte



Um corpo foi encontrado no trem de aterragem
do Instituto de Medicina Legal
de Casablanca .
O mais provável é que o homem tenha morrido
na barriga do Boeing 747 .
A Royal Air Maroc
pediu ajuda a peritos de Bruxelas
para apurar as causas da morte.

Chegou ontem gelado
no sítio onde o trem de aterragem recolhe.

(Dos jornais, Agosto de 2005 com o título A Descoberta)

Grande é o deserto

Quando não sabemos o que fazer de nós

Lisboa a arder

O que sentimos quando dizemos que tudo arde.

Robin Cook



Ministro dos Negócios Estrangeiros do governo trabalhista, demitiu-se como protesto contra a intervenção britânica no Iraque, em 2003. Agora morreu, ao caminhar nos montes de Ben Stack, na Escócia.

O tripulante Fernandes


A bomba de Hiroshima, 60 anos depois, lançada pelo José Manuel Fernandes. Fernandes revisita o ano de 1945, depois da queda de Berlim e interroga-se, e a nós todos, sobre o que faríamos no lugar de Truman. Não chega a responder. Mas conclui com uma citação relativista. Naquele contexto…
O contexto era o da guerra absoluta. Na guerra absoluta os Estados Unidos tinham desenvolvido antes dos outros a arma absoluta. “O investimento colossal dessa investigação …não autorizava que um presidente não tirasse partido da nova arma.” Esta justificação é a do poder imperial. Porque é que invadiram o Iraque? Porque se tinham preparado para o fazer e tinham os meios, lembro-me de ter ouvido na altura. Fernandes diz que se recusa à contabilidade dos mortos para justificar a bomba. Mas fá-la. E nessa contabilidade, como se sabe, os nossos mortos contam sempre muitas vezes.
Há quem pense que a bomba atómica foi lançada para mostrar quem é que mandava, no mundo que emergia de Yalta. Também aqui Fernandes encontraria um motivo aceitável para largar a “Little Boy”. Há sessenta anos o Enola Gay levava doze tripulantes. Nenhum sabia exactamente o que ia largar sobre os 350.000 habitantes da cidade de Hiroshima. Hoje Fernandes sabe. Merece um lugar de destaque no B-29.

Hiroshima


Relógio
Kengo Futagawa (59 anos) atravessava a Ponte Kannon ( a 1600 metros do hipocentro ) de bicicleta. Saltou para o rio, terrívelmente queimado. Voltou para casa mas morreu a 22 de Agosto de 1945.

( do Museu de Hiroshima)

05 agosto 2005

Uma pausa para arder

Ante a nossa indiferença arde o país. Arde o tojo e a urze, o rosmaninho e a carqueja, aquilo a que vocês chamam o mato. Ardem os carvalhos e as azinheiras e arde sobretudo o eucalipto que cresceu nos terrenos ardidos. Ardem as pequenas espécies: as abelhas, a lesma e a salamandra, o ouriço e os roedores do campo. Morrem aves e a primeira a morrer é a perdiz. Morrem velhos cujas cinzas ninguém reclama. E um bombeiro pago a dezassete euros ao dia de fogo.
Quando vierem das praias não olhem para os lados. Pode o vosso olhar apiedar-se. É uma questão de decoro. Eu não volto a escrever enquanto arder assim.

Um Quarto de Loreta



Hoje, às 22h no Museu dos Transportes, Coimbra Dança, com os Morphodidius

05.08.05

Façam de novo valer as palavras. Hoje é o dia.

Antologia de O Mal: Helder Moura Pereira

(...)
Por causa do mar o adesivo que me tiraste
para ver como era por baixo. Assim já não vou
para a praia, assim não sei se sou tuberculoso.
mas não faz mal, fico em casa contigo.

(in Mútuo Consentimento, Assírio & Alvim, 2005)

04 agosto 2005

Entristecer nos ossos



Se ao menos eu emagrecesse.
Fosse mineral a tristeza.
Anoitecesse sem sobressalto às nove.
Sentisse alguma coisa
como diz que sente o rapaz dos Correios.
Pudesse ter férias de mim,
três dias por cada ano.
Envelhecesse na relva
mas com a Lise Ekhdal ou a Carla Bruni.
Ou nos bosques ao sub cheiro das hifas.
E todos entregues à serenidade dos gestos.
Mesmo que fosse um jogo.
Se tivesse que ser um jogo que fosse o do amor.

03 agosto 2005

Numa só noite



De manhã ao acordar dei conta
Que meia cara caíra numa noite
Justamente a cara progressista
Onde usava o creme de promessa

E era esse o olho com que via
O lábio de beijar a fronte lisa
Era aquela a língua de provar
A narina onde cabe o tubo sete

Era a face que levava confiante
Barbeada a preceito penteada
A cara que primeiro te virei
Para esconder a meia cara morta

02 agosto 2005

A força imensa


Mas porque é que Katherine F.,
só porque chorava,
havia de saber mais do que a miúda do ginásio?
Arriscam-se os gestos do amor
e às vezes
ganha-se.

(foto: Isadorita por Mário Martins)

A força imensa



Ele nunca soube bem interpretar os sentimentos. Ah não, todos os sentimentos. O medo, por exemplo. Uma coisa tão simples, tão elementar. Talvez sentisse medo em algumas situações. Mas eram simultaneamente as mais envolventes, as que recordaria mais. E nunca nenhum medo o tolheu. Gostava da professora de química. E da filha da professora de química. Alguém que lhe ensinasse a diferença entre esses gostos. Uma era da idade dele. Podiam andar. Outra era grande. Podia-a admirar. Admirar com ternura, ouviu dizer. Pôs então um nome àquilo. A ternura. A primeira vez que beijou uma rapariga foi num ginásio abandonado. Ela queria mais, ensinava caminhos à sua mão espantada. Aquilo era entusiasmante. Mas era menos que a ternura. Não era das mesmas regiões do peito. Talvez não fosse mesmo do peito. Havia que dar um nome àquilo. A rapariga disse-lhe que era o amor. Ele percebeu que devia, daí em diante, chamar amor ao desejo das mulheres. Mais tarde o amigo escritor havia de lhe dizer: “As mulheres querem ser amadas (eles não conheciam então nenhuma mulher, só meninas que tremeriam no caso improvável de serem chamadas de mulheres). As mulheres querem ouvir a declinação do amor”. Pensou que as mulheres eram seres com uma vida secreta a que só os poetas acediam. Era simultaneamente estranho, quase ridículo, difícil de acreditar. As mulheres, além de roupa interior, tinham essa particularidade inimaginável de quererem a todo o custo ser amadas.
Nunca diria amor a uma mulher. E foi fiel a essa determinação de juventude. Mas as mulheres que querem ser amadas ouvem amor em todo o lado. É perigoso estar por perto. São perigosos os gestos do amor. Tal como o estrangeiro que salta a divisória no metro de Londres merece ser abatido com sete tiros na cabeça, assim o homem deve ser reconhecido, que segura nas suas as mãos de uma mulher.

Até que conheceu Katherine F. Ela lia tão bem os seus sentimentos que chorou no primeiro dia em que se viram. Quando a questionou, surpreendido, ouviu-lhe dizer que era por perceber o que ele sentia. Foi tão surpreendente, encontrar alguém capaz de lhe nomear o sentir.
- Diz-me o que sinto. E ela disse: - Divertimento.
- E agora? - Angústia.
- E agora ? - Júbilo.
Até que um dia ela voltou a chorar quando ele a olhava fixamente nos lábios.
-E agora? E ela disse: – Amor.
Era o amor, a força imensa, que fazia com que olhasse dessa maneira. Como podia deixar de acreditar. Ia explodir, mesmo que disparassem à cabeça. Haveria um só morto. O homem estúpido que fora, agora só aquela capa castanha que no verão alguns bichos largam, quando se preparam para voar.

(Isadorita, foto de Mário Martins)

01 agosto 2005

O lugar onde se escreve o relatório verídico da tua morte (Borges)





Se escrevesse a morte, se se lhe antecipasse, sairia a ganhar.

A dor pré cordial, a fina dor, metálica.
Depois excruciante, a dor expansiva,
que inunda o peito e reflui,
e quando volta é para cegar,
deixando sem pestanas
na visão as pupilas aterradas.

A consciência retira-se, prudente.
Convém não assistir à convulsão,
o líquido que foge às comissuras,
o tremor que é o último soluço.