A história do referendo em torno da despenalização do aborto foi ontem recordada aqui pela
jornalista São José Almeida. Esta história é muito importante e vou transcrevê-la :
"Na noite de 4 de Fevereiro de 1998, a Assembleia da República aprovou na generalidade o projecto de lei apresentado pela JS e patrocinado pelo PS, que despenalizava a interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas de gestação. Ao lado de muitos socialistas votava a bancada do PCP e a de "Os Verdes". Contra, o PSD e o CDS. Assim que o debate termina, nos corredores da Assembleia começa a correr a informação ainda não oficial: o primeiro-ministro e líder do PS, António Guterres, e o líder do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, tinham acordado que a nova lei ia ser colocada a referendo antes de passar à votação final global, para saber se os eleitores concordavam com a decisão dos deputados.
O referendo realizou-se a 28 de Junho de 1998. De um lado, os defensores do "não" bramiam o direito à vida do feto, do outro, os defensores do "sim" proclamavam a urgência de acabar com o aborto clandestino. A abstenção de 68,11 por cento tornou o resultado não vinculativo - para o ser tinham de votar mais de metade dos cidadãos recenseados -, mas a Assembleia leu o significado político de terem havido 50,07 por cento de "não" e 48,28 por cento de "sim": a lei morreu ali.
Desde então, o país continua a discutir o assunto, a extremar argumentos e a esperar que os estados-maiores dos partidos acordem sobre o momento de repetir o referendo. Isto com mulheres a serem levadas a tribunal, em julgamentos na Maia, em Lisboa e Setúbal, este último com o processo arquivado."
A lei foi votada na Assembleia. Nos corredores, vencidos, Guterres, o beato, Marcelo, o maquiavel, e o padre Melícias, o confissor comum, decidiram submetê-la a referendo. Na discussão que antecedeu o referendo o secretário geral do PS e primeiro-ministro não fez campanha. A abstenção foi de 68% o que tornava o resultado não vinculativo. Mas, como se disse atrás, as ilações políticas foram retiradas pelos mandatários dos 50,07% que votaram não.
Nesta questão funciona de forma notável aquilo a que Gil chamou “
a não inscrição”. As dezenas de milhares de mulheres que tiveram de recorrer ao aborto preferem esquecer que o fizeram. Não discutem, não olham, não votam. Pagam para que lhes não lembrem. Talvez lembrar seja entrar no campo da culpa, que a Igreja tece e amplia sem cessar. Ficam para o debate os homens, os padres, as menopáusicas arrependidas, a Laurinda Alves e as noelistas.
Estão a convocar-nos de novo para um referendo. A abolição da pena de morte e da escravatura não foram abolidas por referendo. A separação da Igreja e do Estado, o voto das mulheres e o voto universal, o divórcio dos casamentos católicos, milhares de disposições legais que são o selo da nossa modernidade, não foram referendadas. Nas diferentes épocas em que surgiram, havia opositores poderosos, com argumentação que não convém subestimar. Tivessem referendado essas medidas e não é seguro que tivessem passado.
O direito a uma maternidade responsável não é referendável. O aborto é uma questão que a mulher grávida dirime na sua consciência e no seu corpo. Não me vou imiscuir nesse assunto, não vou mais discutir com os que fizeram votos de castidade. Se voltarem a pôr urnas eu não vou lá. Não quero saber. É o meu direito à “
não inscrição”.