Este ano, ao contrário do que vinha
sucedendo, não foi assim tão evidente que Mary Cristmas tivesse um caso com
Epiniuiar. Mary Cristmas esteve quase sempre sozinha, como se ninguém se quisesse
lembrar do calendário. Uma coisa de cada vez, era o que pareciam pensar. Mary é
mais segura, já se sabe com quem contamos. Bacalhau e couves, azeite e alho, a
família reunida em armistício. Epiniuiar é um parceiro instável. O que sabemos
dele já nos basta. É incontornável, mas que seja quando tiver de ser. E assim
Mary foi ficando sozinha, muito lembrada, mas sozinha.
Nestes dias abri a televisão por três
vezes. Só vi profetas, ou pobres figurantes balbuciando as
palavras da salvação. Veio um homem do PNUD explicar a crise do euro. Em termos
simples. Tinha as mais altas credenciais e apresentava-se com o resumo de uma
conferência que, de facto, veio a proferir em vários templos certificados: a
SIC, o Grémio e a apresentação que a SIC notícias faz do Expresso, por exemplo.
Afinal as credenciais eram forjadas. Era bom de mais para ser verdade. Um alto
funcionário das Nações Unidas preocupado com a pobreza do nosso país e com soluções alternativas às da troika? O próprio
documento com que se apresentava,
antes referido, era um plágio. E a questão que se põe é: Se era um
plágio onde está o documento verdadeiro. E o seu autor? Se o Artur é um
profeta, onde está o que fala através dele?
O outro profeta é um frade franciscano
que responde na SIC notícias. A cassete da Igreja na variante populista, uma
mistura de horror aos ricos e aos aparelhos democráticos, com uma mensagem
salvífica que ora surge em refrão, ora como muleta retórica, debitada em
torrente homílica. O importante
neste frade é a linguagem desinibida, irreverente, o sotaque beirão, a barba a
meio caminho entre o chique e o desleixado e o sorriso, que é infantil e
luminoso, com olhos e dentes de quem fez uma traquinice. A jornalista-pivot, habitualmente muito
profissional, transfigura-se ao
falar com o frade. E fica cúmplice, com aquele ar que têm os indignados
passivos, às vezes divertida, quase sempre magoada. Estão ali quase todos os ingredientes
do ópio novo do povo: a Igreja e a
entrevistadora de grande audiência. Eles dão à turba espectadora a dose certa
de indignação e desalento, revolta
e submissão, poder e passividade.
Há quase sempre, entre comentadores fixos e jornalista-pivot uma relação complexa. Os jornalistas-pivot
têm, com os seus comentadores, uma
relação de posse. Tratam-se pelo nome, com uma entoação que sugere
familiaridade, como se um diminutivo estivesse eminente. Se a jornalista é
conhecida por Leonor, o comentador chama-lhe Maria Leonor e nós ouvimos Nônô, enternecemo-nos e, se se dá o caso de termos
pituitária, tumba!, lá vai um bolus
de prolactina. Somos, enquanto membros da vasta audiência, parte daquela
família. Amanhã, quase sem darmos conta, a opinião deles será a nossa opinião.
Alguns comentadores já não comentam, ou fazem-no intermitentemente. No resto do
tempo vão ali, ao reality show, passar um bocadinho, como antes os mentores da
juventude faziam nas mesas dos cafés estudantis, pavoneando-se perante as
tertúlias boquiabertas. Medina
Carreira, numa semana em que a vida não lhe correra de feição, não se lembrava
de nenhum nome, data ou catástrofe e ali esteve, meio amnésico, ecolálico,
enquanto a “sua” jornalista o conduzia com maternal carinho.
A audiência funciona como a legião
privada dos comentadores, os pobres que estes” retiram da mendicidade para o
seu serviço”. Mas os comentadores são os pobres do “seu” pivot e, como disse Montaigne, partilham com ele os
luxos e as voluptuosidades.
O frade fala para o seu povo e para o
povo em geral. Fá-lo através da sua pivot. A atenção veneranda dela introduz no
discurso do frade uma mistura explosiva de gabarolice ( ele ufana-se de ter
estado na manifestação frente a Belém), erotismo (que nas figuras castas da
Igreja tende rapidamente a assumir a expressão ardente do misticismo) e sacrifício.
Oscila permanentemente entre o Armagedão e a visão da Jerusalém celestial e
assim vão os olhos dela, clareando, ou vincando os contornos negros das
pálpebras. O jogo subtil das câmaras não deixa perceber se é a chama do
discurso dele que lhe ilumina o rosto ou se é ele quem modula as palavras à
mudança do semblante dela.
É bonito de ver, mesmo para quem, como
eu, não pertence a nenhuma audiência, nem espera nada da Mary nem do
Epiniuiar.
Montaigne, Pequeno Vade-Mécum, Actes-Sud, Antígona para a versão
portuguesa
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