Respirar sem ruído
No Passeio dos Espanhóis, ao longo do dia, havia, para todos, um momento especial. De manhã cedo era dos vendedores do Mercado e de quem tinham passado a noite a dançar. Os filhos da madrugada, de olheiras fundas e modos liberais. Depois, o Passeio era ocupado pelos homens que liam jornais, de preferência os jornais assinados pelos cafés com esplanada. Logo a seguir passavam os corredores de fundo, no treino infinito que leva à Maratona. Ao fim da manhã, porventura meio-dia, o Passeio estava deserto. À tarde as tias e as avós tomavam chá e tagarelavam com ruído até irromper uma vaga de adolescentes para assinalar a happy hour e confirmar os cocktails e as músicas da moda, nessa época balnear. Mesmo à noite, o Passeio dos Espanhóis assistia a várias revoadas de ocupantes.
Estes dois chegaram ao anoitecer, que era, a par do meio-dia, uma das duas pausas da circulação no Passeio dos Espanhóis, entre as vagas descritas. Sentaram-se num banco virado para o mar, de costas para a loja dos gelados, e ficaram assim algum tempo, imóveis, silenciosos. Nesse início de noite, ele pegou-lhe na mão. Furtivamente, para quem passasse não se aperceber, embora aquela fosse a hora de não passar ninguém. Ninguém que olhasse, desse conta, comentasse. Pouca coisa haveria, de facto, para comentar. Desta vez, contra o esperado, ele não sente nada. O cheiro da lavanda está mais próximo. Mas as mãos são de gesso. Duas mãos de gesso, a sua tomando a iniciativa e segurando a outra, canhestramente.
Ao fim de algum tempo (quanto tempo?), a mão dela ganha alguma vida. Roda, até as palmas se enfrentarem, entrelaça os dedos, e puxa a mão dele ligeiramente para a frente. Olha para o conjunto, duas mãos unidas, sem braços, sem corpos, como se não pertencessem a ninguém, como se uma das mãos não fosse a sua, primeiro aprisionada na mão dele e agora inquieta e com iniciativa. Traz as mãos para a luz. Mas não é a mão dela. É a mão de alguém e a mão dele. A mão do intruso, do imitador, do que quis ser como os outros. A expressão dela é dura. Ele sabe que aquele ar trocista, carregado de censura, quer dizer:
- És afinal igual a todos. Tão previsível. A querer o que todos querem, o que os outros dizem que fazem.
Cai a noite. Chegam os batedores das primeiras famílias, em alegre correria. Soltam-se as mãos.
A mãe dela ainda não deu conta. Nem os irmãos mais velhos. Como é que ele pôde perceber antes de todos? Não foi preciso que chegasse o Verão e ela despisse as camisolas. Antes disso ele já sabia. Não tinha palavras para aquele encanto secreto. Coleante. Não apenas o corpo mas o movimento. Os ombros, as ancas, a forma como avançam e recuam ou sobem e descem. Tudo lhe parece perturbador e excessivo. A redondez das mamas e a finura dos punhos e dos tornozelos. E tem medo que os outros percebam e que a roubem. Que a levem. A fechem em novenas. Não a deixem mais sair a esta hora das pré-pubescentes, quando as esplanadas dos Passeio dos Espanhóis estão desertas, as crianças ainda jantam e, nos apartamentos alugados ao mês, os cruéis adolescentes afiam os adereços.
Soube-o pela alteração que o faz respirar mais depressa e lhe retira o sangue da cabeça, deixando-o na meia sombra. Respirar. Controlar os batimentos do coração e a distribuição do sangue no seu corpo em alvoroço. Coisas tão fáceis e naturais e, de repente, tão complexas. Respirar sem ruído. Respirar, simplesmente. Encher o peito de ar sem suspirar. Esvaziar o peito sem gemer. Abrir os olhos sem ver. E sem que se veja essa coisa nova e vergonhosa que ela agora governa ingenuamente, apenas por se mexer à frente dele, por se espreguiçar com tanto encanto, por deixar cair o queixo contra o ombro, por juntar as escápulas avançando o peito, por cruzar o dorso de um pé contra a perna e mostrar a ballerina branca, pelo estremecimento violento da coluna, quando uma manhã inadvertidamente ele lhe tocou.
Tão exíguo o sangue na sua cabeça e tão copioso entre as pernas. Tantos humores e tão pouco sentimento. Tão poucas palavras também. Falta-lhe léxico. A palavra decisão, a palavra consentimento. E ali estão eles no Passeio dos Espanhóis. Dois seres sem lugar nas idades dos humanos, entre o dia e a noite. Pega-lhe outra vez na mão. Vão-se beijar, entre meia decisão e meio consentimento. Vão entrar, sem receio, na escuridão. Onde hoje, tanto tempo passado, ainda estão.
[ Luís Januário, crónica publicada no Jornal i ]
Estes dois chegaram ao anoitecer, que era, a par do meio-dia, uma das duas pausas da circulação no Passeio dos Espanhóis, entre as vagas descritas. Sentaram-se num banco virado para o mar, de costas para a loja dos gelados, e ficaram assim algum tempo, imóveis, silenciosos. Nesse início de noite, ele pegou-lhe na mão. Furtivamente, para quem passasse não se aperceber, embora aquela fosse a hora de não passar ninguém. Ninguém que olhasse, desse conta, comentasse. Pouca coisa haveria, de facto, para comentar. Desta vez, contra o esperado, ele não sente nada. O cheiro da lavanda está mais próximo. Mas as mãos são de gesso. Duas mãos de gesso, a sua tomando a iniciativa e segurando a outra, canhestramente.
Ao fim de algum tempo (quanto tempo?), a mão dela ganha alguma vida. Roda, até as palmas se enfrentarem, entrelaça os dedos, e puxa a mão dele ligeiramente para a frente. Olha para o conjunto, duas mãos unidas, sem braços, sem corpos, como se não pertencessem a ninguém, como se uma das mãos não fosse a sua, primeiro aprisionada na mão dele e agora inquieta e com iniciativa. Traz as mãos para a luz. Mas não é a mão dela. É a mão de alguém e a mão dele. A mão do intruso, do imitador, do que quis ser como os outros. A expressão dela é dura. Ele sabe que aquele ar trocista, carregado de censura, quer dizer:
- És afinal igual a todos. Tão previsível. A querer o que todos querem, o que os outros dizem que fazem.
Cai a noite. Chegam os batedores das primeiras famílias, em alegre correria. Soltam-se as mãos.
A mãe dela ainda não deu conta. Nem os irmãos mais velhos. Como é que ele pôde perceber antes de todos? Não foi preciso que chegasse o Verão e ela despisse as camisolas. Antes disso ele já sabia. Não tinha palavras para aquele encanto secreto. Coleante. Não apenas o corpo mas o movimento. Os ombros, as ancas, a forma como avançam e recuam ou sobem e descem. Tudo lhe parece perturbador e excessivo. A redondez das mamas e a finura dos punhos e dos tornozelos. E tem medo que os outros percebam e que a roubem. Que a levem. A fechem em novenas. Não a deixem mais sair a esta hora das pré-pubescentes, quando as esplanadas dos Passeio dos Espanhóis estão desertas, as crianças ainda jantam e, nos apartamentos alugados ao mês, os cruéis adolescentes afiam os adereços.
Soube-o pela alteração que o faz respirar mais depressa e lhe retira o sangue da cabeça, deixando-o na meia sombra. Respirar. Controlar os batimentos do coração e a distribuição do sangue no seu corpo em alvoroço. Coisas tão fáceis e naturais e, de repente, tão complexas. Respirar sem ruído. Respirar, simplesmente. Encher o peito de ar sem suspirar. Esvaziar o peito sem gemer. Abrir os olhos sem ver. E sem que se veja essa coisa nova e vergonhosa que ela agora governa ingenuamente, apenas por se mexer à frente dele, por se espreguiçar com tanto encanto, por deixar cair o queixo contra o ombro, por juntar as escápulas avançando o peito, por cruzar o dorso de um pé contra a perna e mostrar a ballerina branca, pelo estremecimento violento da coluna, quando uma manhã inadvertidamente ele lhe tocou.
Tão exíguo o sangue na sua cabeça e tão copioso entre as pernas. Tantos humores e tão pouco sentimento. Tão poucas palavras também. Falta-lhe léxico. A palavra decisão, a palavra consentimento. E ali estão eles no Passeio dos Espanhóis. Dois seres sem lugar nas idades dos humanos, entre o dia e a noite. Pega-lhe outra vez na mão. Vão-se beijar, entre meia decisão e meio consentimento. Vão entrar, sem receio, na escuridão. Onde hoje, tanto tempo passado, ainda estão.
[ Luís Januário, crónica publicada no Jornal i ]
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