A rapariga da caixa 7 e o Cliente a seguir
crónica do jornal i de 7 de dezembro de 2011
Vê-a à noite, ao final do turno, com um sorriso cansado na face afogueada. Quando a vê, pensa: “É a Bondade”.
Ela recebe os produtos que rolam no tapete preto, à frente da placa que anuncia o Cliente Seguinte e com um gesto elegante faz passar o embrulho pela janela vermelha que reconhece o código de barras. Entretanto o Cliente Seguinte avança e o cliente a seguir ao Cliente Seguinte já despeja, no tapete rolante, provavelmente a melhor cerveja do mundo e um pacote de batatas fritas que têm 30 % menos de gordura à mistura com peitos de pato confitados. A rapariga da caixa, a Bondade, diz” boa noite” ao Cliente Seguinte e durante um segundo fixa o cliente a seguir ao Cliente Seguinte. Um segundo apenas. Durante essa fracção de tempo o seu olhar pousa num ponto da cara, entre os olhos, na periferia do rosto, ou na boca do cliente a seguir. Se o olhar da Bondade fosse um raio de laser ele teria agora iluminado a face do cliente a seguir, e teríamos visto a cor da Bondade e o ponto exacto em que ela fita um homem que se aproxima enquanto despeja pinhões no tapete rolante da caixa 7. A rapariga da caixa pega nas escolhas do Cliente Seguinte, uma de cada vez, de forma a encontrar a face que tem impressa o código de barras e com um movimento amplo encosta-a ao ecrã que transforma aquele DNA em euros. Ouve-se o som agudo que assinala a passagem da mercadoria ao estádio de bem de consumo, o momento mágico em que se realizam as mais valias. Uma música que o Simon Jeffes, dos Penguin Café Orchestra, um dia compôs e, ao mesmo tempo, o fim de um ciclo de morte para o pato, o momento em que uma ave encontra o seu destino, a sua razão de ser ou de ter sido.
“Cada mercadoria um som, o mesmo som”, pensa agora o cliente a seguir. Como um voto electrónico entregue às mãos da Bondade, sacerdotisa daquele templo. “ Voto em ti, não há alternativa ao pato confitado com pinhões, não existe, na forma actual da civilização, outra forma imaginável de comer pato com pinhões.” Ele, o cliente a vir, acredita nesta democracia do tapete rolante. Também ele apitará, um dia, entre as boxes à saída e revistá-lo-ão, não vá, por lamentável engano, levar nos bolsos algo que não trouxe.
A Bondade coloca cada unidade dentro de um saco, de acordo com uma tipologia que aspira a reproduzir a ordem impecável do hipermercado, separando os produtos de higiene, os produtos necessitando de frio para a sua conservação, o pão, as farinhas e as massas.
O primeiro cliente já pegou nos trocos, levantou os sacos, já se despediu pela segunda vez da rapariga da caixa - a primeira logo após a entrega do recibo, a segunda no momento em que ergue os sacos e se volta na direcção da saída.
O Cliente Seguinte estende os cartões para a rapariga da caixa 7. O cartão de fidelidade e o cartão de crédito. O cliente a seguir ao Cliente Seguinte aguarda na outra extremidade. Neste momento vê os dedos da Bondade. São como os dedos das enfermeiras, com finas linhas azuladas cruzando as articulações, frágeis e misericordiosos, amparando a ruína dos corpos e aqui, devotados ao comércio, dando a cada unidade o seu valor.
“Pessoas assim podiam salvar o Mundo mas não conseguem resgatá-lo do mal, que é múltiplo. É já tarde para salvar o que merece ser salvo. Ou o que quer que seja”, pensa o cliente a seguir.
O cliente a seguir faz o trajeto do supermercado como uma peregrinação. Cada prateleira onde se detém é uma estação e em cada paragem pensa na gente humilde que produziu cada unidade: as laranjas de Andaluzia e os trabalhadores temporários, o leite das cooperativas e o sofrimento das vacas, o café das plantações americanas recolhido por adolescentes, o queijo das queijeiras de Seia e Gouveia, as batatas fritas carregadas de óleo e afinal com menos 30% retirado para a fritura lento dos patos. E no final, junto ao tapete preto que a Bondade oficia, o cliente seguinte avança aos sacões, acompanhando o movimento que a rapariga gere com um pedal, balouçando o corpo a cada impulso novo e flectindo a cabeça de cada vez que soa o sinal concluindo a transacção. A cerimónia é discreta. Assim o cliente seguinte finta a lógica do mercado tendo como recompensa o carmim da face cansada da Bondade, o toque imperceptível que talvez receba com o troco e a esperança de uma próxima visita.
Hoje, no i leia A cabana de Thoreau
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