Por vezes sós, por vezes tantos
Nos últimos dias o meu clube perdeu, por duas vezes, e por
duas vezes entristeci. Não apenas fiquei triste, como me senti culpado. Por não
ter investido suficientemente na vitória do meu clube, por não ter acreditado como
devia, por não ter ido aos estádios onde os dois jogos se desenrolaram, por não
ter esperado pelo jogo, concentrado e silencioso, por não ter gritado como os
outros adeptos, feito a onda, aplaudido. Em ambas as ocasiões, pressenti a
derrota, breves momentos antes de ela acontecer. Vi estremecer as malhas quando
a bola ainda não saíra dos pés ou da cabeça dos inspirados adversários. Juntei,
na fracção de tempo em que ocorreram, os sinais de mau augúrio: a face do
inglês clamando vitória, a entrada em jogo do suplente, a concessão de livre de
canto por parte do defesa improvisado, as movimentações sem bola dos jogadores
na pequena área, o pôr-do-sol, a queda da garrafa de água, a frase insensata do
comentador. Uma das câmaras focou um membro da claque adversária, na tensão que
precede a explosão do salto. Eu, contra o que mais queria, adivinhei-lhe o júbilo.
Vi o grande plano da entrada em
campo do suplente e li, horrorizado, as parangonas do dia seguinte, nos jornais
que há anos deixei de comprar: “saído
do banco para a glória”, ou “de segunda opção para a fama”.
Gosto dos entusiasmos colectivos. Da corrente de
cumplicidades que se gera entre gente quase desconhecida. Desse mínimo
denominador comum que nem precisa de ser dito. De alguns sinais de indumentária,
das pinturas faciais, dos corpos transfigurados, da excitação contida. Gosto
deste sentimento de pertença. Uma das raras vezes em que o meu clube triunfou e
se formaram desfiles públicos, tentei integrar-me. Mas a adrenalina esgotou-se
rapidamente. Toda a celebração necessita de acontecimentos que a mantenham e
exaltem: a chegada da equipa à praça da cidade, o avistamento dos ídolos, a
taça agitada na varanda da Câmara, o discurso inaudível do presidente. Ou de um
inimigo: os adeptos do clube rival, os árbitros, o “sistema”, um político
desleixado que tenha revelado, exageradamente, uma fé clubista adversa. O meu
ânimo esmoreceu quando os meus companheiros de celebração começaram a insultar
o adversário e a saltar, sem sair do lugar, para não serem paneleiros. Voltei
para casa, mergulhado numa tristeza sociológica e na melancolia de não ter
conseguido, ao menos por essa via, uma identidade.
Como acredito na participação cívica fui a uma manifestação
de agricultores. Parecia promissor. Mas não percebi as palavras de ordem, a
obsessão em largar tomates e hortaliças na via pública, a extensão da marcha, a
rudeza dos dirigentes e a escassez de trabalhadoras rurais.
No verão passado, integrei uma concentração contra as
touradas. Foi perfeita. Os objectivos são nobres e o êxito possível. Simultaneamente
simples de enunciar e susceptíveis de se complexificarem à medida que os
enumeramos. Evitar o sofrimento inútil de um animal, como o touro, só pode ser
uma boa causa. Ao salvar o touro melhoramos também os energúmenos que, nas bancadas, se alegram com a vista do seu
sangue derramado. O touro é simultaneamente um animal que se aprende a nomear
na infância e um poderoso mito. O touro da Guernica com a mulher entre as
pernas, o touro que Europa ingenuamente montou numa praia de Sidon e que a amou
em Creta, o touro da Osborne, de negros colhões pendentes, que era o perfil das
estradas de Castela quando O’Neill lhe chamou a tão acaudilhada, o touro
adorado em Mênfis, o touro que andou à solta em Viana. E do outro lado,
reforçando a nossa razão apenas com a sua insistente ignorância, os desgraçados
defensores das touradas, os marialvas, a dizer “estêjamos” e a atirar os
cavalos contra os manifestantes. Gostei, francamente. O nível de consciência de
quem participava era elevado, o índice de massa corporal abaixo do percentil
25, as T-shirts modestas, a organização apenas a necessária para fazer uma
convocatória decente e escolher o lugar mais adequado para a demonstração.
Hoje sei que a nossa identidade é múltipla, interseccional,
transversal. Esta complexidade contém o vislumbre de uma identidade (enfim
possível), porque composta de fragmentos de todos os mundos (possíveis) em que
nos movemos e enfrentamos, nem sempre como touros bravos e surpreendentes. Como
disse A.C. Grayling e cantou José
Afonso, somos ao mesmo tempo filhos e netas, pais, crianças que se julgam
adoptadas, heróis e votantes, europeus e africanos, celtas e magrebinos, o
touro branco e Europa, o mar, navio, chalupa, escaler, moço, homem e mulher.
Amatya Sen, Identidade e violência , Tinta da China, 2007
A.C.
Grayling, Ideas that Matter, A personal guide for the 21st century, Weidenfield,
2009
Carlos de Oliveira, Descrição da Guerra em Guernica, in
Trabalho Poético, Assírio e Alvim, 2003
Alexandre O’Neill, Renfe, in Poesias Completas, Assírio e
Alvim, 2000
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