
Não gostei da horda pré-histórica. O frio, a brutalidade dos machos, a doença sem remédio, a fealdade das mulheres. Claro que havia a caçada, o recolhimento e a excitação que a precedia. E havia as migrações, o espírito excursionista, a esperança e o espanto de um sítio melhor. Mas dava-me mal com as feridas infectadas e as fracturas, a proximidade da morte, a hostilidade das tribos. Igualmente me aborreceu a competição entre os jovens guerreiros, uma espécie de queima das fitas permanente, com os broeiros a ditar a lei e a probabilidade tão rara de um líder simultaneamente bem dotado e misericordioso. A democracia ateniense era um avanço. Mas havia de me calhar ser estrangeiro, ou escravo. No feudalismo, servo da gleba. Nas descobertas, degredado. Na Revolução o meu comportamento não foi exemplar. Passei o século XIX em sobressalto. Quando os operários e camponeses tomaram o poder, não demoraram a dar razão ao desabafo de Ferreira Gullar no Público de hoje: “ só mesmo professor universitário é que podia acreditar que operário e camponês era melhor” . O capitalismo enfim deixou-me respirar e pude ver a maravilha da terceira via, um governo mundial de empreiteiros e banqueiros, iberdrolas e ongoings, o namorado da Carla Bruni e os ex líderes itinerantes, o Blair, o Gorbatchov e o Aznar, de Universidade em Universidade, homiliando o Juízo Final, a Jerusalém celestial onde as grandes narrativas se encontraram e o líder dinástico do PCC foi apresentado como um homem da confiança dos mercados. E quando saboreava a Sumol de laranja e a mala Hermès, cortaram-me no vencimento, disseram que a sustentabilidade da segurança social me tornava a reforma póstuma, a menos que odiasse os velhinhos e procriasse, expulsasse os ciganos, os pretos e as raparigas da Moldávia.