31 julho 2003

Na visita: A.

Não teve tempo para alisar os cabelos, pôr blush, disfarçar as primeiras rugas nos cantos dos olhos. E assim, sem saber, traz a sua cara de criança, a cara com que acorda, com que há-de espantar um homem que ainda não conhece.

Baudelaire visita Sofia nos C.E.

Foi o velho que se sentou no banco ao lado dela? Foi concerteza ele quem primeiro falou. Ela compunha um sms. Seria ele assim tão velho? São as mãos dele que ela recorda? Ou as do ornitólogo que tinha encontrado na véspera, no Congresso da Intersecção dos Saberes onde o seu poster foi tão aclamado?
As palavras que o homem lhe disse foram: "oh toi que j'eusse aimé oh toi qui le savais!"
Mas ainda não tinha chegado o tempo de perceber.

Despertar confusional

Libertaram-me para um trabalho sujo. Estou nas ruas com a sensação de não ter deixado a cela. Tenho de vigiar o quê? E até quando?

Programa

Houve um tempo em que me proibiste de falar na morte. Logo nesse dia levaram-me por um corredor que tinha afixado posters de uma associação benévola com estes dizeres: " A morte por afogamento / é rápida e silenciosa."
Pareceu-me um programa aliciante.

Metamorfose.

Leio as anotações dos meus cadernos de capa preta, registos avulso de dias tão próximos, antes de A Natureza do Mal. E não me reconheço. De tal forma que se copiasse para aqui aquelas palavras estaria a citar sem sentir. O pior é que não percebi ainda em que é que me estou a transformar.

30 julho 2003

Passarinho ou ave de rapina

A realidade sociológica do autor dO Dicionário do Diabo centra-se nos cafés, redações, tertúlias e outros círculos de Lisboa. Felizmente para nós o poeta de Avalanche tem um território mais alargado.

Pesadelo

Nos quartos estreitos As mulheres tinham o corpo incendiado e os homens dormiam o sono pesado de um alcoól pouco amável Ontem À hora em que escrevia

Sophia

Quando morrer voltarei para escrever os instantes que não vivi n A Natureza do Mal.

Alguma certeza deve existir

" Alguma certeza deve existir.
se não de amar, ao menos de não amar."

Dylan Thomas, na cabeça de Antonioni, citado por Vila-Matas

Tragédia tropical

Em Santiago de Cuba, com o Forte de Moncada como cenário, o ancião, "em claras dificuldades físicas", falava ao povo arregimentado. Uma câmara passava entre as pessoas que agitavam bandeiras em silêncio. E o olho da câmara era como um vento de tragédia.

Tarde de glória para Ravel

O funcionário público pago pelas verbas que o Orçamento do Estado destina às regiões mais pobres da Periferia visitou uma a uma as cinquenta barracas da Festa e em todas bebeu um copo que os populares alarves lhe estendiam. Depois subiu ao palco como um robô ébrio e ao som remasterizado de Ravel disse o que as carótidas entupidas permitiram. Desde Gainsbourg que o Bolero não vivia dias assim.

Rede

Porque tremo se tu escreves?
Desta cela,
Um lugar tão secreto como o teu.

Que faremos quando tudo arde?

No Outono caminhamos nas cicatrizes das serras. As botas ganham a cor da terra carbonizada e sofremos na carne o que resta dos troncos centenários dos castanheiros, daquele bosque de carvalhos ou do carrasco começando a repovoar os calcáreos. Foram os comunistas, os idiotas pagos pelos madeireiros, o povo insano nos piqueniques, os fanáticos do verão quente, as empresas contratadas à peça para apagar os fogos, o bombeiro alucinado, a reincarnação de nero. Incendiário, se tombares um outro sai da sombra e toma o teu lugar. " Só não arde o que já ardeu". Eucaliptos da terceira geração, tremei!

29 julho 2003

I would prefer not to

Foi Enrique Vila- Matas quem cunhou a designação de síndrome de Bartleby para "a pulsão negativa ou atracção pelo nada que faz que certos criadores, embora tendo uma consciência literária muito exigente nunca cheguem a escrever; ou escrevam um ou dois livros e depois renunciem à  escrita..." No seu estranho livro Vila-Matas faz a recensão de vários destes escritores que depois de um mais ou menos breve fulgor, se calaram. J.V.Foix que sonhava poemas pelas noites embora não os escrevesse; J.D.Salinger em silêncio desde 1963 após meteórica glória; Enrique Banchs que Borges celebrou; os nossos Edmundo de Bettencourt e o barão de Teive, o semi-heterónimo suicida de Pessoa; Maria Lima Mendes paralisada pelo "chosisme" do nouveau roman e Maupassant pela imortalidade...
Ana Paula Inácio de quem dizem ter nascido no Porto em 1966 e viver actualmente nos Açores, publicou As vinhas de meu pai (Quasi) e Vago Pressentimento Azul Por Cima (Ilhas). Em quase todos os seus textos perpassa a dúvida sobre a utilidade das palavras: "o que poderás dizer que não se dissolva em pó?"; "fechei em código toda a escrita". De uma estirpe de solitários, ("trago esta sombra comigo") ela queria atirar" pedras, margas, basalto, xisto ", descobrir o mundo ". Mas situando-se no "lado incerto onde bate o vento" não lhe resta senão nomear as Árvores, outras coisas simples de que se fazem os poemas e "esperar que o tempo faça o resto". Em 2002 publicou uma recolha de pequenos contos, "Os Invisíveis", onde personagens se vão progressivamente apagando até nada restar deles, nem as palavras secas com que são descritos.
Agora, como foi anunciado por um antologiador (ver Relâmpago, 2003) disse que não tinha nenhum inédito disponí­vel.
Não sei mesmo se existe. Ontem pedi que me dissessem onde vive, em que ilha dos Açores? A minha caixa de correio estava vazia. Pode ser que, como Vila-Matas com Salinger, a encontre por acaso ao fundo de um autocarro ou à  porta de uma dessas casas da ilha do Pico onde é inevitável ver-se o mar, sentada nas escadas, abraçando os joelhos aterrorizada por ter perdido a chave. Mas eu não sou Vila-Matas.

Bartleby, Herman Melville, tradução de Gil de Carvalho, Assírio e Alvim, 1988
Bartleby e Companhia, Enrique Vila-Matas, tradução de José Agostinho Baptista, Assírio e Alvim, 2001

28 julho 2003

Arte Poética

Poetas sem qualidades parece ser, para a esquadra pesada do apeadeiro, o alvo a abater . Declaro que é o meu livro de Verão. Como o livro teve uma edição de 350 exemplares vou passar a citá-lo (para os que não conhecem a editora AVERNO).
Quero escrever hoje, aqui, esta arte poética da Ana Paula Inácio e com ela resgatar o azedume dos posts anteriores e voltar ao espírito de A Natureza do Mal:


...com três paus
fazes uma canoa
com quatro tens um verso,
deixa o tempo fazer o resto.

Quasi

E pela segunda vez no mesmo dia o nome de Jorge Reis-Sá vem ter comigo. Ele é co editor do apeadeiro 03. O homem parece apostado numa cruzada literária. Não percebo ainda quem são os cristãos nem os mouros. Mas se ele for cristão eu sou mouro e se for mouro serei cristão. Estou Quasi quasi a ter um preconceito com a editora de Famalicão. Agora já posso ter preconceitos sem sentir culpa.

Grosseirões

Um poeta que a Claire Lunar aprecia disse uma vez aos vindouros que fossem gentis porque eles, os que viveram no duro tempo da luta de classes, não o tinham podido ser. Hoje, não vou dizer o que outro poeta, também alemão, comentou 20 anos depois. Os que escrevem no apeadeiro ainda não podem ser gentis. Fica a dúvida sobre se não são mesmo...rudes.

Apeadeiro 03. Fujam!

Trouxeram-me a revista apeadeiro 03. Tem um dossier sobre crítica literária, uns poemas e um daqueles questionários infanto-juvenis que consta que o Proust fez a si próprio em dias de folga da Recherche. O questionário é sobre uma tal poesia digital, antologia que três personagens cujo nome não citarei para não os decorar- a Sofia até o NIB decora, deram á luz pelos vistos contra os poetas de 90, chamemos-lhe assim. O questionário parece ter sido formatado para possibilitar o tipo de respostas dominante, naquele suave exercício de cumplicidade redacção-entrevistado que agora revive, próprio das democracias vigiadas. Esses três senhores são pessoas muito mal dispostas e malcriadas que cultivam um ódio assustador ao que chamam a geração de 90. Como acordei bem disposto não vou lembrar-me do vocabulário que usam. Idéias não dei conta que houvesse. Gente daquela não pode gostar de poesia. Escrevo isto só para que mais nenhum incauto espere em apeadeiros destes.

27 julho 2003

Faz-me mal o relatório do Pedro Mexia sobre a TSF

Quando o Carlos Andrade (o moderado), o António José Teixeira (quasi-radical), o Fernando Alves (soixante-huitard) forem só uma saudade da TSF; quando o D. Torgal Ferreira e a Mª de Lurdes Pintasilgo deixarem de aparecer e só tiverem voz os que "se identificam com a maioria dos católicos portugueses"; quando o Acontece deixar a RTP2 e a RTP2 deixar de ser um bocadinho diferente; quando fôr tudo só mentira só mental, quando tudo reluzir como a cabeça do Pacheco, o outro, o do O'Neil, perigosíssimo esquerdista pré soixante huitard, nessa altura esta cela vai ser um sítio, digamos, agradável, mas talvez o Pedro Mexia se aborreça mortalmente.

A poesia de agora e o senhor Jorge Reis-Sá

Jorge Reis-Sá assina no Mil Folhas um texto sobre "A Poesia de Agora" que, a crer na nota introdutória da redacção parece ser um episódio de um debate cujos termos anteriores me escaparam. O ponto de vista principal é de que, na poesia que se revelou nos anos 90, existem dois caminhos ( a que ele chama também gerações).
Um teria como figuras de proa Manuel de Freitas e Pedro Mexia e integraria poetas como Carlos Luís Bessa, José Miguel Silva, Ana Paula Inácio e Rui Pires Cabral. Responderia ao apelo de Joaquim Manuel Magalhães de regresso ao real e praticaria "um franciscanismo(...) de urinóis, shoppings e telemóveis..." Teria granjeado fama (subentende-se não totalmente merecida?) através do exercício paralelo da crítica literária por alguns dos seus elementos proeminentes. Outro grupo, mais discreto, englobaria valter hugo mãe, Melícias, Vasco Gato, Pedro Sena-Lino e praticaria uma "poesia imagética devedora de Herberto Helder, Cesariny e Luís Miguel Nava". Este grupo teria compreendido que o regresso ao real foi chão que deu uvas e teria voltado "ao sublime".
De fora ficam outros nomes, presume-se que mais ligados a esta "simplicidade" que "sente que o real já foi visto, sentido e revisto."E que não vou citar porque entre eles está um dos meus poetas favoritos.

Só queria dizer, aqui da cela, algumas coisas simples.
De Ana Paula Inácio já disse o que sentia. Sublime resposta aquele silencio bartlebyano a uma antologia que lhe pedia um texto inédito (se alguém souber onde, em que ilha dos Açores, está Ana Paula, A Natureza do Mal rejubilaria).
Pedro Mexia, o de Eliot- não estou a falar do Dicionário do Diabo, é um poeta da cidade quando fica deserta, da atenção às pequenas coisas que se passam aqui mesmo ao nosso lado, da alegria incompreensível das namoradas. Como Manuel de Freitas ele escreveu uma geografia fascinante de Lisboa. Cafés, tabernas, shoppings que se adivinham suburbanos, praças ao fim do dia. Freitas é aparentemente mais brutal, com as referências ao alcoól e a um comércio sexual aparentemente destituído de ternura . Mas enternece-se com o taberneiro ou a mulher de detrás do balcão, o sorriso desdentado de uma mulher que varre o passeio. São, cada um à sua maneira, dois grandes poetas deste tempo. Que leram Ruy Belo concerteza. E Cesário, Herberto Helder, Cesariny, sim. E que felizmente não cabem numa definição tão simplista.
Pôr poetas contra poetas, em torneio, parece-me feio.
O texto de Jorge Reis-Sá é mal escrito, redutor, inexacto, injusto. A poesia de agora merece outra coisa.

Hoje de tarde, por coincidência, tinha por companhia o livro de Manuel de Freitas editado pela Frenesi e intitulado Infernos Artificiais. 300 exemplares! Quantos leitores? Chamar a esta "geração" festejada", reconhecida na praça" parece-me uma maldade.
Por mim faço votos para que o Manuel de Freitas (agora editado pela mais respeitável Assírio) não abandone o seu lado maldito, não troque a taberna pelo Lux e tenha sempre à disposição aquele deus sublime, que pode ser o autoclismo com a sagrada louça sanitária.

26 julho 2003

Ana Paula Inácio não te cales

Li no Mil Folhas que a revista Relâmpago reuniu alguns dos "jovens" poetas portugueses a quem pediu e publicou inéditos. Ana Paula Inácio não foi incluída por não ter nenhum inédito disponível.
Sim, talvez Ana Paula Inácio atravesse um desses momentos de silêncio. Sobre isso escreveu-se esse livro que tem o outro nome de Bartleby. O livro de contos de API é já o anúncio de um grande silêncio onde os personagens se vão sucessivamente apagando. Mas Ana Paula Inácio não se pode calar, logo agora que a descobrimos. Onde quer que estejas, no meio dos oceanos como gostas de dizer, não te cales. Nós gostamos de ti. Nós, esta gente anónima destes blogs quase confidenciais que vamos linkando, que sem darmos conta formamos na grande rede uma pequena rede de fios precários, voláteis, nós precisamos da tua voz que nos dá as coisas mínimas com que construímos a nossa voz.

Agora, outrora

Nunca aprendi a reconhecer o que vai ser grande na memória. Outro dom que não me foi concedido, saber exactamente quando fui feliz.
(plagiando a Sofia de A Natureza do Mal)

A miúda com o boné de pala

Toda a gente escreve sobre os filhos...A psicóloga disse-me uma vez (entre dois bocejos) que eu não assumia o papel parental. Tenho lido o que escrevem sobre as crianças. O número de textos aumenta no Verão e no Natal. Devem ser as épocas em que são vistas pelos pais. São quase todas sobredotadas. Está correcto. Se são nossos filhos devemos apreciar o seu material genético e publicitá-lo. A minha miúda é igual às outras. A única vez que fui a uma consulta com ela, ainda era de fraldas. Depois de a pesarem atrevi-me a perguntar à médica como é que ela estava. Ela atirou-me: Na média! Quando a miúda foi para a escola fui um dia vê-la á hora do recreio. Achei bonito aparecer assim. O meu pai tinha feito isso comigo uma vez e é uma recordação que ainda tenho: ele enorme à porta da sala, a professora a aproveitar para fazer queixas de mim e nós a olharmo-nos nos olhos como quem diz que nos estamos a borrifar para a velha. Na escola da miúda não deixam entrar os adultos sem identificação e a minha tinha lá aquele carimbo de estar em condicional. Ao fim de algum tempo a professora veio ter comigo ao portão, olhou-me com interesse, como direi, sociológico, e quando lhe perguntei –Então senhora professora como é a miúda? ela disse-me de boca ao lado –É média, a sua filha é média. Agora a miúda está de férias sem nada que fazer antes de ir para a colónia da praia. Fica em casa da tia. A semana passada a tia estava a fazer uns trabalhos ao computador e ouviu barulho no quarto dela. Era já tarde mas parece que nas férias deixam as crianças dormir. Ela foi ver. A miúda estava sentada na cama, virada para um armário que tinha uma porta entreaberta, com um olhar de terror nos olhos. Dizem que ficou assim algum tempo, sem responder às perguntas. Depois fechou os olhos e não os quis abrir mais. À tarde puseram-lhe um chapéu com uma pala comprida para a convencer a ir ao médico. Ele a princípio não percebeu a história mas quando soube que o pai estava preso disse-Ah! então está tudo explicado. A miúda já brinca embora ainda não saia de casa. E nunca mais tirou o boné de pala.

Guantanamo aqui agora

Andam aí a discutir (Mar Salgado, Santa Ignorancia) sobre estar preso em Guantanamo ou numa prisão de Castro de que nem o nome é conhecido. E na penitenciária de coimbra? Estar preso é estar preso, porra. Falem com o António Marinho! Isto é se ele puder, claro.

25 julho 2003

Varadero (Cuba)

O cúmulo da obscenidade é ser comunista e ter o Varadero (Cuba) como destino de férias.

ah a política!

Ruben de Carvalho, ao apresentar a Festa do Avante foi interrogado sobre a pena de morte em Cuba e não respondeu "para não agravar as grandes dificuldades por que passam os cubanos". Devemos entender isso como um contributo teórico ou prático para o comunismo?
V. o carcereiro bom, trouxe-me uma página de jornal que, a encabeçar uma crónica, traz a fotografia da jornalista dos olhos tristes. É a preto e branco, com malha grossa. Ela sorri oblíquamente e os olhos estão semicerrados. O sorriso é ambíguo como algumas mulheres sabem fazer. Na crónica ela diz que vai para férias e que toda a gente vai ou foi para férias e fala com ironia dos destinos dessa gente feliz. Não interessa o que ela diz. Eles têm que escrever todos os dias. Colei o recorte na parede em frente da cama.
Quando acordo de manhã cedo entra uma luz pobre filtrada pela janela do alto da cela de isolamento e eu fico triste quando não a vejo.

Camus, grande

Fechou a porta
não posso deixar de tremer
disse-lhe que poderíamos jantar juntos no Celeste
"mulherezinha"
Perguntou-me, então, se eu julgara que ele ia responder

Refrescar-me as têmporas
embaraçadamente

«modificar a minha
vida»



copiado de little black spot

Noite

À noite na cela um corpo aceso, inútil.

24 julho 2003

Teatro na Penitenciária

Os do Teatro andam a passar-se. Estão quase todos na ala F e são já conhecidos por ala P mas eu não entro nesses jogos homofóbicos. Têm os olhos esbugalhados mesmo sem erva, que é coisa que ninguém vê há anos, pode ser que agora com a cultura apareça alguma. Estão, como dizem, em permanente coreografia. Movimentos de vôo, crescimento de asas, fuga. Aí percebo-os e invejo-os, confesso. A psicóloga disse-me que no processo de selecção me auto excluí. O juiz que me pôs incomunicável também disse o mesmo: você é um auto excluído! Foi antes de os mandar foder. Mas gostava de fazer Teatro. A psicóloga disse que tinha andado no TEUC e que o Teatro fazia as pessoas boas. Ela acha que eu devia sentir-me culpado e que a culpa é uma coisa fundamental na recuperação. A maior parte das coisas que ela me diz são mesmo para me sentir culpado. Dizia, que desde a cenaça da semana passada não me recebe, nem marca entrevista. Mas eu já não tenho espaço na cabeça para tanta culpa. Na cabeça , no peito, no sexo. Só não sei de quê. E isso não me faz sentir melhor. Os da ala P, digo F, começaram a escolher papéis femininos. Dizem que não é nada de novo. No teatro chinês não há mulheres, parece. E os homens pintam a cara de branco e fazem de mulheres. As mulheres com a cara branca são lindas. Esse pensamento faz-me sentir bem. É como os olhos da jornalista que esteve cá na semana passada. Dizem, que eu estava atrás da porta. Mas contaram-me tão bem que posso imaginar. Quem me contou foi o guarda V. De vez em quando ele abre as portas das celas da cave onde estão os incomunicáveis e vai para o fundo do corredor espreitar se vem alguém. Ele viu os olhos tristes da jornalista e contou-me. Dizem que o guarda V. tem o complexo de Helsínquia e que gosta tanto dos presos que qualquer dia vai dentro. Mas isso são coisas de psicólogos doentes. Eu penso que o que há é uma grande corrente que liga as pessoas em certas alturas. Os da ala P com esta coisa do teatro japonês emocionam-se com a cara pintada uns dos outros. Um deles encontrou um escrito do Pasolini sobre a fraternidade homossexual das prisões. Era lindo, porra. Eles não sabem é como é que acabou o Pasolini.

Quem se eu gritar...

Ela manda-me o livro do Rilke na tradução de Paulo Quintela. Sabe o que manda. Mas não sabe quem está agora aqui a recebê-lo. Não suporto que me abram a porta da cela e interrompam o meu isolamento. Pôs uma gota de perfume entre duas páginas e essa manifestação de mau gosto confirma os meus piores sentimentos. Estar preso é também esta humilhação de não lhe poder dizer que o amor acabou às portas da Penitenciária.

Os meus livros na cela

Paisagem com inundação (Brodskii, Cotovia)
Dicionário Houaiss e o Aurélio
A Queda de Berlim (Antony Beevor, Bertrand)
SIC (Manuel de Freitas, Assírio e Alvim)
O Buraco na Parede (Rubem Fonseca, Cª das Letras)
e The extreme male brain (Simon Baron-Cohen, Penguin)- para ver se me safo nos interrogatórios...

No recreio

Tenho direito a uma hora de passeio diário num dos pátios da Penitenciária. Um guarda caminha ao meu lado.- Onde é que morava?, - Trabalhava em quê?
Insurjo-me com o uso do passado. - Ainda moro! Ainda trabalho! O guarda olha-me com espanto. O que é que ele sabe de mim que eu ignoro?

Ou umas peúgas

Carlos Alberto Machado, de quem anunciei o último livro ( A Realidade Inclinada, Averno 2003), publicou anteriormente
Mundo de Aventuras, Évora, Ataegina, 2000
Ventilador, Espinho, Elefante Editores, 2000
Mito, Lisboa & Etc, 2001.
CAM edita um blog que vale a pena visitar: Campo de Afectos

livros" (...) repletos de palavras amestradas
pra oferecer no Natal
ou isso ou umas peúgas."

23 julho 2003

Livros na NTV

Um novo programa de Livros na NTV renovada, pela mão do Francisco José Viegas. O Carlos telefonou a avisar e valia a pena. Todas as semanas das 22 ás 23h. O começo foi prometedor com a blogosfera a dar cartas pela mão dos Marretas, da Janela Indiscreta, do Gato Fedorento, do Dicionario do Diabo e do Desejo Casar. Se alguma coisa de novo pode acontecer na TV tem de passar na blogosfera. Foi tão high profile que não se pode deixar de temer pela continuação. Eu propunha uma ronda por blogs intimistas, próximos do silêncio, como esse estranho little black spot.

But who is that on the other side of you?

Ah finalmente encontrei a passagem da The Waste Land onde o Eliot fala das alucinações extracampicas:

Who is the third who walks always beside you?
When I count, there are only you and I together
But when I look ahead up the white road
There is always another one walking beside you
Gliding wrapt in a brown mantle, hooded
I do not know whether a man or a woman.
-But who is that on the other side of you?

A frase da manhã

Todas as manhãs, às seis e meia, a Penitenciária começa a animar-se. Com o tempo aprendi a conhecer os ruídos, a distingui-los. Da janela da minha cela vejo um varandim e, a esta hora, os passos de um preso, sempre o mesmo, que se debruça e diz, com sotaque beirão, uma frase que não decifro. Ser-me-á dirigida? Ou a outro dos incomunicáveis da cave? Será uma saudação, uma mensagem, uma amabilidade? Já escrevi o que me parece a transcrição fonética da frase. Repeti-a para mim mesmo e para os meus pais, atónitos, no parlatório. Hoje, como não dormia, pus-me à escuta, apostado em finalmente compreender as cinco sílabas com que todas as manhãs acordo. Às seis e meia ouço os passos apressados dele, a música estranha do balde nas grades do varandim. Uma vez mais ele pára frente à janela da minha cela, como que se dobra para a cave e diz, distintamente, as cinco sílabas que tenho gravadas no caderno e agora também na memória. Mas ainda não é este o dia em que percebo.

Hora de Verão

Baudelaire olhava fundo nos olhos das mulheres e, como os filhos do celeste império, via neles as horas. Por ter aprendido mal ou por ser sempre verão nos teus olhos, passo o outono em grande confusão horária.

22 julho 2003

Na cela do lado

Na cela do lado, a do castigo, há um preso que canta. Canções populares, antigas, que ele sussura em ritmos lentos. Um dia destes trovejou ao anoitecer. Trovões fantásticos que faziam tremer as paredes grossas da penitenciária. Então, a voz do homem estoirou numa mistura de temor e esperança: Bota abaixo Senhor! Ah carago, bota abaixo esta merda toda Senhor!

Jogos florais

O meu vizinho publicista e eu temos uma coisa em comum: usamos a mala dos carros como biblioteca. De manhã dizemos bom dia, abrimos ao mesmo tempo as malas e ele aproxima-se estendendo-me o último lançamento da sua colecção de poesia. "É um poeta jovem!"- como se fosse um elogio. Abro uma página ao acaso e para esconder o desalento retiro de um caixote o livro onde uma mulher escreveu um poema que começa assim: " Saí para o engate depois da meia-noite...". Ele lê, com cara de grão de bico, devolve-me o livro e diz: "Sim, e depois?"

21 julho 2003

Corrector ortográfico

Tu dizes dos dias
eu ponho o til e a cedilha

Meu poeta

O Verão, o fim do Verão é a estação do Ruy Belo. Agora o Carlos Alberto Machado, um dos poetas sem qualidade reunidos pelo Manuel de Freitas escreveu um poema que começa assim:

Não tenho meu poeta a tua praia da consolação
nem o chichichi das tuas senhoras no meu mar...


Vão ver.
Carlos Alberto Machado , A Realidade Inclinada, ed Averno, 2003
Li na badana de um livro- esqueci a autora mas prometo lembrar: "Chegou o tempo dos aloendros e os amantes que se matam vão começar a deitar culpas ao vento."

Preconceitos e a esquerda

O Francisco José Viegas escreveu no Aviz sobre os Preconceitos. E falou nos seus, nos que reconhece em si próprio. Em alguns pelo menos, pequenos e médios preconceitos. Gostei. Assino por baixo. Em quase todos- não gosto de piada sobre judeu mas talvez não tenha ainda encontrado um contador à altura. Tenho um preconceito contra o relativismo que não é leve. Dawkins escreveu: "Mostrem-me um relativista cultural a 5.000 metros de distância e eu mostrar-vos-ei um hipócrita". Concordo que um mundo sem culpa seria insuportável, povoado de gentinha arrogante. Mas vi pessoas destroçadas pela cruz de uma culpa inexistente ou que há muito tinha prescrito. Também tenho um leve preconceito contra os erros ortográficos, que tem de ser muito leve porque nunca sei a gravidade dos acentos (tenho de telefonar á  minha mãe) e troco os per pelos pre (mas sei seguramente que não é um perconceito).
Mas tudo isto- e outras coisas, há tanto a falar e é tão agradável da forma que FJV o faz, me faz ser de esquerda.

20 julho 2003

Teatro na cadeia

Um encenador de teatro anda agora a ensaiar com alguns presos. Ouvi dizer que o gajo não é da bófia nem da Recuperação Social. Inscrevi-me no grupo mas não fui seleccionado. Ainda deve ser da ressaca de ter mandado foder o psicólogo . Hoje os jornalistas vieram visitar a cadeia e à frente vinha o senhor director e o manda-chuva da Cultura. O gajo que arranja a massa para o encenador. Os actores não recebem nada mas estão agradecidos por participar numa acção daquelas. Parece que fazer teatro acelera a recuperação. Se a peça chegar ao fim deve dar para um ano de perdão de pena. Não interessa. Vinham todos, era o que eu estava a dizer. Nós estávamos fechados na cela e os presos- actores não podiam falar. Normal, que ainda falta muito prá recuperação. Mesmo assim ainda ouvi o senhor director. Que só estávamos privados da liberdade de mais nenhum dos direitos fundamentais. Estava atrás da porta da cela, a arranhar a porta sem estardalhaço para os guardas depois não virem chatear, quando a festa estiver desmanchada. Estava a exercer o meu direito fundamental de arranhar a porta, suavemente. Antes de eles começarem a falar para a máfia dos jornais que lá se juntou o nosso ruído ecoava nos corredores da prisão. Parecia que anunciava qualquer coisa de importante. Às vezes parece que pode acontecer alguma coisa aqui dentro: um raio que arrebentasse esta merda toda, um chuto colectivo e final, a notícia de alguém que se evadiu, simplesmente um cheiro de mulher. Afinal o que veio a seguir foi o silêncio e depois do silêncio mais discursos.

Bilhete de C. depois da visita à Penitenciária de Coimbra

"Hoje, estive na prisão e não gostei. Era convidada (...)
Nunca tinha entrado na Prisão de Coimbra, só noutras mais pequenas, mas já nem tinha memória das grades. Todos os dias passo ao lado daquelas vidas ali guardadas e como me fui esquecer que há gente retida lá dentro e nunca penso neles!!!
Bom, é gente igual a nós, mais pálida é certo e que se excitam à entrada das visitas com gritos e batimentos nas grades. O som é terível, o edifício é enorme e faz um eco ensurdecedor, Depois, as visitas deviam trazer novidades do mundo, mas nada, nem isso podíamos fazer. Só ver, olhar e apreciar.

Os olhos dos retidos andavam esbugalhados, os dos funcionários também e não fosse a farda, nada os distinguia. O ar esgaseado era o mesmo e nenhum deles sabia o que vinha no minuto seguinte, o que iriam fazer. A segurança é muito estranha lá dentro, é falsa e ninguém confia em ninguém. Paira a desconfiança, paira um cheiro próximo do da morte, se é que tem cheiro, porque ali toda a gente está moribunda. Já lá entrou? já viu onde recebem as visitas? Os filhos e as namoradas?.

Não vi as celas, só ouvi alguns a baterem à porta. Não tinham muita força, não insistiam nos batimentos, mas queriam dizer que havia ali gente.

Fiquei chateada comigo, lembro-me sempre dos doentes que estão no hospital, privados de tudo e há muito tempo que me esqueci que as prisões também existem. Se calhar dava jeito esquecer que ali há gente. Estarão ali os fora da lei, os anti-sociais. Será????

Mas, o mais estranho disto tudo, é que a prisão é linda!!!, isto é o edifício.

É um desabafo.
C. "

17 julho 2003

Os vendedores de gelados

No verão quando o céu está nublado, ou ameaça chuva ele fica preocupado. É nos homens dos gelados que pensa. Como devem ficar tristes em casa. As olhadelas furtivas que deitam ás praias. Como se desmazelam na barba, na brancura do uniforme. Os vendedores de castanhas estão bem, quer chova ou faça sol. Os de gelados, coitados... Cada um tem a sua causa, comentou ela. Ele sabe que a partir desse dia ela o vai ver como um vendedor de gelados em dia de chuva.

Dia de todos os santos, 14 anos

Caminhava na avenida deserta. O tempo estava quieto e os sexos rigorosamente separados. Algo lhe dizia que grandes dias estavam para vir.

16 julho 2003

Éluard, Paul

Nasciam-lhe pelos por todos os lados. Tinha uma face inútil e não sabia que um dia teria uma cara para ser feliz, para ser amado. Era o melhor ano da sua vida. Como não sabia desperdiçou-o. Parcialmente, pelo menos. Apaixonou-se pela rapariga errada. Ou a rapariga era a certa e era ele que estava mal. As mãos e os pés também tinham crescido demais. Escrevia poemas nos cadernos de papel quadriculado. Faltava-lhe qualquer coisa a que hoje podemos chamar perícia, gentileza, delicadeza. Só o que sentia era verdadeiro.

No jantar dos vampiros

Estavam lá todos. O restaurante era de truz e a preços acessí­veis, ainda. Predominava a gente de direita- mas onde é que pode sobreviver hoje em dia um restaurante com gente de esquerda? A Delly que escreve no blog A guerra da Independência é um espanto. Feliz o G. que parece namorar com ela. O Dario Rato, dos Ratos de Cedofeita, é charmosí­ssimo, introvertido e vestido com aquele casaco preto apertadíssimo lembra-me o amor cortês. Gritei-lhe: Sou a Margarida de Navarra! e ele olhou-me com ar bovino. O meu tio Francisco que nos dias de festa hasteia no pátio a bandeira azul-branca bem nos dizia que os Ratos de Cedofeita eram todos lerdos. Não percebi o que foram lá fazer os trinca-espinhas do Fila da frente o blog cinéfilo de Famalicão. Famalicão tem Cinemateca? Só falam de filmes que ninguém viu e de actores mortos. O Gonçalo da Inclita Geraçãodisse que os gajos tinham era um clube de vídeo. Na minha mesa a conversa era completamente secante. A Hanna, dos Verdadeiros Afectos defendia que O Iluminismo é que tinha arruinado a Europa e que era preciso pegar na meada antes da Revolução Francesa. Era paleio que eu já tinha ouvido ao Papillon do blog Função Pública noutro jantar no Rés do Sótão o restaurante que a Milica do Integralismo Lusitano abriu na Graça. Quem salvou a noite foi o Terrível. Dizem que é ou foi canhoto. Eu acho que ele é é lindo! Vou ler O campo todos dias.
Ditriche

Maria do Rosário Pedreira

Tu que escreveste versos de uma luz tão clara sobre a ausência de um homem na tua casa. Que vestiste a pele da mulher fora do tempo, abandonada e que vive da memória de uma partida eminente. Que apesar de tudo esperas com a infinita paciência das mulheres da tua terra. Enquanto espero por mais poemas teus vou aqui escrever o nome dos teus livros na editora onde trabalhas, leio: A Casa e o Cheiro dos Livros; O Vento nos Ciprestes (cito de cor e incompletamente).

À luz verde

Apitamo-nos uns aos outros nos semáforos. Não suportamos o verde muito tempo. Agitamo-nos nos bancos ao volante. Fazemos gestos caretas e bailados. Corremos céleres até à próxima paragem. Para apitarmos uns aos outros à luz verde.

15 julho 2003

Motivos fúteis

Fiquei para trás descurando as guardas. Demorei-me nos orégãos em flor, entre as pedras do muro. Voltava-me julgando ouvir o meu nome- e eras sempre tu quem me chamava. Ou o tumulto das águas, a escola quase deserta, os miúdos entregues ao sacristão. Por motivos fúteis me demorava. Por motivos fúteis me apanharam.

Olhando o poente

Outros que escrevam sobre o sofrimento do mundo. Eu simplesmente me comovo com o teu púbis empinado.

Quem é este homem que caminha atrás de mim?

T.S.Elliot escreveu sobre esta sensação: alguém, um homem ou uma mulher está caminhando atrás de nós. Acontece nos montes, nas cumeadas. Em grandes espaços abertos. Aconteceu-me no C..., quando descia para a garganta de L. A vegetação rasteira, as grandes massas de granito fechando-se ao fundo, a ausência de referências, os olhos pregados à saída do C.. E como uma aragem, um sussurro, alguém caminhava atrás de mim e síncrono com os meus passos.

O milhafre

Hoje vi o milhafre atento aos telhados desta parte da cidade. Os pombos andavam todos em alvoroço.

11 julho 2003

Debaixo da pele

Marca-me na pele. Implanta-me , subcutânea, qualquer coisa electrónica, dessas que emitem sinais para um receptor que seja teu. Fixa-me residência. Põe-me pulseiras.

De olhos bem fechados

Ele estava de férias e quando deu conta tinha acordado em casa da tia. Ela disse-lhe que fosse ver bonecos na televisão que tinha de acabar um trabalho no computador. Ele sentou-se na cama em frente do armário da roupa. Ela, como não ouvisse barulho na sala, levantou-se para o procurar. Ele estava sentado na borda da cama olhando com terror para o armário aberto. Ela precipitou-se para o armário, viu a sua roupa alinhada no escuro e sem saber bem porquê fechou a porta com rapidez. Ele tinha já os olhos franzidos, a face num esgar alucinado. Ele ainda não tinha aberto os olhos, oito horas depois.

De manhã

Hoje o dia amanheceu bem: por umas horas podia-se ignorar a ameaça do sol. O autocarro das oito horas traz as mulheres que dão dias à gente destas casas. Os jornais empilham-se à porta do quiosque com as notícias da véspera. As raparigas da padaria acabam de tomar o pequeno-almoço antes de abrir as portas. Um senhor, sempre o mesmo, espera esse momento com uma ligeiríssima tensão.( Conheço-o! é o Esteves). Nos passeios alinham-se algumas garrafas de cerveja. Os câes espreitam das esquinas, amedrontados com a carroça camarária. É numa manhã como esta que te vais embora.

09 julho 2003

Se me chamas
não vou.
Se te calas
julgo-te morta.
Se te comoves
acho a comoção
a despropósito.
Se te vejo chorar
(nunca te vi chorar)
espanto-me com a dureza
do meu coração.
Quando encontrei
as palavras justas
para te explicar
tinhas partido.
Se ela o chamava ele não ia. Se se calava julgava-a morta. Se ela se comovia ele achava a comoção a despropósito. Se a via chorar (mas nunca a viu chorar, pois não?) espantava-se com a dureza do seu coração. No dia em que ele achou as palavras justas para lhe explicar ela tinha partido.

08 julho 2003

Encroada, procélica, altroante

Ela estava à minha frente folheando o portfolio enquanto falava com fluência. Supostamente de mim, da minha vida, de como eu errara nas opções fundamentais, fizera, metodológicamente bem, investigações que não mereciam ser iniciadas e desbaratara idéias "interessantes" por não saber escolher os "instrumentos de pesquisa adequados". Estava encurralado e obrigado a dar uma resposta que pelo menos refizesse a reputação que pensava ter nos restantes membros do júri. E que palavras me vinham ao espírito? Encroada, procélica, altroante. Como naqueles poemas fonéticos que o Jorge de Sena e os nossos surrealistas tardios praticaram com êxito tão duvidoso, estas palavras alinhavam-se à minha frente. À espera que lhes pegasse e lhes desse a sucessão lógica. Encroada, procélica, altroante. De onde vinham estas palavras? Desta mulher- como hálito, perfume, aura? Ou das tardes perdidas das minhas investigações medíocres? Encroada, procélica, altroante.

Talvez um gato

Oferecem-me um gatinho. Dizer logo não, não consigo. Proponho-me ir conhecê-lo, sabendo de antemão que é difícil dizer, então, não. Não bastando, levo comigo a Inês de cinco anos. Agora sim, é impossível dizer não. Sem saber, devo querer muito um gatinho, para montar este cenário sem saídas. Fingir que não tenho alternativas e imputar inevitabilidade às coisas, deve ser algo que faço muito mais vezes do que as que sei. É tão mais fácil fazer de conta que não escolho que quero agora não saber. Desejem-me boa sorte.

06 julho 2003

Ela sempre me liberta

Às vezes pouso no parapeito de uma janela. Uma mulher, sempre a mesma, agarra-me entre as mãos. Gosto das mãos quentes dela nas minhas asas. A mulher levanta os braços para o espaço e uma miúda de olhar agudo sustém a respiração.Eu sei que ela sempre me liberta.

05 julho 2003

Outro sonho (de manhã)

Sonhei com uma casa no campo. Por vezes era uma casa de pedra, outra um pavilhão. Mas havia sempre uma janela aberta através da qual um homem que escrevia, e a espaços suspendia a sua escrita, podia levantar os olhos e ver, no quintal, a mulher regando legumes incrívelmente coloridos, ou estirada numa cadeira a ler.

03 julho 2003

Dá-me absinto

Sempre que falas de alcoól tenho sede. Tu a discorreres sobre os limites da tolerância e eu mentalmente a misturar absinto com mescal. Debaixo do Vulcão, conhecem? É um livro tão alcoólico que nunca consegui progredir mais de duas páginas por noite com medo de ser apanhado. É um livro do Malcolm Lowry, estranho, apaixonado, tropical e alcoólico. O Carlos de Oliveira escreveu (lúcido) sobre Debaixo do Vulcão: "Como mal/ como Malcolm/ come (etc)". As Flores do Mal, o livro de que mais se vai falar neste blog, é um livro de paraísos artificiais. Nessa altura a melhor poesia do ocidente escorria com o absinto. E cem anos depois o O'Neil : absinto-me cansado na outonalma. E cinquenta anos depois do Alexandre outro grande poeta português: "è boa qualquer substancia que nos traga algum esquecimento."

HElena Matos (bis)

Acho que me excedi. Ela lembra-me a Leitora do Schlinck mas é excessivo que me lembre pelo passado do personagem. Foi uma associação infeliz de idéias. Mas não me arrependo. Nem depois da bronca que o Berlusconi armou no Parlamento europeu. Se eu não escrevesse que ela me lembrara a Leitora de Schlinck estaria a ser políticamente correcto e não há coisa que a Matos mais deteste e denuncie. Também não posso dizer que a associação foi injusta. Porque as associações existem ou não existem, não são justas nem injustas. Preferia que no meu rarefeito córtex associativo não tivesse surgido esta ligação. Mas a Matos atravessa-se à frente e é sempre este desatino. Este mal estar. Esta descida á profundeza das águas.
Vocês que protestaram: eu não torno!

01 julho 2003

Atropelamento e fuga

Na festa das crianças um miúdo de quatro anos atropelou a mãe de uma menina de cinco. Ela fez uma fractura da tíbia. Fractura exposta disseram. Também disseram que ela era tão magra que qualquer arranhão lhe expunha logo qualquer coisa.
O infante abandonou a vítima no local do sinistro.

A colunista do jornal o Público Helena Matos

Ela aprendeu todas as técnicas da intimidação ideológica. Deve pertencer a uma seita revelada e é desse lugar onde se conhece o mal, que bombardeia os suspeitos do costume:os polí­ticamente correctos, a esquerda, os intelectuais. Quando ela fala sinto-me sempre culpado de qualquer coisa. Tenho medo que ela me denuncie. Se ela falasse contra a reforma do ensino do santos silva (houve?) eu sentia-me um reformista. Outro dia quando lia o jornal dela e passava pela coluna onde fuzilava, surpreendi-me com uma erecção, concerteza motivada por uma coincidência daquelas que frequentemente nos enganam os sentidos. Estúpidamente tive medo que ela me descobrisse e denunciasse aos leitores como onanista. O que seria rigorosamente verdade, mas como é compreensível, não gostaria que fosse tornado público por uma pessoa como ela.
Outras vezes ela desperta-me o efeito contrário. Apetece-me dizer que sou judeu alemão, comunista, inimigo das liberdades, exibicionista, que apoio os LGBTs por que estão na moda. Se ela falasse contra a Liga de Clubes e o major seguramente me apetecia sair em defesa desses injustiçados.
Vem lá no jornal a fotografia da cara da Helena. Pela cara adivinhamos o resto. Imagino que deve ser uma mulher boa, que teve uma infância terrível, cujos pais foram implacávelmente perseguidos pelos vermelhos no Alentejo e que, embora fosse só filha do caseiro, jurou que nunca esqueceria. Outras vezes vejo-a como a mulher da Leitora do Schlink, já convenientemente alfabetizada, mas carregando sempre consigo aquele problemazito de ter sido guarda de um campo de concentração.
Ela conhece a minha verdadeira natureza e faz-me sempre sentir mal. Dantes fugia dela. Agora acho que vou editar aqui as crónicas dela.

O fogo

Nas unhas do gatinho a bactéria da doença da arranhadela. Nos ovos mal cozidos a salmonela. Nas natas o estafilococo dourado. No beijo da mãe o bacilo de koch. Nos lábios da amada o herpes simplex. Na terra os ovos do strongylus. Na água o vibrião colérico. No ar o virus sincicial. Só o fogo dá paz a esta circulação equívoca.

Toxicologia

Quando morrer
quero que sejas tu
a descobrir
nas minhas vísceras
o veneno que me dei

Juventude Comunista

É tão novo e não sabe que traz às costas o gulag, o muro de berlim e a tinta correctora que apagou o trotsky da fotografia.

Folie à deux

Porque contas assim a minha história? Sabes o fim? O que vão fazer no meu corpo se insistes que me dói? Ou será que sou eu que não percebo? Sim deves ter razão, sou eu que não percebo. Mas podia ser de outra maneira. Eu estou aqui afinal, presta atenção. Estou aqui mas do outro lado. Desse que não vês. Gostava de te ver feliz. Faria tudo para te ver feliz. Vais sofrer se eles acreditam em ti eme fazem mal com as agulhas, os bisturis, as drogas. E eles estão a acreditar em ti. Também eu estou a acreditar. Quero que gostes de mim e se essa for a maneira vou correr esse risco. Todos os riscos. Sim é aí que me dói. Meu deus como me dói e como é bom a minha dor coincidir com as palavras com que a contas. Sofrer assim por ti é a alegria da minha vida. Já sou o que tu contas. Conta comigo. Pára um pouco. Tu e eles contigo. Mas vais sempre à frente. Sempre mais fundo na minha doença que é a tua doença e a tua salvação.