30 abril 2012

A humildade em Herisau




publicado no i a 28 de abril de 2012
Robert Walser morreu num asilo psiquiátrico em Herisau, uma aldeia de Appenzell Ausserrhoden, na Suíça alemã. Passou aí os últimos 23 anos da sua vida. Uma das suas raras visitas foi Carl Seelig, a quem se deve o interesse actual pela sua obra. Seelig era escritor e crítico e acreditava que o empenhamento numa boa causa humanitária dava sentido à vida. A visita periódica a um escritor em desgraça era certamente uma dessas obras meritórias. Quando visitou pela primeira vez Walser, em 1936, desconhecia parte da sua obra e da sua singularidade. Escreveu um livro chamado “Passeios com Walser”, editado na Alemanha em 1976 e, ao que é do meu conhecimento, nunca traduzido entre nós. Walser foi internado com 50 anos. Sentia que nunca faria o suficiente para garantir a imortalidade e que, de certa forma, lhe era impossível continuar uma vida independente. No asilo levou uma vida solitária. A Carl Seelig, que lhe perguntava se escrevia, deu a célebre resposta “Não estou aqui para escrever, mas para enlouquecer.”


Há poucos anos fui a Herisau, na esteira das deambulações do Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas. Não levava o livro, que relata as atribulações de um homem cujo projecto era desaparecer. Nem nenhum texto de Walser. A & Etc publicara em 2000 “A Branca de Neve”. No ano seguinte, uma pequena editora, a Granito, dera à estampa “O passeio e outras histórias”. A seguir, a Relógio D’Água editara sucessivamente “O Salteador”, “A Rosa”, “Jakob von Guten”, “O Ajudante” e, mais recentemente, “Histórias de Amor” e “Os Irmãos Tanner”. O ano passado, a Cotovia imprimiu “Histórias de Imagens”, um belo volume reunindo impressões despertadas por quadros célebres. Mas eu não conhecia alguns desses livros e perdi o pequeno caderno onde anotei algumas das impressões da viagem. Fui de comboio para St. Gallen e dormi numa hospedaria da Bahnhofplatz chamada Metropol, onde de noite ouvi os gritos de duas criaturas que se amavam. O pequeno-almoço era bom e de manhã cedo tomei um autocarro para Herisau. Estes pormenores são certamente desinteressantes. Mas eu lera que Robert Walser desprezava os que viajam com rapidez e sabia que, aos 18 anos, quando pela primeira vez foi a Zurique, fez a pé o percurso a partir de Estugarda. Não tinha verdadeiramente nada que fazer; o tempo ameaçava chuva, mas as temperaturas eram amenas. A noite na hospedaria, o trajecto numa estrada que se chamava Kasernenstrasse e o facto de viajar sozinho criavam uma atmosfera estranha, de suspensão do tempo. Via-se pouca gente. Os carros que cruzavam o autocarro eram de baixa cilindrada e os condutores pareciam electricistas e canalizadores chamados a pequenas reparações. Em Herisau, o autocarro parou numa praça pequena que me pareceu central. Entrei num café onde não havia ninguém. Uma rapariga materializou-se atrás do balcão e perguntei-lhe pela melhor maneira de chegar ao Psychiatrisches Zentrum. O melhor era ir a pé, subindo um caminho sem árvores. Era o mês de Agosto, como acho que já revelei, o que me poupava a recordação da fotografia que, no dizer de Coetzee, a literatura sobre Walser espalhou indecorosamente. O asilo onde Walser viveu era um conjunto de casas de dimensão variável, como os hospitais especializados que Bissaya Barreto construiu na região centro do nosso país nos anos 50 do século passado. Edifícios pequenos, simulando vivendas, e depois alguns pavilhões de maior dimensão. Estava tudo razoavelmente deserto e ninguém me pediu a identificação ou sequer me interpelou sobre os motivos da minha presença. Um edifício central com uma pequena escadaria de acesso ostentava um outdoor com uma fotografia de Walser e um texto em alemão. Em frente, numa esplanada improvisada do bloco administrativo, dois homens, talvez internos de Psiquiatria, tomavam uma bebida. E durante a hora em que vagueei pelo Centro Psiquiátrico não vi mais ninguém. À excepção do encontro final, que referirei em seguida. Ninguém a quem pudesse cumprimentar, esclarecer a tradução do texto do outdoor, pedir autorização para entrar no pavilhão onde suspeitava que Walser tivesse permanecido a maior parte do tempo, descascado batatas em silêncio, respeitado rigorosamente as rotinas, vestido o colete e o casaco para as caminhadas, talvez escrito, com o “método do lápis”, furtivamente, em pequenos caracteres que enchiam bilhetes, recibos, mais de 500 folhas de microescrita.

Numa das casas ouvi ruídos como os que as mãos experientes produzem a rachar a lenha. E noutra, barulho de capoeiras. Mas não consegui perceber onde se situavam os pátios e, durante todo o tempo, uma sensação de incomodidade não deixou de me perseguir. Quando voltei ao pavilhão de Walser, olhei para baixo. A uma distância de 50 metros, um homem e uma mulher despediam--se. Ela estava de costas e ele era velho. Via-lhe a imobilidade, a cabeça baixa, o abandono com que lhe caíam os braços. A forma reiterada com que ela o afagava dava a ilusão de que o consolava, prometendo voltar.

Desci a encosta que leva a Herisau. À saída do asilo vi outro edifício, um parque automóvel com bastantes carros estacionados. Gente silenciosa e tímida, a que ali trabalha. Walser foi assim. Caixeiro, escriturário, publicista, empregado bancário, copista. O seu plano não era ser influente, mas oferecer serviços e sacrifícios. Escreveu sobre pessoas como ele, obrigadas à maior modéstia e cortesia.

No Marktplatz voltei a entrar no café. A turva motivação que me impelira à viagem não se simplificava. Quando Vila--Matas esteve em Herisau foi de Doutor Pasavento e este, embora em vão, fez- -se passar por um médico espanhol, um tal Ingravallo. Levava duas daquelas mulheres sem idade nem corpo que de vez em quando aparecem nos seus livros e que, neste caso, o pareciam secretariar. Eu tinha ido com o meu homem exterior, ou com aquele inimigo que julga conhecer-me e que agora, no café alemão, enquanto espero quem prepare um refresco, pergunta baixinho, com um ódio inesperado:

-Terás tu o dom da humildade?





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Os Vingadores


Cada coisa é agora o exagero de si própria. O modelo parece ser o wrestling profissional onde as regras são desconhecidas do público, tal como as formas de comunicação entre os contendores. Mas os resultados são combinados e provavelmente a maior parte dos golpes e a sua sequência. O vilão é muito mau. Os golpes magoam imenso. O árbitro é corrupto e interfere descaradamente nas decisões. Em alguns dos desportos mais sujeitos aos cânones do espectáculo, entre os quais se destaca o futebol, o contágio do wrestling profissional americano é evidente. Quando derrubados, ou, na linguagem da especialidade, “ao sentir o contacto de um adversário”, os jogadores rebolam na relva, soltam gritos de dor lancinante, ampliados pela turba e pelos grandes planos das imagens televisivas. Estas técnicas de simulação e ludíbrio destinam-se a “arrancar” uma falta e a punir ou mesmo provocar a expulsão de um opositor. Quando resultam, são consideradas pela crítica independente como um feito do jogador e tão apreciadas como um golo. O recurso à imagem lenta e o aumento do número de fiscais de campo ou o aperfeiçoamento da sua formação, não diminuiu a fraude, antes a tornou mais exigente e objeto de treino específico. O canal francês TV5 passa um programa semanal de entrevistas a actores e comediantes que decorre num cenário modestíssimo. Em contraste , o responsável, vestido e penteado como o mr . Steed dos Vingadores (série de culto dos anos 60), pisca os olhos para a câmara numa pose de afectação queer. Os entrevistados ignoram e adoptam o registo sério da cultura oficial, o que gera no espectador um efeito de perplexidade. O comportamento dos entrevistados nos inquéritos de rua e nos participantes dos fora promovidos por algumas estações de rádio possui também um ambiente de exaltação cujos efeitos são semelhantes aos do teatro brechtiano. É como se a indignação fosse encenada e se desse a conhecer como tal, para criar na audiência um saudável efeito de distanciação. Foi neste contexto que surgiram os Homens na Luta, uma paródia equívoca da indignação popular, um canto ao lado do canto, contaminando de tal forma o protesto que, quando ele surge, já não sabemos quem é quem. O serviço de ordem da CGTP ou o seu arremedo. A nossa dívida é em milhares de milhões. Os juros a 10%. Os impostos a 50%. Os ricos são escandalosamente ricos e os miseráveis desdentados. Os sacanas abatem sobreiros, plátanos, oliveiras milenares e fogem com o metro Mondego, o TGV, o aeroporto da Ota, o tratado de Lisboa, a Segurança Social, o Hospital de Todos os Santos, a ponte sobre o rio Kway, a mais valia e os dividendos. O governo eleito pelos colaboracionistas diz: é assim que tem de ser e não há outra maneira. E outra vez se ouve que será assim nos próximos mil anos. Os bons alunos têm média de 19,90 valores, tomam ritalina para competir com os que têm 19,95 e no fim do curso vão pedir emprego ao Horácio, que andou na Jota com o Pedro e é um gajo porreiro. O CR7 e o Messi já marcaram 40 golos. Os vinhos têm 15 graus. Um rapaz imolou-se numa praça de Tunes e do fumo do seu corpo nasceu uma revolução. Um ano depois um velho deu um tiro no céu da boca face ao Parlamento grego e teve direito a um funeral cheio de emoção. O modo hiperbólico estendeu-se a todos os aspectos da vida contemporânea. O pronto a vestir para consumo geral é agora superlativo: saltos ainda mais altos criando uma marcha desequilibrada, calções tão curtos que miniaturizaram as meias e a lingerie, saias que insuflaram as ancas, decotes de apneia prolongada, cortes de cabelo declarativos, imperativos e pouco imaginativos, rendas, transparências. Nada que as cortes barrocas não tivessem conhecido, mas agora na HM e na Zara. Tudo fantástico, extravagante, grotesco, hiperbólico, superlativo, burlesco. Mas tudo comédia, farsa, arremedo. Quando tudo se tornou explícito apercebemo-nos de que o mistério continua e , em algum lado, os dados voltaram a ser lançados. publicado no i a 21 de abril de 2012

16 abril 2012

O lugar de onde fala



publicado no i de 14 de Abril de 2012

Não sei como funciona o esquecimento. Mas surpreendo-me sempre com a extraordinária capacidade que tenho para apagar os acontecimentos negativos, dolorosos, humilhantes.
Nunca suportei a ideia de que podia ter inimigos. Que existisse, algures, alguém a quem, inadvertidamente, tivesse feito mal, prejudicado, ultrapassado de forma menos correcta e que me detestasse , perseguisse, ou desejasse a minha desgraça. Ideias deste tipo nunca me ocorreram. Se alguma vez a realidade me trouxe algo de semelhante foi com vigor que recalquei e esqueci completamente tais sucessos. Magoaram-me, duas ou três vezes na vida Mas, sinceramente, não me lembro. Digo que me magoaram por ser altamente provável que isso tenha acontecido. Mas não me lembro. Privaram-me da liberdade por duas vezes e fui, de certa maneira, torturado . Mas quando chegou a vez de serem presos os que me tinham atormentado, estava tão ocupado que não me passou pela cabeça perder tempo com vinganças que, mesmo hoje, seriam sempre abjectas e deslocadas. Por vezes, raramente, escrevo sobre a realidade. E acontece-me registar cenas da minha vida que , algum tempo depois, encontro. São resquícios de um tempo quase sempre desinteressante. Podiam ser de outra pessoa. Leio-os com estranheza. Se acontecem assinalar sentimentos, estes são-me absolutamente alheios. Tão longínquos como se não fossem meus. Não se distinguem das recordações literárias , ou de conversas que ouvi a outros. O passado não é apenas uma terra estrangeira. É um terreno de analgesia e anomia. As escassas recordações que convoco são imagens sem conteúdo afectivo em que alguém como eu esteve envolvido. Vejo-me sempre outro, novo e mais ágil. Alguém que reconheço como eu embora sem qualidades que o distingam. Ao contrário, se por acaso nos dias de hoje um vidro me reflecte, sempre me espanto. Dizem que a partir de um certo momento temos a cara que construímos. Quem construiu esta cara actual é digno de comiseração. Não haverá bondade em mim, como me disseram, apenas crueldade e auto centramento, vontade de agradar sem os recursos necessários para o conseguir? O meu eu fragmentado não tem passado. Nenhum passado a que se agarrar. Nem cheiros, nem sabores, nem sentimentos. Algumas imagens. Minhas ou de filmes que vi, ou de histórias que li ou ouvi. Uma imagem poderosa é a de Pierrot le fou (Godard, 1965), quando Ferdinand pega fogo ao rastilho da dinamite em que envolveu a cabeça como um turbante, e, logo de seguida, mas tarde de mais, se arrepende. O jogo e a realidade. O jogo que podemos manipular, repetir desde o princípio, recriar, embelezar, voltar a contar e a realidade disparada para o futuro, inelutável, ardendo como uma mecha no final da qual está uma explosão e no centro dessa explosão o nosso maior bem, o pobre cérebro, louquito, enlouquecido, julgando brincar, impune, e afinal vítima da brincadeira absurda. Nem tudo era desprovido de sentido e de efeitos verificáveis. No final havia uma explosão e a seguir a escuridão e o silêncio de onde viemos. A escuridão, o silêncio e a neutralidade térmica. Nem o calor que amolece nem o frio revigorante.
Não há nesta minha infinita capacidade de perdoar nenhum altruísmo, ou postura cristã. Dou a outra cara mas não o faço por humildade. Simplesmente esqueci a dor da bofetada. Só recordo o calor da mão. Sou um parvo feliz sem mérito, porque a minha felicidade é biológica e resulta do decaimento da ofensa e da desconsideração. Operada pelo tempo. Pouco tempo.
Sou conciliador. A única coisa que me irrita num debate é a inexistência de sentido ou racionalidade. A falta de lógica interna. A inconsistência formal. A falsidade. Se o meu adversário tiver alguma razão, no meio de uma argumentação fraca, é seguro que acabarei a sublinhá-la. Fascina-me a razão dos meus adversários. Sou um traidor potencial.
Esta volatilidade do meu eu estou sempre a encontrá-la nos outros. Não falo do carácter. Falo dos corpos e da sua inconstância. Falo da confusão do tempo. Ocorre-me que, para se perceber o que cada um de nós quer dizer, é muito importante que se explicite o lugar de onde o faz. Eu falo quase sempre do segundo andar de uma casa da Avenida. Enquanto escrevo estas palavras ouço a alegre algazarra das minhas irmãs , que se preparam para a ida ao concerto do grupo escocês e cantam Let’s get out of this country . Vera a mais velha, vem-me pedir uma opinião sobre o vestido, zombeteira. E mesmo sem franzir os olhos, vejo-lhe a cara vincada pela sombras, a anca mais larga, os dedos infantis manchados. Vejo tudo da frente para trás e daqui para a frente. A minha mãe lê o jornal e tira os óculos. Fotografo-a à espera de ser desmentido pelas imagens. Mas ao rever as fotos ela é sucessivamente a rapariga que nunca sorri , a mulher que escreve com uma Parker 21 , a professora do colégio Portugal, a que não verte uma lágrima, sentada numa cadeira do parlatório do Aljube. E , embora ainda não o saiba, é também a votante mais antiga da freguesia, a que viu cair as pontes levantadas para o futuro, fechar as mercearias, os talhos e as retrosarias, as lojas da rua do Comércio e as sedes dos partidos operários e camponeses. Está zangada. O meu pai chegou, eu já devia ter lavado as mãos e estar sentado à mesa. Ralha-me, mas serei perdoado.

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Casa abandonada, segundo Bonirre.


Dr Gica

publicado no jornal i a 7 de Abril de 2012


André Bonirre, tafonomista de imóveis, descreve com a exactidão possível as fases de degradação de uma construção abandonada, a saber: detecção e confirmação do abandono, esvaziamento metódico e caos, vandalismo e novas ocupações, derrocada.

Primeira fase - os sinais do abandono.
O abandono vê-se pela vegetação. O crescimento de ervas daninhas junto às portas ou portões que deixam de ter uso ou o apagamento dos rastos de pneus e dos caminhos de passagem.
Juntam-se outros sinais. Janelas sempre fechadas, poeira ou teias nas vidraças, cortinas esfiapadas, grossas correntes e cadeados ferrugentos, aberturas em redes e outras vedações.
E como prova definitiva do abandono, miúdos à solta nos pátios ou terreiros, vultos comprometidos, farsantes com máquinas fotográficas. São como os necrófagos que rondam os animais moribundos esperando a sua hora, o momento em que se torna evidente que o edifício perdeu toda a sua energia interior.

Segunda fase – o esvaziamento dos recheios.
Declarado o algor mortis do edifício, inicia-se a fase de esvaziamento do recheio, com recurso a ondas sucessivas de equipas multidisciplinares.
As brigadas de fase inicial fazem um trabalho asseado. Os armazéns de matérias primas e produtos acabados são os primeiros a ser esvaziados por verdadeiros profissionais com ferramentaria profissional. Algumas vezes, em edifícios públicos ou empresas desactivadas, são antigos trabalhadores organizados em gangs precários quem passa à acção directa. Conhecem bem o prédio, os circuitos, os depósitos e as dispensas . Aparecem em carrinhas de caixa fechada e alardeiam recursos invejáveis como empilhadores de paletes, equipamento de soldadura e corte – a que se segue a maquinaria das linhas de produção. O resultado são pavilhões vazios e limpos, paredes nuas e no solo apenas os cotos das máquinas mutiladas. Estes grupos trabalham com enorme dedicação. São como Jekyll e Hydes agora cheios de energia predatória em contraste com a placidez da sua existência funcionária. Como as larvas das moscas nos cadáveres sugam o corpo do edifício em decomposição. Quando se retiram vão gordos como pupas e deixam atrás de si um cenário de desolação. Degraus que ruem, paredes e tectos que se abatem.

Segue-se uma fase caótica. O roubo do mobiliário residual, com todo o recheio despejado para o chão, um amontoado de dossiers, facturas, catálogos, folhas de vencimento, fichas médicas, cadastro sindical, actas de reunião, processos disciplinares sumários.
Por esta altura entram as brigadas das infraestruturas - electricidade, canalização, iluminação, comunicações. Esventram paredes, arrancam tudo o que cheire a cobre, levam torneiras, balastros. Tudo o que tenha valor de transacção pode ser saqueado. As paredes que restam ficam cheias de marcas, atingidas por rajadas de metralha desta guerrilha de pilhagem. Esta fase termina com o trabalho individual de pequenos respigadores por conta própria que de entre os detritos aproveitam restos da cablagem eléctrica, fios das bobines dos rotores, migalhas.

Terceira fase – a reutilização
Terminado o saque, repartidos os despojos, os espaços começam a ser visitados por outro tipo de gente, os vândalos pós putrefactivos de fase final. Hordas de putos destroem meticulosamente os vidros à pedrada, os jovens da adrenalina travam batalhas de paint ball, erguem trincheiras e barricadas inspiradas nos vídeos dos marines, deixam pinturas gestualistas, fazem gincanas radicais com saltos em duas rodas, uma ou outra rave.
Nos intervalos dos eventos, os sem abrigo entram e agacham-se, malta da seringa que faz fogueiras para aquecer, defeca nos cantos como os gatos asseados e vai embora com os canitos a cordel, deixando para trás roupa a secar, um número surpreendente de sapatos desemparelhados e um cheiro único que anuncia outra putrefacção.

Última fase – a derrocada
O telhado deixa infiltrar as chuvas e as águas corroem as traves até ao desabamento. Poucos recordam a casa que ali houve. E estes são como os despojos amontoados: telhas quebradas, muros, entulho. Ervas daninhas.

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12 abril 2012

Exposição












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02 abril 2012

O livro de Renata




publicado no jornal i, sábado 30 de março de 2012

Quando chove forte, as águas arrastam as terras e às vezes levam as casas, na enxurrada. Na bonança notam-se os estragos. Vê-se um corte numa colina e percebe-se que a terra que recobre as rochas é afinal uma fina camada que, por vezes, nem um metro tem de profundidade.
À incapacidade de ver as transformações lentas que se operam no tempo da nossa vida chamam alguns a amnésia da paisagem ou “the creeping normalcy”. Jared Diamond conta que em Montana, no Verão, os fazendeiros não se lembram já das neves no horizonte. Mas ele, que em jovem lá passava as férias, percebeu a mudança da paisagem quando, quarenta anos depois, lá voltou. Para ele era notório que, em quatro décadas apenas, deixara de haver neves eternas. Os locais não se tinham apercebido e, quando interrogados, negaram. Um olhar estranho é sempre necessário. Quando tinha vinte anos, um amigo vindo da emigração entrou em minha casa e ao ver a minha biblioteca, não conseguiu ocultar um esgar de espanto e superioridade. Os meus livros eram uma tralha sem préstimo. Anos mais tarde tentei doá-los ao clube do bairro e recusaram-nos, educadamente. Acabei por despejá-los no alçapão que a Igreja dos Olivais conservou até há alguns anos, uma roda para livros e outros objectos abandonados. A minha terceira biblioteca está encaixotada há mais de um ano, juntamente com os salvados dos fogos de então. Não tenho necessidade de nenhum dos livros que julguei serem mais importantes do que calças ou sapatos. Precisamos afinal de muito pouco. E do que precisamos, sobretudo, é de um olhar estranho, de alguém que venha de outro lado, coma outros frutos, conheça outras paragens, outras aves, outros instrumentos, tenha acordado debaixo de outro sol, cozinhe com outros ingredientes. O talento, a inteligência, a visão poética do mundo , o que chamavam de romantismo, o humor, a criatividade são contagiosos. Infelizmente a maldade, a cupidez, a grosseria,
a ignorância, a brutalidade e a violência também são. Experimentem ir a um jogo de futebol, integrados numa claque de fanáticos. Ou a um congresso partidário. Ou ao Queimódromo. Não é chão onde cresça a ternura. Visitem, mesmo sozinhos, uma boa exposição de fotografia. Como a que o colectivo Cia de Foto, de São Paulo, fez sobre as pessoas na sombra, ou Duarte Amaral Netto sobre o doutor Z. de Coimbra, estagiário de cirurgia maxilo facial na Alemanha dos anos trinta (BES Photo 2012, até 27/05 no Museu Coleção Berardo) . No fim da visita não vos apetece a guerra. E, como ao ler um livro de Stendhal, ou ao ver um filme de David Lynch, tem-se a ilusão de partilhar um pouco daquela graça. Parece possível ser criador, poeta, pintor. Produtor de imagens. O vosso sistema nervoso central sincronizou com uma linhagem infinita de humanos, hominídeos e outros variados seres com os quais partilhamos os genes, a organização da matéria a que chamamos genes, e que nos permitem habitar o mundo, criar dele uma imagem operacional e sobreviver como for possível. A essa continuidade com as coisas, a esse devaneio produtivo, chamamos felicidade, ou outra coisa.
Renata sempre teve dons especiais . Mas agora escreve poemas, como outros pintam, cozinham ou plantam os arbustos de cujas bagas se faz o cassis. Tendo filhos a crescer, estes espantaram-se com uma nova mãe poeta. Leram e perceberam. Mas o espanto persistiu. Habituados a uma mãe consumidora, assustaram-se ao vê-la partir para outro lugar. Ou temeram a exposição que daí resultaria.
Ela própria, terminada a euforia da primeira onda criativa, e depois de reunidas as provas, se assustou. O que fazer daquelas folhas? Podia mostrar ao marido . Mas teve medo que este, ágrafo desde a tese de doutoramento, sentisse como uma exibição, ou uma ameaça, a sua súbita produtividade. Concorrer a um prémio literário? Entregar- se a uma editora? A criação doeu-lhe como uma ferida durante o tempo em que encheu o ecrã e depois ardeu como febre à medida que ia imprimindo e corrigindo. E
agora não sente estranheza nem vergonha, nem orgulho nem desprendimento. Duvida que alguma vez tenha um leitor que a compreenda. Tem vergonha da sua diferença, assim a nu.
Eu digo-lhe que não interessa quantos leitores vai ter. Um anónimo encontrará o seu livro e sentir-se-á melhor, mais próximo da terra, do ar e dos elementos, mais completo, mais rico e mais feliz. Isso durará um momento . Renata saberá, ou não. Mesmo que saiba, esquecerá. Escreverá ainda palavras melhores e mais certeiras, mais leves e limpas, mais coloridas . E depois calar-se-á. E será esquecida. E depois nada. Álvaro de Campos já disse isto, muito mais bem dito. E podíamos não ter lido.