La jolie rousse
Ficámos, a Luísa e eu, no pequeno hotel da Rue de Chevreuse, em
Montparnasse. À noite, quando chegávamos, o recepcionista, um homem
enorme, perguntava onde tínhamos
jantado. Rue Bréa, respondíamos. E trocávamos palavras de circunstância, antes
de subir. O nosso quarto tinha uma chave enorme com a letra A estilizada. No
primeiro dia explicaram-nos que o A simbolizava Alphabet Amoureux, o nome do
pequeno quarto do segundo andar que tínhamos alugado.
Uma noite, o recepcionista estava acompanhado. Um homem de barba
curta e cabelo encaracolado, passeava-se na pequena sala onde eram servidos os
pequenos-almoços e partilhou, discretamente, a conversa habitualmente
circunstancial que mantínhamos com o recepcionista. Dessa vez não tínhamos
jantado. Trocámos a refeição por
um concerto na Igreja da Madeleine. O Requiem de Verdi, pela Orquestra de
Paris. Eles trocaram entre si algumas palavras que não recordo.
No outro dia de manhã, antes do pequeno almoço, parei na Livraria
Tschann, no Boulevard Montparnasse, a escassos minutos do nosso hotel. Um
acolhedora livraria, com toldo verde e escaparates no exterior, milhares de
livros amontoados com algum critério, relevo para editoras pequenas , como a
Berg, onde Charlotte Delbo publicou uma carta a Louis Jouvet, o actor e
encenador francês, escrita em 1951 e que Jouvet nunca leria, pois morreu nesse
ano, e acabou por ser publicada em 1975, “quando todas as recordações lhe
voltavam”. Mas nessa ocasião eu não conhecia ainda Delbo e a minha atenção foi
sobretudo atraída pela correspondência de Simone de Beauvoir com o seu amante
americano, Nelson Algren, troca que decorreu entre os anos de 1947 e 64, e que
Sylvie Le Bon de Beauvoir editou, sem as cartas de Algren que, apesar de
estarem na posse da filha adoptiva da Beauvoir, não puderam ser publicadas por
imposição dos herdeiros de Algren. Durante quase vinte anos, aqueles dois trocaram cartas de amor
através das quais se pode conhecer melhor a multiplicidade desconcertante do
Castor. O livreiro conhecia bem o livro, procurou-me a edição de bolso que eu
viria a comprar e ajudou-me quando
lhe manifestei interesse em ver a
correspondência, igualmente
volumosa, de Simone de Beauvoir com Jacques Bost. Foi já quando pagava que me apercebi de que o livreiro era
afinal o homem que vira na noite anterior no Hotel. Ele reconhecera-me. Disse
que visitava muitas vezes Gino, assim se chamava o recepcionista, e que
mantinham uma sólida amizade ancorada no gosto mútuo da literatura e na
partilha de longos serões na recepção do Hotel da Rue de Chevreuse.
Gino é um leitor esclarecido, contou ele. Traçou o seu próprio
caminho, baseado em gostos peculiares, e numa verdadeira fúria de ler e de
perceber, determinação essa que os anos têm depurado e fortalecido. No início,
ele quase só conhecia alguma literatura popular e Alexandre Dumas, sobretudo
Georges, o livro em que surge o personagem do crioulo. Mas quando gosta, ele
faz interpretações profundas e originais. Tudo começou com Lisa, uma mulher que
trabalhava na nossa livraria, continuou o livreiro. Lisa era uma judia cuja
família fugira para o Brasil durante a segunda guerra mundial e voltara depois
da Libertação. Nessa altura, ela era ainda jovem e casara com um jornalista do
Le Monde. Anos depois, este homem ajudara o livreiro e um amigo, chamado
Yannick, a comprar a Livraria Tschann. Lisa trabalharia na Tschann durante
muitos anos. Quando era já bastante velha, saía à noite da Livraria e passava
pelo Hotel da Rue de Chevreuse, de regresso a casa. Através dos vidros via Gino
a ler. Uma noite bateu no vidro, empurrou a porta e disse que estava cansada e
que precisava de fazer uma escala. Quando se despediu, emprestou-lhe um livro.
Mais tarde disse-lhe onde trabalhava e
que podia usar a livraria como biblioteca, pagando no final do mês e de
acordo com as suas disponibilidades. Foi assim que Gino leu dezenas de autores,
primeiro os favoritos de Lisa, depois outros que ia descobrindo.
Um dia Lisa deixou de vir e, algum tempo depois, em lugar de Lisa veio
Fernando, o livreiro.
Na última noite que passámos em Paris jantámos num pequeno
restaurante chamado Le Timbre, onde nos sentámos, cotovelo com cotovelo, com a
jovem ruiva canadense e o seu amigo inglês, bolseiros em Paris, no exacto
momento em que se apaixonavam. No fim da refeição ela levantou-se para ir a uma
pequena divisão das traseiras, o que originou uma complexa movimentação de
mesas e cadeiras. Quando o rapaz se voltou a sentar, cravou os olhos nas suas
longas pernas e, mal ela saiu do seu campo visual, um sorriso de beatitude
afivelou-se-lhe no rosto, o sorriso estulto dos homens nas fases iniciais do
enamoramento.
Quando chegámos ao Hotel contei a Gino a minha ida à Livraria
Tschann e o encontro com Fernando, bem como as revelações deste sobre os seus
hábitos literários. E, como ele sorrisse, interroguei-o sobre os livros que
estaria a ler entretanto. Gino sacou de uma mochila e começou a mostrar os
livros que escolhera para aquela noite. E entre eles estava a colectânea de
poesia francesa onde, entusiasmado, escolheu o poema de Guillaume Apollinaire
intitulado La jolie rousse .
- Leia, por favor- pediu ele. E perante a minha reserva, começou:
Eis-me
diante de todos um homem cheio de senso
Conhecendo
da vida e da morte o que um vivo pode conhecer
Agora ouço-me a ler. Leio devagar, apesar de tudo
com poucas hesitações.
Sede
indulgentes quando nos comparardes
-Pare – ouço-o sussurrar. Pare um pouco. E Gino
cumprimenta um casal que entretanto se aproximara e a quem entrega uma chave
enorme, por sinal com o símbolo P. P de Paraíso, é o que penso.
Com
aqueles que foram a perfeição da ordem
Nós
que em toda a parte buscamos a aventura
E acabamos como dois jograis, enquanto a Luísa
assiste divertida.
Eis
que retorna o verão a estação violenta
E
a minha juventude morreu como a primavera
Ó
sol chegou o tempo da Razão ardente.
Spectres,
Mes compagnons, Charlotte Delbo, Berg International, 2013
Georges,
Alexandre Dumas, folio
La Jolie
Rousse, Guillaume Apollinaire
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