21 dezembro 2011

A rapariga da caixa 7 e o Cliente a seguir




crónica do jornal i de 7 de dezembro de 2011


Vê-a à noite, ao final do turno, com um sorriso cansado na face afogueada. Quando a vê, pensa: “É a Bondade”.

Ela recebe os produtos que rolam no tapete preto, à frente da placa que anuncia o Cliente Seguinte e com um gesto elegante faz passar o embrulho pela janela vermelha que reconhece o código de barras. Entretanto o Cliente Seguinte avança e o cliente a seguir ao Cliente Seguinte já despeja, no tapete rolante, provavelmente a melhor cerveja do mundo e um pacote de batatas fritas que têm 30 % menos de gordura à mistura com peitos de pato confitados. A rapariga da caixa, a Bondade, diz” boa noite” ao Cliente Seguinte e durante um segundo fixa o cliente a seguir ao Cliente Seguinte. Um segundo apenas. Durante essa fracção de tempo o seu olhar pousa num ponto da cara, entre os olhos, na periferia do rosto, ou na boca do cliente a seguir. Se o olhar da Bondade fosse um raio de laser ele teria agora iluminado a face do cliente a seguir, e teríamos visto a cor da Bondade e o ponto exacto em que ela fita um homem que se aproxima enquanto despeja pinhões no tapete rolante da caixa 7. A rapariga da caixa pega nas escolhas do Cliente Seguinte, uma de cada vez, de forma a encontrar a face que tem impressa o código de barras e com um movimento amplo encosta-a ao ecrã que transforma aquele DNA em euros. Ouve-se o som agudo que assinala a passagem da mercadoria ao estádio de bem de consumo, o momento mágico em que se realizam as mais valias. Uma música que o Simon Jeffes, dos Penguin Café Orchestra, um dia compôs e, ao mesmo tempo, o fim de um ciclo de morte para o pato, o momento em que uma ave encontra o seu destino, a sua razão de ser ou de ter sido.
“Cada mercadoria um som, o mesmo som”, pensa agora o cliente a seguir. Como um voto electrónico entregue às mãos da Bondade, sacerdotisa daquele templo. “ Voto em ti, não há alternativa ao pato confitado com pinhões, não existe, na forma actual da civilização, outra forma imaginável de comer pato com pinhões.” Ele, o cliente a vir, acredita nesta democracia do tapete rolante. Também ele apitará, um dia, entre as boxes à saída e revistá-lo-ão, não vá, por lamentável engano, levar nos bolsos algo que não trouxe.
A Bondade coloca cada unidade dentro de um saco, de acordo com uma tipologia que aspira a reproduzir a ordem impecável do hipermercado, separando os produtos de higiene, os produtos necessitando de frio para a sua conservação, o pão, as farinhas e as massas.
O primeiro cliente já pegou nos trocos, levantou os sacos, já se despediu pela segunda vez da rapariga da caixa - a primeira logo após a entrega do recibo, a segunda no momento em que ergue os sacos e se volta na direcção da saída.
O Cliente Seguinte estende os cartões para a rapariga da caixa 7. O cartão de fidelidade e o cartão de crédito. O cliente a seguir ao Cliente Seguinte aguarda na outra extremidade. Neste momento vê os dedos da Bondade. São como os dedos das enfermeiras, com finas linhas azuladas cruzando as articulações, frágeis e misericordiosos, amparando a ruína dos corpos e aqui, devotados ao comércio, dando a cada unidade o seu valor.
“Pessoas assim podiam salvar o Mundo mas não conseguem resgatá-lo do mal, que é múltiplo. É já tarde para salvar o que merece ser salvo. Ou o que quer que seja”, pensa o cliente a seguir.
O cliente a seguir faz o trajeto do supermercado como uma peregrinação. Cada prateleira onde se detém é uma estação e em cada paragem pensa na gente humilde que produziu cada unidade: as laranjas de Andaluzia e os trabalhadores temporários, o leite das cooperativas e o sofrimento das vacas, o café das plantações americanas recolhido por adolescentes, o queijo das queijeiras de Seia e Gouveia, as batatas fritas carregadas de óleo e afinal com menos 30% retirado para a fritura lento dos patos. E no final, junto ao tapete preto que a Bondade oficia, o cliente seguinte avança aos sacões, acompanhando o movimento que a rapariga gere com um pedal, balouçando o corpo a cada impulso novo e flectindo a cabeça de cada vez que soa o sinal concluindo a transacção. A cerimónia é discreta. Assim o cliente seguinte finta a lógica do mercado tendo como recompensa o carmim da face cansada da Bondade, o toque imperceptível que talvez receba com o troco e a esperança de uma próxima visita.


Hoje, no i leia A cabana de Thoreau

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15 dezembro 2011

No meio é que está o Aquiles

14 dezembro 2011

Antes alemães que chineses


Francesca Woodman

Anunciam que a privatização da Eletricidade de Portugal se decidirá entre o Estado chinês ( A Empresa da Grande Barragem das Três Gargantas) e os privados alemães (E.on). Parece que nos inclinamos para os alemães. Como diria o meu mestre Henrique "Antes o tempo infinito que a água". No tempo das duas Alemanhas, do muro e da guerra fria, havia em Berlim Ocidental uma corrente que, por medo da guerra nuclear, privilegiava o diálogo a leste à confrontação. Diziam que o seu slogan era "Antes vermelhos que mortos". Hoje, aqui, é mais simples: "Antes alemães que chineses".

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07 dezembro 2011

Quando desaparecemos (Para o João Paulo Conceição.)


Fotografia de uma criança em Chicago.

Publicado no jornal i de 24 de novembro de 2011. No i de hoje ler A rapariga da caixa 7



Por vezes algumas pessoas simpáticas aproximam-se revelando a sua condição de leitores. Quase sempre me dizem, de várias formas delicadas, que não gostam do que escrevo. A mais comum é insinuarem que ficam afogadas em citações e que gostariam de me ouvir sobre algo que fosse verdadeiramente meu. Ora aquilo a que chamam citações são referências. As minhas são literárias. Mesmo as que não são literárias, só são susceptíveis de ser transmitidas através da escrita. Eu não falo com eles, não componho música, não pinto nem faço fotografias que possam transmitir o terreno comum que tento criar nos textos que escrevo.
O que durante anos me levou a escrever foi desencadeado por livros. Não há, para mim, uma vida decente separada da literatura. A semana passada ouvi uma escritora chamada Dulce Maria Cardoso. Cresceu em África, de onde foi expulsa aos 11 anos, tendo-se exilado em Portugal. Apesar de ter passado por grandes provações é hoje uma mulher serena e obviamente muito interessante. Na entrevista, sempre que lhe era permitido, dizia coisas importantes, sobretudo pela forma bem estruturada como o fazia. Viveu numa capital colonial, numa época em que os brancos começaram a desaparecer sem que ninguém parecesse dar conta. Depois numa aldeia miserável da metrópole, finalmente em Cascais, onde, durante um ano, uma professora a tratou sempre como a retornada. O que lhe permitiu sobreviver sem sequelas foi a construção de uma personagem literária, ela própria, a quem iam acontecendo aquelas coisas desagradáveis. A pior existência torna-se tolerável se nos virmos como uma persona, que um dia será tão estimada como David Copperfield ou Jane Eyre. Mas esta operação, o método de Dulce, envolve uma dificuldade. É preciso ter lido algum autor, como Dickens ou as irmãs Brontë. É preciso ter lido. Na biblioteca itinerante da Gulbenkian ou na biblioteca municipal de uma aldeia obscura de Trás- -os-Montes. Livros grandes, como preferia a Dulce, que durassem uma semana ou toda a quinzena da requisição, até ao regresso da esplendorosa viatura com portas de estribos, faróis como olhos perscrutantes, abrindo-se pela retaguarda como uma baleia invertida e revelando estantes laterais por dentro da chapa ondulada.
Hoje convoco três referências para uma crónica que é como um quarto de cuidados paliativos. Tony Judt, que no “Chalet da Memória” escreveu: “Passei muito tempo sentado na margem do rio de Putney, a pensar, embora não me lembre em quê”; os Radiohead de How to disappear completely: “That there, that’s not me /I go where I please/ I walk through walls/ I float down the Liffey”; e um dos últimos livros do Planeta Tangerina, que pergunta Para onde vamos quando desaparecemos, uma história de Isabel Minhós Martins ilustrada pela Madalena Matoso.
Deixo os rios. Mais depressa me via no rio que William Blake, em “Dead Man”, desceu com Ninguém. Começo e acabo neste livro. As cores fundamentais da capa são duas: uma é ciano escuro, da faixa verde – azul do espectro, e a outra é sua complementar, quase o vermelho puro de Rodchenko. Nas mãos de Madalena Matoso podem ser o oceano, um rio, um campo cultivado, as camisolas dos pescadores, o tronco de uma árvore ou o perfil aguçado das cumeadas. Há depois uma linha preta, que no início parece uma estrada a atravessar as páginas, depois os cascos de barcos num mar revolto, a seguir os ramos das árvores no Inverno, uma rede viária e finalmente ambas as coisas e todas as coisas. As perguntas são as mais difíceis, mas feitas sem ênfase dramática nem a enjoativa infantilidade dos psicólogos dos afectos, frisando que há sempre mais possibilidades. Aí adensa-se o novelo das linhas, confundem-se os percursos e as copas das árvores e um rio-estrada mergulha num lago – bosque, enquanto uma casa se levanta como uma torre frestada.
Quase no centro do livro, um casal que não saiu para dançar dorme, mas no sono compõe um pezinho de dança. É então que o texto ironiza: “ Melhor que nada.”
O que faremos quando desaparecemos é igualmente a indagação central da obra de Vila-Matas, ela também construída pela sobreposição de referências, numa rede tão cerrada que, se as anotarmos, contaremos centenas, de Montaigne a Joseph Roth. Eu sou como a Dulce, embora a minha vida não tenha sido tão atribulada nem tão marcada a minha exclusão. Nos momentos mais graves – duas prisões, o incêndio na casa de Azeitão, a perseguição do paranóico que namorara com a rapariga dos fanzines – era sempre a outro que as coisas sucediam. E esse outro era uma personagem, quase sempre literária. No início um poema épico, depois um roman fleuve, em seguida uma novela picaresca e mais tarde contos curtos, de um grande apaziguamento, com momentos de diversão.
Em “Youth: Scenes of Provincial Life II”, Coetzee, ou o juvenil narrador coetzeeano, escreveu que gostaria de ter ido para a cama com Emma Bovary e de ter ouvido o famoso cinto a assobiar, como uma cobra, quando ela o despia.
Queria, quando tiver alta desta enfermaria, ouvir o silvo do cinto de Emma Bovary, dançar enquanto durmo, de preferência com uma senhora de cabeleira de fogo, ou, vogando na canoa arranjada por Ninguém, ver o Tony Judt sentado na margem do rio a pensar em nada.

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