Os leões do Serengeti e a possibilidade frontal
Vemos os leões do Serengeti como se nos estivéssemos a despedir deles. Pensamos um pouco na vida dos homens e mulheres que filmaram estas imagens, nos seus comentários judiciosos, na face perigosamente queimada pela exposição ao sol inclemente, com lesões pré malignas nos lábios e nariz, conduzindo jeeps coloridos e de suspensão incómoda, tratando os leões pelo nome, conhecendo as histórias de cada família, identificando os machos que rondam os arredores e em breve irão desafiar o leão envelhecido para tomar a liderança do grupo e cobrir as fêmeas. As pujantes leoas esquecerão então os seus leõezinhos sacrificados e emprenharão do seu assassino. Esta visão antropocentrada do mundo natural deve irritar os cientistas de todos ramos e os meus eventuais leitores, seja qual for a sua proveniência. O antropocentrismo é de facto uma visão enviesada.Mas conheço um mal pior: o especismo, a discriminação dos animais não humanos, a legitimação da sua utilização sem limites para a alimentação, vestuário, experimentação científica ou espectáculo circence.
J.M.Coetzee escreveu sobre este tema algumas conferências desconcertantes, criando uma personagem, Elisabeth Costello, uma escritora australiana nascida em 1928 e convidada por várias universidades para abordar a relação entre os animais humanos e os outros. Uma das conferências, justamente intitulada As Vidas dos Animais, viria a ter uma edição autónoma, acompanhada de textos de Marjorie Garber, uma crítica literária, Peter Singer, um dos mais eminentes defensores dos direitos dos animais, e Barbara Smuts, uma antropóloga da Universidade do Michigan que investigou o sexo e a amizade nos Babuínos. E é treslendo Smuts que gostaria de tecer um comentário humano, após o episódio da BBC Natural World a que me referi no início.
Vemos os leões na sua típica organização social: um grupo de fêmeas aparentadas, as residentes, seguidas pelas numerosas crias e dois machos, em coligação, de saudável juba. Perto, alguns leões jovens, nómadas, excluídos do grupo quando tinham 4 anos e desde aí vagueando à procura da sua oportunidade. O macho ou machos do grupo acasalam com as leoas residentes sempre que podem. Isto é, raramente, se acreditarmos nos documentários. As crias lutam ou brincam todo o tempo. Entre si ou com os progenitores, antecipando atitudes e treinando reflexos que serão muito úteis nas capturas e nas verdadeiras batalhas de território.
Por vezes, o leão de juba consegue aproximar-se de uma fêmea, encostar-lhe os ombros poderosos, separá-la do grupo. Percebe-se que se trata de um ritual de sedução. A leoa nunca fita o macho, nunca o encara nem se coloca de frente. No que lhe diz respeito, o reconhecimento e aceitação do par não necessita da visão. Deita-se, agachada , erguida nos membros anteriores, numa postura que o macho interpreta como de consentimento. Então o leão copula-a por detrás, rapidamente. Debruça-se sobre o dorso dela e dá-lhe uma mordidela apaixonada na nuca. Vêem-se os caninos proeminentes e o focinho de leproso simpático. Ela não pestaneja, no curto período de penetração. Não se lhe perscruta nenhum esgar ou movimento que possa ser interpretado como prazer, agrado, alegria, emoção. A impassibilidade é total. Levanta-se sem cerimónias dando fim à cópula. O macho segue-a enquanto pode e ela rosna-lhe inesperadamente, abre ameaçadora a enorme bocarra . Ele afasta-se, resignado. Na verdade, a passividade dela não é absoluta e talvez seja ilusória. A existência da juba nos machos como sinal ostentatório de detenção de bons genes é uma prova de que, também entre os leões, são as fêmeas quem escolhe. E talvez os nossos estereótipos de afecto perturbem uma correcta apreciação do amor entre os felídios. Seja como for, a visão destes episódios deixa-me à beira das lágrimas. Por causa dos leões, e do seu destino trágico. E por causa das leoas, também, e da gratidão que devemos às fêmeas humanas. Foi a sua maravilhosa biologia que impôs os longos preliminares, o estro permanente, a possibilidade frontal.
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