A humildade em Herisau
publicado no i a 28 de abril de 2012
Robert Walser morreu num asilo psiquiátrico em Herisau, uma aldeia de Appenzell Ausserrhoden, na Suíça alemã. Passou aí os últimos 23 anos da sua vida. Uma das suas raras visitas foi Carl Seelig, a quem se deve o interesse actual pela sua obra. Seelig era escritor e crítico e acreditava que o empenhamento numa boa causa humanitária dava sentido à vida. A visita periódica a um escritor em desgraça era certamente uma dessas obras meritórias. Quando visitou pela primeira vez Walser, em 1936, desconhecia parte da sua obra e da sua singularidade. Escreveu um livro chamado “Passeios com Walser”, editado na Alemanha em 1976 e, ao que é do meu conhecimento, nunca traduzido entre nós. Walser foi internado com 50 anos. Sentia que nunca faria o suficiente para garantir a imortalidade e que, de certa forma, lhe era impossível continuar uma vida independente. No asilo levou uma vida solitária. A Carl Seelig, que lhe perguntava se escrevia, deu a célebre resposta “Não estou aqui para escrever, mas para enlouquecer.”
Há poucos anos fui a Herisau, na esteira das deambulações do Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas. Não levava o livro, que relata as atribulações de um homem cujo projecto era desaparecer. Nem nenhum texto de Walser. A & Etc publicara em 2000 “A Branca de Neve”. No ano seguinte, uma pequena editora, a Granito, dera à estampa “O passeio e outras histórias”. A seguir, a Relógio D’Água editara sucessivamente “O Salteador”, “A Rosa”, “Jakob von Guten”, “O Ajudante” e, mais recentemente, “Histórias de Amor” e “Os Irmãos Tanner”. O ano passado, a Cotovia imprimiu “Histórias de Imagens”, um belo volume reunindo impressões despertadas por quadros célebres. Mas eu não conhecia alguns desses livros e perdi o pequeno caderno onde anotei algumas das impressões da viagem. Fui de comboio para St. Gallen e dormi numa hospedaria da Bahnhofplatz chamada Metropol, onde de noite ouvi os gritos de duas criaturas que se amavam. O pequeno-almoço era bom e de manhã cedo tomei um autocarro para Herisau. Estes pormenores são certamente desinteressantes. Mas eu lera que Robert Walser desprezava os que viajam com rapidez e sabia que, aos 18 anos, quando pela primeira vez foi a Zurique, fez a pé o percurso a partir de Estugarda. Não tinha verdadeiramente nada que fazer; o tempo ameaçava chuva, mas as temperaturas eram amenas. A noite na hospedaria, o trajecto numa estrada que se chamava Kasernenstrasse e o facto de viajar sozinho criavam uma atmosfera estranha, de suspensão do tempo. Via-se pouca gente. Os carros que cruzavam o autocarro eram de baixa cilindrada e os condutores pareciam electricistas e canalizadores chamados a pequenas reparações. Em Herisau, o autocarro parou numa praça pequena que me pareceu central. Entrei num café onde não havia ninguém. Uma rapariga materializou-se atrás do balcão e perguntei-lhe pela melhor maneira de chegar ao Psychiatrisches Zentrum. O melhor era ir a pé, subindo um caminho sem árvores. Era o mês de Agosto, como acho que já revelei, o que me poupava a recordação da fotografia que, no dizer de Coetzee, a literatura sobre Walser espalhou indecorosamente. O asilo onde Walser viveu era um conjunto de casas de dimensão variável, como os hospitais especializados que Bissaya Barreto construiu na região centro do nosso país nos anos 50 do século passado. Edifícios pequenos, simulando vivendas, e depois alguns pavilhões de maior dimensão. Estava tudo razoavelmente deserto e ninguém me pediu a identificação ou sequer me interpelou sobre os motivos da minha presença. Um edifício central com uma pequena escadaria de acesso ostentava um outdoor com uma fotografia de Walser e um texto em alemão. Em frente, numa esplanada improvisada do bloco administrativo, dois homens, talvez internos de Psiquiatria, tomavam uma bebida. E durante a hora em que vagueei pelo Centro Psiquiátrico não vi mais ninguém. À excepção do encontro final, que referirei em seguida. Ninguém a quem pudesse cumprimentar, esclarecer a tradução do texto do outdoor, pedir autorização para entrar no pavilhão onde suspeitava que Walser tivesse permanecido a maior parte do tempo, descascado batatas em silêncio, respeitado rigorosamente as rotinas, vestido o colete e o casaco para as caminhadas, talvez escrito, com o “método do lápis”, furtivamente, em pequenos caracteres que enchiam bilhetes, recibos, mais de 500 folhas de microescrita.
Numa das casas ouvi ruídos como os que as mãos experientes produzem a rachar a lenha. E noutra, barulho de capoeiras. Mas não consegui perceber onde se situavam os pátios e, durante todo o tempo, uma sensação de incomodidade não deixou de me perseguir. Quando voltei ao pavilhão de Walser, olhei para baixo. A uma distância de 50 metros, um homem e uma mulher despediam--se. Ela estava de costas e ele era velho. Via-lhe a imobilidade, a cabeça baixa, o abandono com que lhe caíam os braços. A forma reiterada com que ela o afagava dava a ilusão de que o consolava, prometendo voltar.
Desci a encosta que leva a Herisau. À saída do asilo vi outro edifício, um parque automóvel com bastantes carros estacionados. Gente silenciosa e tímida, a que ali trabalha. Walser foi assim. Caixeiro, escriturário, publicista, empregado bancário, copista. O seu plano não era ser influente, mas oferecer serviços e sacrifícios. Escreveu sobre pessoas como ele, obrigadas à maior modéstia e cortesia.
No Marktplatz voltei a entrar no café. A turva motivação que me impelira à viagem não se simplificava. Quando Vila--Matas esteve em Herisau foi de Doutor Pasavento e este, embora em vão, fez- -se passar por um médico espanhol, um tal Ingravallo. Levava duas daquelas mulheres sem idade nem corpo que de vez em quando aparecem nos seus livros e que, neste caso, o pareciam secretariar. Eu tinha ido com o meu homem exterior, ou com aquele inimigo que julga conhecer-me e que agora, no café alemão, enquanto espero quem prepare um refresco, pergunta baixinho, com um ódio inesperado:
-Terás tu o dom da humildade?
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