O novo Paradigma
Publicado no jornal i a 18 de fevereiro. O próximo texto será publicado no sábado 25 de fevereiro.
Baselitz
No fim-de-semana passado caminhei perto de Sever de Vouga. O trajecto era o mesmo de há uns anos. Demasiados, dei-me conta. O acesso ao ponto de referência é agora fácil. A queda de água está no centro de um pequeno parque de merendas, deserto nesta manhã fria de Fevereiro. Há por todo o lado marcações de provas de todo o terreno. Numa curva, alguém de bom humor montou uma instalação com um sofá, uma televisão e um frigorífico.
Os eucaliptos e as acácias descem até ao rio e invadem tudo. Este país onde caminhamos é agora, sem transição, rua da estrada ou selva de mimosas. A povoação mineira, que conheci no primeiro estádio de abandono e pilhagem, é já uma discreta ruína. Algumas paredes espectrais, nenhum telhado. Os silvados impedem o acesso ao rio. Numa volta do caminho, a surpresa de uma álea de coníferas e depois, incólume, a casa do engenheiro.
Tem as janelas entaipadas mas resiste, como as japoneiras e os muretes de buxo. O chão desta zona está atapetado de pétalas e de pequenas pinhas. Foi aí que parei para me lembrar de ti. Mas por mais que me tivesse esforçado não ouvi o teu riso, o brilho dos teus dentes nem a voz com sotaque de Barcelos.
Mudou o paradigma, pensei. Agora são mimosas, escombros, estradões. Haverá ainda um tempo para a morte das camélias ao abraço mortal dos invasores. Olhei para cima. Os troncos imponentes dos pinheiros da encosta estão enfaixados com trepadeiras, como varizes disformes, descendo das copas.
Lembrei-me da frase de Max Planck: o paradigma não muda por os cientistas velhos mudarem de opinião; o paradigma muda porque os cientistas velhos morrem. Este mundo morreu. Caminho sobre os seus destroços como um sobrevivente e o que piso é uma terra sem préstimo, espoliada do chumbo argentífero. Não me lembro sequer da mulher com quem descobri estes trilhos. Fonte, arbusto de sangue, cabras da urze. Os poemas que líamos, as palavras que usávamos são como os sapatos da época. Sal, resina, harpa. Se por acaso os encontramos, percebemos facilmente que serviam para outros passos. Para outro chão, outra humidade, outra emoção, outra ortografia. É preciso dizer esta frase terrível: já não é o tempo da menstruação.
O novo paradigma vem até aqui de 4x4. Ruidoso, enquanto houver gasolina e revistas da modalidade, com fitas e bandeiras que assinalam os percursos. Rápido e poluente. Como um Paris-Dakar do vale do Vouga, sem ninguém para a fotografia.
Ando mais um pouco e encontro um pastor. Afinal ainda há cabras ou bichos como cabras. Comem as ervas recolhidas numa padiola, fogem de mim mas voltam, curiosas. Um dos cabritos tem cornos pequenos, afiados. O pastor diz-me qualquer coisa confusa. Vai cortar os cornos do animal ou vai comê-lo em breve, não consigo entender. Seja como for, é perigoso nascer com cornos entre animais de manjedoura. Por mais esforçado que seja o pastor, os cornos do cabrito podem magoar os outros comensais.
Este pastor foi cozinheiro. Trabalhou para o engenheiro, já depois do fecho das minas. Cozinhava para ele e para os amigos dele, quando os havia. Cozinhava para o criado preto. E depois para o criado branco, na prisão, quando ele enganou o engenheiro e se desgraçou. Frangos tenrinhos e outros pitéus para a senhora do engenheiro, quando ela estava, que era do Porto e não gostava destas paragens, acostumada à cidade e a outras mordomias. O engenheiro deixou-se ficar por aí após o fecho da mina. Primeiro esperando ordens da administração das minas, depois trabalhando para a Companhia da Celulose. Foi ele quem plantou os primeiros eucaliptos. Um homem da transição. Isto o pastor não diz. Mas sabe. O engenheiro, na casa das camélias, no alto da colina, com a aldeia mineira em baixo como um Stalag, foi um construtor de paisagens, um homem encavalitado em três épocas: o Ultramar, o chumbo e a celulose. O pastor encarna uma evolução regressiva. Mas neste novo paradigma, depois da velocidade, ele é que ficou para contar.
Créditos: Max Planck foi Prémio Nobel da Física no princípio do século xx.
Herberto Helder ensinou a falar os tresloucados dos anos 60/70. De colher na boca
Baselitz
No fim-de-semana passado caminhei perto de Sever de Vouga. O trajecto era o mesmo de há uns anos. Demasiados, dei-me conta. O acesso ao ponto de referência é agora fácil. A queda de água está no centro de um pequeno parque de merendas, deserto nesta manhã fria de Fevereiro. Há por todo o lado marcações de provas de todo o terreno. Numa curva, alguém de bom humor montou uma instalação com um sofá, uma televisão e um frigorífico.
Os eucaliptos e as acácias descem até ao rio e invadem tudo. Este país onde caminhamos é agora, sem transição, rua da estrada ou selva de mimosas. A povoação mineira, que conheci no primeiro estádio de abandono e pilhagem, é já uma discreta ruína. Algumas paredes espectrais, nenhum telhado. Os silvados impedem o acesso ao rio. Numa volta do caminho, a surpresa de uma álea de coníferas e depois, incólume, a casa do engenheiro.
Tem as janelas entaipadas mas resiste, como as japoneiras e os muretes de buxo. O chão desta zona está atapetado de pétalas e de pequenas pinhas. Foi aí que parei para me lembrar de ti. Mas por mais que me tivesse esforçado não ouvi o teu riso, o brilho dos teus dentes nem a voz com sotaque de Barcelos.
Mudou o paradigma, pensei. Agora são mimosas, escombros, estradões. Haverá ainda um tempo para a morte das camélias ao abraço mortal dos invasores. Olhei para cima. Os troncos imponentes dos pinheiros da encosta estão enfaixados com trepadeiras, como varizes disformes, descendo das copas.
Lembrei-me da frase de Max Planck: o paradigma não muda por os cientistas velhos mudarem de opinião; o paradigma muda porque os cientistas velhos morrem. Este mundo morreu. Caminho sobre os seus destroços como um sobrevivente e o que piso é uma terra sem préstimo, espoliada do chumbo argentífero. Não me lembro sequer da mulher com quem descobri estes trilhos. Fonte, arbusto de sangue, cabras da urze. Os poemas que líamos, as palavras que usávamos são como os sapatos da época. Sal, resina, harpa. Se por acaso os encontramos, percebemos facilmente que serviam para outros passos. Para outro chão, outra humidade, outra emoção, outra ortografia. É preciso dizer esta frase terrível: já não é o tempo da menstruação.
O novo paradigma vem até aqui de 4x4. Ruidoso, enquanto houver gasolina e revistas da modalidade, com fitas e bandeiras que assinalam os percursos. Rápido e poluente. Como um Paris-Dakar do vale do Vouga, sem ninguém para a fotografia.
Ando mais um pouco e encontro um pastor. Afinal ainda há cabras ou bichos como cabras. Comem as ervas recolhidas numa padiola, fogem de mim mas voltam, curiosas. Um dos cabritos tem cornos pequenos, afiados. O pastor diz-me qualquer coisa confusa. Vai cortar os cornos do animal ou vai comê-lo em breve, não consigo entender. Seja como for, é perigoso nascer com cornos entre animais de manjedoura. Por mais esforçado que seja o pastor, os cornos do cabrito podem magoar os outros comensais.
Este pastor foi cozinheiro. Trabalhou para o engenheiro, já depois do fecho das minas. Cozinhava para ele e para os amigos dele, quando os havia. Cozinhava para o criado preto. E depois para o criado branco, na prisão, quando ele enganou o engenheiro e se desgraçou. Frangos tenrinhos e outros pitéus para a senhora do engenheiro, quando ela estava, que era do Porto e não gostava destas paragens, acostumada à cidade e a outras mordomias. O engenheiro deixou-se ficar por aí após o fecho da mina. Primeiro esperando ordens da administração das minas, depois trabalhando para a Companhia da Celulose. Foi ele quem plantou os primeiros eucaliptos. Um homem da transição. Isto o pastor não diz. Mas sabe. O engenheiro, na casa das camélias, no alto da colina, com a aldeia mineira em baixo como um Stalag, foi um construtor de paisagens, um homem encavalitado em três épocas: o Ultramar, o chumbo e a celulose. O pastor encarna uma evolução regressiva. Mas neste novo paradigma, depois da velocidade, ele é que ficou para contar.
Créditos: Max Planck foi Prémio Nobel da Física no princípio do século xx.
Herberto Helder ensinou a falar os tresloucados dos anos 60/70. De colher na boca
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