Etiquetas: Correr com a cambada, Que se lixe a Troika
27 setembro 2012
“Serão ventos mais favoráveis quanto mais firmes, quanto mais hasteadas, quanto mais resistentes forem as nossas velas: as velas da nossa economia, das nossas leis, das nossas instituições; mas também da nossa vontade e da nossa determinação”.
23 setembro 2012
Em vão
(Helmut Newton)
Entre a multiplicidade de imagens das manifestações do passado fim de semana há duas que quero aqui evocar. A primeira, captada de vários ângulos e que só tardiamente, e na versão mais delicodoce, surgiu fora das redes sociais, mostra uma rapariga, Adriana, que se aproxima de um dos superpolícias de guarda à delegação do FMI, e o abraça. Ela é frágil, o cabelo cai-lhe sobre os ombros, o braço poisa no corsolete de couro e a mão direita, aberta , apoia-se na coracina. Ao pé dela, de pose e uniforme de gala, o homem é enorme. Algo entre um samurai e um homem estátua. Um guerreiro temível e um PT amigo das senhoras. Braço musculado e uma manápula moderando o braço da rapariga. Ou, já que estamos em época de Tomas Tranströmer, “usava um capacete abaulado/ como um hemisfério/ a aba ao nível do equador”. Esta imagem é útil para falar do papel da polícia nestas manifestações. A presença ostensiva de um helicóptero sobre o povo da capital pôde , no início, ser intimidatória. Mas quando as pessoas, que ainda se enrolavam na pequena Praça José Fontana, deixaram de ser contáveis e ocuparam todas as faixas de rodagem da Avenida da República, foram tocadas pela graça da imunidade e, a partir desse momento, o heli pareceu voar em torno delas como uma barata tonta. De resto, os polícias estavam calmos, contagiados pela evidente não beligerância dos protestantes. Nos momentos mais graves, quando o hino da República foi cantado frente ao FMI, a preparação dos polícias veio ao de cima. Porque houve mais do que o avanço da rapariga do cabelo frisado. Choveram tomates e um petardo e eles mantiveram uma admirável impassibilidade.
A manifestação de Lisboa acabou na Praça de Espanha, em anti clímax. A incrível ocupação do espaço contrastava com a ausência de meios acústicos, de liderança e organização (como inevitavelmente foi sublinhado). O carácter espontâneo do protesto, a sua maior força, era também a sua debilidade. Faltou a voz que traduzisse aquela raiva em palavras e propostas . O que é em si uma coisa boa, pois, tal como num work in progress, a obra está ainda aberta à multiplicidade de leituras e blindada a tentações caudilhistas.
A anomia foi contrariada por uma vanguarda que, assaltada pelo síndrome da Bastilha, rumou a S.Bento onde já não estava a Assembleia Nacional nem as Cortes.
O mesmo anti climax devem sentir os polícias. Anos de treino para dar porrada e, quando as condições objectivas estão reunidas , o programa é de contenção. A fotografia do abraço entre Adriana e o centurião, uma exibição poderosa do dimorfismo sexual da espécie, tem várias leituras, algumas perversas. Numa, ela, seguidora do Zeitgeist, segreda-lhe:
- Vocês protegem a Ordem, nós queremos destrui-la. Completamo-nos, devemos entender-nos.
Quando os bolcheviques tomaram o Palácio de Inverno encontraram uma cave com os melhores vinhos da Europa. O primeiro regime de soldados , operários e camponeses começou numa ressaca de grandes colheitas. Se os manifestantes tivessem tomado a sede do FMI encontrariam um apartamento com mobiliário de escritório e coca cola na geleira. Não é a mesma coisa. E aqui voltamos às imagens fortíssimas. Uns momentos antes das objectivas terem registado o abraço de Adriana ao seráfico guerreiro, uma outra mulher cantava a Portuguesa, à beira das lágrimas. Quando lhe perguntaram porque chorava, ela disse:
- Porque vai ser tudo em vão. Como sempre.
- Porque vai ser tudo em vão. Como sempre.
E tinha razão, embora as suas lágrimas merecessem outra sorte. Quem governa é o dispositivo económico, como explicou Giorgio Agamben em O Estado de Excepção, e António Guerreiro, no Actual, brilhantemente lembrou. O dispositivo é assegurado pela aliança entre os sovietes financeiros (bancos , seguradoras e grandes empresas) e o Estado servil. O dispositivo não se perturba com multidões ordeiras , tomates, very lights. Tendo algumas figuras simbólicas - como o Dr. Vítor Constâncio, distraído enquanto governador do Banco de Portugal, na época em que o dispositivo, no BPN e BPP, roubou aos contribuintes portugueses um montante superior a 9.500 milhões de euros, e agora, no BCE, atento vigilante do cumprimento do Memorando de endividamento nacional - o dispositivo é volátil e anónimo. Conta com os seus apoiantes, a sua base social de apoio, os seus ideólogos, assalariados e outros homens de mão. Tudo gente esperta, com a matreirice de quem conhece a história ou julga conhecê-la. O Dr. Aguiar Branco é outro desses. Diz que “gosta de Zeca Afonso” e que “alguns dos seus amigos foram mesmo à manifestação”. A ser verdade, ele não sente o facto como sinal do seu grande isolamento. O seu objectivo é menorizar a indignação. Ter um pé nos interesses e outro na sociedade, através da colagem fácil a alguns emblemas que, acredita ele, já não o podem surpreender ou desmascarar. O dispositivo económico é, na fase actual, compatível com alguns enfeites democráticos, desde que o nosso estado de inanição continue a permitir que dancemos a sua valsa.
No passado sábado as multidões desceram a Avenida da República e depois inflectiram perigosamente para a Avenida de Berna, sem saber que a Praça de Espanha era a cloaca do dispositivo económico, o lugar onde toca a sineta surda de dispersar e cada um fica de novo entregue à solidão e ao destino final. A menos que ...
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20 setembro 2012
O país onde nascemos está a saque. A nós dizem-nos que emigremos, e que o desemprego pode ser um momento de grande criatividade, e dizem-nos mais coisas do domínio do absurdo que nem vale a pena reproduzir.
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19 setembro 2012
O que é que acontece quando ninguém te quer explicar como chegaste até aqui porque assim legitima o teu presente e hipoteca o teu futuro e não tem que te dizer porquê nem como, porque as coisas são mesmo assim e o caminho é acreditar ‘que esta é a única solução’ e que ‘nunca vai ficar melhor’, e que, enfim, a solução é aguentar, aguentar em silêncio e acreditar que estamos todos a contribuir para o grande esforço colectivo de resgatar um país à beira da miséria (ou já mergulhado nela)?
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18 setembro 2012
17 setembro 2012
De moto proprio
Sabes o que fiz antes de me roubarem o resto? Antes dos impostos de Outubro, do pagamento por conta, do imi, do carago? Juntei o que tinha e o que não tinha e comprei uma mota. A mota. Mil e duzentos ccs, 110 cavalos às 7.500 rotações. Apesar disso parece uma mota da segunda guerra mundial e não sei se é do lado vencedor. Parece que se esqueceram de a pintar. Rosna baixinho e depois solta-se e começa a assobiar baixinho até se tornar silenciosa como o vento no mar. Passa nas scuts tão depressa que os avençados do governo não lêem a matrícula e confunde os radares e os controles da policia. Na verdade, sendo um opositor passivo nunca cruzei a polícia material. Police, polizia, politia, policia, o raio que os parta. Nas minhas estradas não há polícias. Antes dos Pirenéus tenho companhia. L. veio ter comigo, mas por uma questão de coerência quis deixar o país de barco, para poder ver afastar-se o cabo Raso e dizer bem alto:
- Adeus terra maldita, jamais a ti regressarei.
e eu fui esperá-la a Donostia, onde chegou quase de noite. Irun-Hendaye, estradas dos Landes. A N 10 até Bordeaux e depois a estrada para La Rochelle . Sables d’Olonne e os barcos encalhados no lodo. Estradas da Bretanha, com o mar sempre à vista e os calvários dogmáticos bordejando os caminhos sinuosos. Depois sempre para Este. Chove e faz sol. Secamos os fatos ao sol, sem parar, comemos no campo, fora de horas, em restaurantes onde somos os últimos comensais. Em Saint Malo, às três da tarde, o pessoal da cozinha partilha a cotriade connosco . O chefe, de nome Foucat, abriu uma garrafa de vinho. A partir do décimo dia a mota começou a obedecer aos toques mais suaves do pensamento e somos só um - os cavalos resfolegando, a curva perfeita que vai da minha mão direita, no acelerador, ao pé que engata a mudança, e o abraço dela, as mãos nas minhas costas ou ajustadas como estribos nas minhas axilas, os movimentos suaves do tronco quando a mota se inclina. Foi também por esses dias que a mota começou a ser anti capitalista e a gasolina inesgotável no depósito. De manhã comemos croissants crocantes nos palatos, paramos numa fonte e lavamo-la, amorosamente, para os tons cinzentos do camuflado reaparecerem debaixo da lama. À noite dormimos em clareiras ou com as corujas, nos estábulos das quintas que o PAC destruiu, sobre o couro dos casacos recobrindo os capacetes. Se não faz frio, ela deixa o fecho do casaco Dainese entreaberto e eu meto a mão por debaixo da cabeça do diabinho vermelho. Uma tarde ouvimos um estranho matraquear. Os governos da União tinham começado os bombardeamentos dos bairros que se negaram ao amplo consenso. Passámos a viajar de noite. A mota tem dois faróis. Um aponta a direito e o outro varre a berma. L. vai atrás. Às vezes sinto o capacete dela a bater-me no ombro, ou nas costas, entre as omoplatas. Sei que adormeceu e guio devagar, com cuidado na forma como abordo as curvas para que as trajectórias não a coloquem em perigo. A nossa comunicação é simultaneamente elementar e profunda. Ela aperta as minhas nádegas entre as suas coxas para me chamar a atenção sobre algum pormenor da paisagem. Eu toco-lhe na face externa do joelho para me assegurar de que tudo está bem. Sim, vi a garça de cinza . Sim, vi o celeiro e as mesas onde os camponeses expõem frutas e legumes da região. Sim, vi os anúncios da sidra, do hidromel. Nos grandes trajectos olhamos os céus da Europa, as caprichosas nuvens. Paramos em todas as terras que nos lembram Proust: Illiers-Combray, Balbec. Um domingo, em Rouen temos um problema de bateria . Compramos terminais de corrente eléctrica num hipermercado aberto. De cada vez que arrancamos, depois de uma paragem, temos de fazer parar um automobilista, explicar a nossa inferioridade e roubar-lhe da bateria a energia que põe a mota a trabalhar. Na segunda feira, quando chegamos à oficina de motorizadas que localizáramos nas páginas amarelas, encontramo-la fechada. Percebemos que, como os museus, as oficinas encerram nas segundas feiras. Como chovia, alugamos um quarto num Campanile, à entrada da vila e passamos o dia a ler Max Jacob, a escrever e a trocar pequenos goles de Calvados. Jantamos andouille à maneira de Vire. Na terça de manhã o mecânico comenta como é possível que uma mota tão grande tenha uma bateria tão fraca. Levou algumas horas a carregar. E depois a mota ficou de novo autónoma, leve, incrivelmente segura, curvando tão serenamente, acelerando de forma tão poderosa que parecia saber o seu destino. Numa terra chamada Cambray vimos um circo na praça do município e parámos, tomámos café e acreditámos que éramos de um filme de Rivette, 36 Vistas do Monte Saint Lou, e ela chamou-me Castellito, rolando os erres e mostrando os incisivos mentirosos.
Rolamos mais para Norte antes do começo das chuvas e depois descemos com o rio que nasce em Berg ou guardamos a mota na garagem dos camaradas alemães e apanhamos um comboio para o sul.
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13 setembro 2012
12 setembro 2012
11 setembro 2012
10 setembro 2012
09 setembro 2012
A minha noite em casa da Çi
Os outros que me perdoem mas o grupo mais interessante
estava no belvedere. O belvedere é
uma parte do jardim votada às ervas daninhas e ao vento Norte e foi aí que eles se foram sentar.
Andava de olho neles há algum tempo. Os rapazes de barbas hirsutas contrastando
com calvícies precoces . Um de
mãos cruzadas à frente dos joelhos como Dostoievsky na Galeria Tretyakov, o
outro, Paul Verlaine pintado por Courbet em 1871. Pergunto “ quem são vocês” e um terceiro, cujo perfil lembrava o de Zola retratado
por Manet em 1886, respondeu-me
como Joaquim Albergaria o fez
naquele momento histórico em que deixou os Vicious Five para criar os
Paus. Palavras dele, o rapaz cujo
perfil lembrava o de Zola retratado por Manet em 1886. E mais não adiantaram. Mas, estando Joaquim Albergaria no
Facebook é fácil saber qual foi a resposta que o celebrizou. Não foi nesse
momento de rotura, nem ao actuar
com Rita Garganta Laranja no Festival do Silêncio clamando que cada coisa havia
de ser “útil e reciclável”mas quando lhe perguntaram pelos livros preferidos, que o bateria siamesa retorquiu ( e a
resposta ficou no FB e na história) : “Não faço ideia”.
O grupo indie-rock (ou eram indie-folk?) era mais abordável. Quando passei por eles, Joana D’Arc, a
que canta tal Sharon Van Etten , disse, como se já soubesse ao que eu ia: “gostamos
de jantares caseiros, de bons
vinhos, de Anton Corbjin, do Salão Neurótico e da amizade genuína . “É pá, parece um Manifesto”, grunhiu o
cara de cão que faz dueto com a que canta tal Sharon Van Etten, e que, embora ela ainda não o saiba, lhe há-de
estragar a vida. “E nós não gostamos de Manifestos”, disse ainda. “Nem do Manifesto que assolou a
Europa?”, perguntei a medo. “Ó pá, isso foi quando? Aqui este pessoal não
conhece Manifesto anterior a 2012,
o ano em que Joaquim Albergaria cantou na Queima do Porto e declarou o seu amor
aos carrinhos de choque”, disse o cara de cão, que como se vê é muito novo e
simpatiza comigo. Ao ouvir esta fala, os clássicos russos do Belvedere, que conhecem
todos os Manifestos do passado e do que há-de vir, pararam de falar, viraram-se
num movimento síncrono e percebeu-se que uma união entre eles e os
indie- rock (ou eram indie- folk ?) começara ali a ser selada.
Os mais velhos estavam no jardim de acesso à cozinha,
onde a Çi, de ancas roliças, cozinhava um soberbo caril vegetariano, ou no
salão das cadeiras tresmalhadas,
em pequenos grupos junto às janelas.
No jardim de entrada, Nemão, de cabeça rapada, servia , em
jarro pesadíssimo, uma bebida de
limão açucarado e cachaça, cujo teor alcoólico era tão grande que o grupo já
mal conseguia levantar-se, exceptuando Nemão, de cabeça rapada, que servia. Na
cozinha, a Çi, de ancas roliças, era acolitada por Tristão, de longos cabelos, agora tão mudado e
Isolda, a que todos ansiavam conhecer. Recolhidos aos lugares mais sombrios,
pálidos, de uma brancura cérea, o par parecia convalescer de doença grave. “Se
isto é o amor, que um mal assim nunca nos atinja”, houve quem pensasse. Pois
aquele jovem, de longos cabelos, agora tão mudado, já sorriu e praguejou, fotografou as pradarias do norte e os
mares que os barcos aqueus
cruzaram. E hoje, que resta dele? Esquálido, não tem mãos que cheguem para a que parece desaparecer no
seu peito de Atrida, mancha branca na alvura do colete de linho. De vez em
quando mexe-se, oh não estão mortos. É para lhe pôr na boca umas sementes de
gogi, como fazem as fêmeas das aves aos nasciturnos.
Algumas mulheres destacam-se : a Russa, com olhos de plácida toura, Lady Ottoline, hoje com o cabelo preso na nuca e os
dedos longuíssimos enrolando uma mortalha, a deusa Clávia, de alvos braços, a mulher anoréctica de
vestido negro que entrou comigo e me devia proteger.
E homens também: Nemão, de cabeça rapada, que verteu discretamente um ácido no meu
prato de caril ,o engenheiro Neto,
André Bonirre, preparando incansavelmente a nova temporada, os gémeos
asa de corvo e suas acompanhantes trementes.
Procuro alguém para a segunda parte da noite em casa da
Çi, de ancas roliças. Quando as sobremesas acabarem e os mais velhos partirem
levando consigo os mais novos, o vinho escorrerá nos copos e o ar toldar-se-á
de fumos. No belvedere o grupo dos clássicos russos acenderá a metafórica fogueira. Joaquim Albergaria prometerá a todos:
“no
décimo ano saquearemos a cidade de amplas ruas” .
E na roda indie Joana d’Arc dançará frenética, enquanto
se ouve
“Let's find something that
can last.
Like cigarette ash”.
Caio numa cadeira e sinto as
forças a abandonarem-me. Vejo quase tudo, com visão periférica, agora desbotada.
Tal como vi verter o ácido no meu caril e apesar disso continuei a comer, para
não interferir no destino que Nemão, de cabeça rapada, me traçara. Que ironia,
acabar numa cadeira Mademoiselle, o modelo que Starck desenhou para a Kartell. Vejo
a mulher anoréctica de vestido negro distraída, à conversa com uma das acompanhantes
trementes. Lady Ottoline e Clávia,
de alvos braços, desaparecem atrás de um reposteiro. E é então que a Russa, com
olhos de plácida toura, se debruça sobre mim, tão discretamente que parece apenas
interessar-se sobre o meu estado e ouço-lhe dos lábios as palavras finais :“Como
deixámos acabar agosto?”
Ilíada, Homero, tradução de Frederico Lourenço.
Livros Cotovia, 2005
07 setembro 2012
06 setembro 2012
05 setembro 2012
04 setembro 2012
03 setembro 2012
02 setembro 2012
A resposta de Gregers Werle
Como é que se começa uma crónica cujo tema é o fim? O fim de um ciclo. Se é verdade que demoramos a perceber que o nosso tempo está a mudar, então este não é o fim. Vivemos sempre, nas épocas de transição, um tempo equivocado. Já é outra coisa, outros os seus artífices reais. Mas como marionetas de um teatro em extinção, os figurantes do passado continuam em cena, assegurando que o que tem de ser feito será sem grande dor ou sacrifício. Ainda toca a música do passado, é a mesma a cal dos muros. Mas já tudo mudou. Se pudéssemos estar em todo o lado ao mesmo tempo teríamos percebido com antecipação. Alguns deram conta, de várias maneiras. Outros escreveram, mas não foram ouvidos. Há quem resista. E em alguns lugares há mesmo, contra ciclo, mudanças de sentido contrário. Mas no planeta em que a proximidade se tornou regra, as diferenças tendem a anular-se. Em breve estas serão as canções da nostalgia.
Há momentos reveladores. Para Elias Rukla, o professor de literatura norueguesa da Escola Secundária de Fagerborg, foi quando ouviu na sala de aula o suspiro de enfado de um aluno. Ou antes disso, quando se começou a “sentir ofendido porque os jornais e as televisões já não se dirigiam a ele”. Já não lhe apetecia ler, os debates da televisão não tinham ninguém com quem realmente se identificasse. Sentia-se “à margem”, “fora do jogo”, e magoado por isso. Precisava de encontrar as pessoas diferentes. Alguém que, inesperadamente, uma manhã, lhe citasse Thomas Mann, como acontecera uma vez na sala de professores. Mas “o espaço público que uma conversa exige estava ocupado” .
A notícia de encerramento do serviço público de televisão diluiu-se no ruído de fundo da rebentação das ondas de agosto. Uma administradora do regime escreveu na sua página muito fresca do FB que “não estava disposta a pagar os prazeres culturais de 4%”. Elias também pensou , no início, que o seu mal estar era o de uma minoria que não aceitava a sua derrota. E que era preciso ter a humildade necessária para continuar a acatar as regras da maioria, mesmo quando elas parecem absurdas.
Não se tratava de uma derrota mas sim de uma extinção. Um barco para a deportação, um campo de extermínio, uma câmara de gás, um gulag. Devemos aceitar o garrote em nome da democracia? Da vontade da maioria. Os touros de morte, a festa brava, a nossa marca cozida à blusa, o matadouro.
Outro momento revelador foi a última charla de Marcelo. Estava nervoso. Tinha feito algum trabalho de casa. Umas conversas com membros do governo, trocos que ainda lhe dão nos ministérios. Mas Judite de Sousa, antecipando-se, deu praticamente a mesma informação, ou contra informação e deixou-o no ar, sem apoio. Depois ela quis fazer uma evocação dos anos sessenta, a propósito da morte do astronauta Neil Armstrong. E ele, surpreendido, não brilhou. O seu mundo de infância também pereceu, mas isso era mais profundo do que ele podia admitir naquele momento. Sentiu a ferida da sua resposta medíocre e, em directo, começou a cansar-se de si mesmo. Ainda reagiu. Trazia uma recomendação oblíqua ao presidente e ao governo sobre os riscos da inconstitucionalidade da concessão e a habilidade para a contornar. O sorriso de contentamento e auto contemplação ainda lhe repuxou as comissuras dos lábios. Mas a jornalista interrogou-o brevemente sobre as suas contradições e ele não resistiu. A solução representa uma economia ? É possível o serviço público de uma nação independente ser assegurado por capitais privados estrangeiros? Ele pode ser, sem esforço, a opinião da Quinta da Marinha, do barão do PSD, do professor da Faculdade de Direito. Mas é mais do que isso. É a consciência do centro, o grilo falante das famílias com confessor, farmacêutico e advogado e um dia, quiçá, o seu presidente. E fica ali, imobilizado entre os interesses de um governo cujo activismo o ultrapassa e a personagem contraditória que incarna. Foi doloroso ver o envelhecimento súbito do seu rosto, as repetições das suas frases outrora tão brilhantes, as pequenas gotas de suor na fronte, a imprecisão das asserções, a ecolália relativamente à jornalista.
A Elias Rukla não se lhe abriu o guarda-chuva.
Ele apenas pedira a uma aluna que lesse o trecho fundamental de O Pato Selvagem de Ibsen, a resposta de Gregers Werle. Foi no pátio da Escola, junto ao bebedouro, depois do suspiro arrogante de um rapaz, no momento em que começava a chover.
Pudor e Dignidade, Dag Solstad, tradução de Liliete Martins, edições Ahab