15 dezembro 2013

Adèle





Quero falar deste filme tal como o vi, sem ter lido nada sobre ele. Talvez injustamente, considero a crítica cinematográfica quase toda preconceituosa, capelista e contaminada pelo estrelato: o sistema que reduz a análise de um filme a meia dúzia de linhas para os preguiçosos e umas estrelas para quem está com pressa. Desta vez, não li nada. Nem sequer as entrevistas a Julie Maroh, autora da BD que deu origem ao filme, os relatos dos acontecimentos que envolveram a rodagem e foram revelados, ruidosamente, antes da sua exibição e apoteose, nomeadamente com a atribuição do galardão máximo do Festival de Cannes. Ignorava assim que “o encontro luminoso” do filme, na passadeira de uma praça de Lille, fora filmado durante horas e repetido até à exaustão. A celebrada maratona de sexo obrigou a 700 takes. As duas actrizes estavam rodeadas por três câmaras, holofotes e pelos técnicos, que mais tarde e através dos seus sindicatos, denunciaram o não pagamento de horas extraordinárias e o incumprimento de preceitos contratuais. As próprias actrizes deram voz a algum descontentamento: o realizador, Abdellatif Kechiche, interrompia a cena sempre que “sentia não haver desejo.” Numa entrevista recente, Kechiche confirmou: não tendo outro guião para aquela cena, além da captura do desejo, ele cortava, sempre que, no seu julgamento, este decaía.
Vi assim o filme com aquela mesma inocência que Kechiche reclamou para o visionamento da sua obra.

O primeiro impacto foi o encontro com o rosto de Adèle. Notavelmente parecido com o de Marie, de Au Hasard Balthazar, o filme quase esquecido de Robert Bresson.  Marie, aliás, Anne Wiazemsky, a actriz de Bresson, teve um singular trajecto. Podemos segui-lo através da publicação das memórias, a mais recente das quais editada pela Gallimard com o título Une Année Studieuse. Wiazemsky filmou Teorema para Pasolini e La Chinoise para Jean-Luc Godard, entre outros. Neste livro mais recente conta como escreveu uma carta a Godard, então já uma figura emblemática da “nouvelle vague”, e como desse encontro resultou um casamento de doze anos. Neta de François Mauriac e bisneta de um príncipe russo, tinha 18 anos quando rodou com Bresson a peregrinação do burro Balthazar. A mesma idade que Adèle celebra no filme. Adèle Exarchopoulos, a Adèle de Kechiche.

O mesmo rosto oval, o mesmo olhar perplexo, profundo, melancólico. O mesmo lábio inferior polposo que Kechiche filma, babando-se nas fases profundas do sono. O método Bresson parece repetir-se com Kechiche, embora a repetição esgotante seja para o realizador franco-tunisino uma tentativa de captura da “naturalidade” e para Bresson a eliminação de qualquer veleidade interpretativa, um método para que os actores se esqueçam de que o são e assim acedam à condição de “modelos” (modèles).
Adèle Exarchopoulos e Anne Wiazemsky, separadas por 47 anos. A Vida de Adèle e Au Hasard Balthasard, separadas por 47 anos. Talvez se ignorem, como Kechiche ignora Bresson. Anne saiu do filme de Bresson no quase anonimato e Adèle teve honras de estrelato nas passadeiras de Cannes. E no entanto, o cinema acendeu e revelou duas histórias semelhantes.
A história de Adèle é a do início da sua vida de adulta, desde o fim da escolaridade no Liceu Pasteur à vida profissional como educadora de infância. E, ao mesmo tempo, a história do encontro com Emma, uma aluna do 4º ano de Belas Artes, detonador do seu desejo lésbico. 
A relação entre as duas é desigual. Adèle é mais nova, , come esparguete à bolonhesa e não tinge os cabelos de “azul, a cor mais quente”. Adèle cozinha, acolhe, serve os convidados, uma e outra vez, lava a louça, esforça-se e anula-se. O seu mundo, a sua vida profissional, aquilo que pensa é secundarizado, interessando apenas a um rapaz que faz de duplo em filmes americanos, ou ao colega educador, profissões da base da pirâmide de consideração pequeno-burguesa. As conversas das belas-artes são, no entanto, muito pouco elaboradas, denotando uma falta grave de assessoria: generalidades sobre Egon Schiele e Gustav Klimt e, mais tarde, sobre a obra de arte como mercadoria. Os desenhos de Emma são de um mau gosto arrepiante.

Adèle acaba por ser expulsa da casa comum, sem piedade, numa cena de crueldade doméstica onde nem sequer falta alguma violência e que, nesse momento, surge como epílogo de um percurso sacrificial.
O que fica deste filme é Adèle, “un modèle” de Kechiche, uma criação que se emancipa do criador. Vamos esquecer a
cena de sexo em que a cama é filmada como um ringue com duas atletas de WWE, e lembremo-nos dos beijos de Adèle. São uma coisa nunca vista. Envergonho-me ao vê-los, com pena e desgosto de mim mesmo. Procuro as palavras certas: sofreguidão, voracidade, avidez. As palavras geralmente usadas para  descrever este arrebatamento são tão desajustadas que soam ridículas, quando as escrevo ou digo em surdina. Já se filmou a ternura e o desespero, a inocência e a cupidez, já se filmaram beijos elípticos e explícitos, beijos dados por duplos, com ou sem latex, beijos cúmplices e falsos, apressados e roubados. Estes são beijos fora da história. Animais, hiantes, gemidos, famintos, feridos, emblemas de um ser que se vira do avesso e fica só mucosas, saliva e muco, lágrimas e suspiros. Era preciso vir uma rapariga das classes populares, que não conhecesse outro nome de pintor senão Picasso, e tivesse aprendido a gritar e a dançar nas grandes manifestações estudantis a favor do ensino público, para que se beijasse com este fervor, como se o beijo e os seres beijantes estivessem agora a ser inventados.
A melhor cena do filme é, perto do fim, a do encontro no café. Mas uma já não ama (se alguma vez foi capaz de amar). E é então que, no meio do ranho e do desejo reprimido, Adèle revela toda a sua superioridade face a Emma, conformista e resignada à insatisfação sexual, como habitualmente sucede aos predadores.

Anne Wiazemsky,  Une Année Studieuse, Gallimard, 2012
Au Hasard Balthazar, Robert Bresson, 1966
La Vie d’Adèle, Abdellatif Kechiche , 2013

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08 dezembro 2013

Mértola, vila morena




Mértola Vila Morena

Resumo o noticiado sobre o caso: uma professora primária acusada de ter gravado edivulgado vídeos pornográficos, utilizando material escolar e tendo por cenário a sala de aula. Um jornal deu assim a notícia:
“Os pais dos alunos da escola de Penilhos, em Mértola, onde uma professora primária terá alegadamente realizados filmes pornográficos, ficaram em choque depois de terem visualizado, na passada semana, uma das gravações que circulam em sitespornográficos onde a docente exibe o corpo em plena sala de aula. No vídeo, ao qual o jornal teve acesso, a docente, de 42 anos, usa materiais pedagógicos para acariciar as partes íntimas.
Outro jornalista registou a reacção de uma mãe: A informação de que a professora estaria envolvida em filmes pornográficos, gravados no interior de uma sala de aula do agrupamento de escolas de Mértola, não foi totalmente nova para os pais. A mãe de um dos alunos da docente explicou ao i que ao longo dos três anos em que a professora leccionou na escola, por diversas vezes a criança relatou ter assistido às filmagens, que ocorriam quando os alunos estariam no intervalo das aulas. Não queria acreditar que era verdade quando o meu filho dizia que espreitava pela janela e via o peito da professora, diz agora a encarregada de educação, que prefere manter o anonimato. Repreendi o meu filho muitas vezes, acrescenta.

O conjunto destas informações é interessante. A terminologia utilizada é, só por si, relevante e constitui material de estudo multidisciplinar. De uma primeira incursão analítica, emergem seis possíveis áreas para aprofundamento futuro, eventualmente passível de financiamento externo.
1. Uma professora primária. A referência ao grau de ensino não é despida de intenção. Consultando aleatoriamente três sites da especialidade, pode constatar-se que as professoras primárias competem com as enfermeiras, os canalizadores, os personaltrainers e as madrastas jovens na lista das personagens favoritas das gravações de parcos diálogos e duvidosa densidade dramática. A professora primária, a personagem feminina que sucede à mãe na história de vida das crianças, deve constituir uma poderosa imagem erótica para os adultos infantilizados que este tipo de pornografia convoca.
2. A sequência dos acontecimentos: os vídeos circulam, os pais visionam, a professora é reconhecida, entram em choque, queixam-se ao Ministério, os jornais noticiam.Quase se pode ver o ambiente de planície desertificada em que isto sucede, como numlivro de Dino Buzzati: o calor, o vento suão, o rumor dos cafés, a primeira mulher-mãe escandalizada, que se sente investida pela responsabilidade social de denunciar.
3. A reacção da mãe: ao longo de três anos repreendeu o filho que espreitava. Não queria acreditar. De facto, é difícil acreditar. O rapazinho de 6 anos até dezembro, aluno do 1º ano, espreita a professora que acaba de chegar a Mértola. Vê-lhe o peito. Conta à mãe. É repreendido. Novo ano escolar e ele, já no  ano, reincide. Terceiro ano. Sucesso escolar. Mas o rapaz, agora com 8 anos, não aprende que espreitar é feio. Volta a espreitar. E como não cegou, fulminado pelo peito revelado da professora,volta a contar. E como a mãe não queria acreditar, nem viu para crer (ainda, passados 3 anos), volta a repreender.
4. A idade da professora. Não é uma jovem. É uma mulher de 42 anos, a mesma geração das mães de MértolaTemos espectáculo para todas as idades. Dos edipianos mal resolvidos aos velhinhos libidinosos.
5. O cenário: em plena sala de aula. Plena. Não um recanto da sala. Uma carteira.Junto à porta. Frente ao quadro. Não. Em plena sala de aula da Escola Primária do CentenárioDesde Salazar, o espaço sagrado da aprendizagem. Depois dos espaços de oração e do segundo lanço das escadas do Parlamento, não se conhece um espaço público tão sagrado. O cruxifixo, Cavaco Silva e o olhar do aluno que raspou o vidro da janela e há três anos espreita, repreendido pela mãe incrédula. Em Tristana, do último Buñuel, outro jovem, este mudo, nunca mais esquecerá.
6. Uso de materiais pedagógicosSugestão simultaneamente previsível, imaginativa e sempre sacrílega: foi profanado o pressuposto da pedagogia única.
O caso da professora de Mértola é exemplar e talvez nenhum outro, nos últimos anos, tenha sido tão sugestivo e desafiante. De facto, a mulher de Mértola gravou, num tempo não lectivo, com intimidade, um produto artístico que depois divulgou. O facto de o ter feito no espaço singular da sala de aula decorre do conteúdo propalado. A sexualidade é um mistério, como disse Elisabeth Badinter. E o objecto fílmico que esta mulher produziu só fazia provavelmente sentido no contexto em que foi realizado, naquele espaço e com a duração do recreio, a iminência da descoberta e do escândalo.
A última notícia a que tive acessoA professora do ensino básico do agrupamento de escolas de Mértola que fez filmes pornográficos na sala de aula tomou uma dose de comprimidos no dia 16 de Novembro, um sábado, alegadamente para tentar o suicídio. Deixou cartas de despedida aos familiares e conduziu alguns quilómetros até uma barragem próxima de casa.”
É um dos finais possíveis. Para quem não acredita que em Mértola haja apenas a memória dos mouros, a comissão de mães e uma estrada que leva até à barragem, resta fazer chegar estas palavras à professora: se alguma vez, numa escola como esta, o miúdo que fui a tivesse espreitado, não teria contado em casa, nem porventura os meus pais a teriam denunciado, nem o material teria deixado de ser pedagógico.


Tristana, de Luís Buñuel, 1970

01 dezembro 2013

Lilith



Às cinco horas de uma tarde do fim de Novembro as ruas que levam ao Canal Saint-Martin enchem-se de gente que recolhe as crianças nas escolas. Hoje, a água do canal já reflecte as luzes e, numa ponte, dois rapazes fumam marijuana. Um pequeno grupo conspira à volta de uma carroça decorada com autocolantes amarelos que anunciam uma manifestação alternativa. Na padaria vende-se pão, brioches e bolos escandalosos com morangos e creme chantilly. Pelas janelas entreabertas, ao rés-do-chão, vêem-se oficinas familiares com costureiras, mulheres como eu, que brunem roupa, lojas discretas de pronto-a-vestir de contrafacção. Um casal ri alto e caminha sem destino aparente. Dois amigos, um homem e uma mulher, hesitam à porta de uma casa silenciosa. Um pai ouve o filho a contar como passou o dia, uma mulher debruçada num carrinho de rodas cantarola para um bebé sonolento. Uma rapariga entra num café, senta-se, despe o casaco, solta o cabelo, pousa os óculos. Junto ao Colégio Louise Michel, a porteira olha-me com preocupação: - Não pode entrar- dispara. Não se percebe se tem medo de mim, se de alguém que pode chegar a qualquer momento, por detrás dela. Nunca fiz tenção de entrar no átrio do Colégio Louise Michel, onde ainda ecoam as correrias das crianças cujos pais tardam. Vejo a porteira em sobressalto, a Marianne atrás dela com um decote tão generoso como o meu, a lápide recordando as crianças judaicas do bairro deportadas para os campos de morte, a leste, mais de quinhentas ali no X ème, é o que está escrito. Digo à porteira que o medo dela não tem razão de ser e que Louise Michel é um nome de mulher livre. Recomeço a caminhada, cruzo de novo o casal peripatético, ela é muito alta e jovem, ele já velho e espalhafatoso, fala e ri sonoro para uma audiência imaginária que, dos passeios, lhe dará certamente razão na disputa que arrasta com a jovem de andar desengonçado, sorrindo agora com desaprovação, como se sorri a um louco ou a uma criança que nos foge.
Numa ponte, um casal sobe os degraus de acesso à plataforma e dir-se-ia que sobem para os plátanos ou para o céu de chumbo de Paris, no Canal Saint-Martin. Perto do Hospital Saint-Louis, uma mulher para, junto à montra de um ginásio decorado com manequins estereotipados, de bicípites inchados, cabelo como o Tintin enquanto jovem, T-shirt de manga curta a rebentar nos peitorais oleosos. Vejo esta gente que amo serenamente, os homens, as mulheres e as crianças das orgulhosas cidades ocidentais, os filhos dos fuzilados da Comuna, dos deportados da Nova Caledónia, dos canaques e dos cabilas, e tenho uma alucinação benigna, a ilusão de partilhar a vida deles, de poder entrar nos quartos mal iluminados da Rue Saint-Maur, iguais àqueles onde me deito nestas tardes, putain de vie, mas onde encontrasse por fim gente de verdade, crianças a quem pudesse ajudar a arrumar os livros, um homem que pagasse mas me quisesse contar a sua vida que de certa forma resume todas as vidas. E chegada aqui, ao coração privado desta crónica, ao ponto em que a Rue Saint-Maur se afasta do Hospital e se cruza com a pequena Rue du Buisson, encontro-me no momento de máxima liberdade desta escrita e deste passeio. É o fim do dia, um cartaz numa parede descola-se e mostra, em tons de cinzentos, uma mulher acariciando o torso decepado de um velho que sorri. Le détournement. Chamo minhas a estas palavras com que escrevo, completamente fora do contexto e sem nomear as fontes, as que Louise Michel ensinava às crianças das escolas livres, livres como ela, livres como eu, ou aos camaradas anarquistas, o texto escondido no meio das frases, no espaço interior da escrita, no bairro árabe, corte de cabelo a três euros, fruta barata, música chamando à oração, botas pretas de cano alto, cadáveres de aves decompondo-se, entre a estação de metro da Gare de L’Est e Belleville, entre o anoitecer e o jantar, entre a empresa do genoma humano e o mercado de legumes, entre a Rue des Récollets e a Rue Oberkampf, entre os miúdos à saída da escola e vocês, mortos de quem já posso falar, enfim mortos, putain de vie, posso enfim nomear os que amei, putain de galère, e como me amaram e tiveram, os excessivos sentimentos que lhes dediquei, contrariando a razão e os bons conselhos dos que apesar de tudo tiveram reconhecido sucesso, e bem longe dos bairros populares ou mesmo aqui, na loja de bicicletas ultraleves ou dobráveis, pneus coloridos, alforges de marca, engenhosos cadeados de segurança, clandestina, c’est pas vraiment que j’aie toujours envie, aqui no ângulo morto das câmaras fixas e dos micro direccionais, aqui de luvas para não deixar DNA, palavras luvas onde soa a senha da revolta, bandeira negra, oh Louise, Louise, if it's true / tell it, tell it to me, vamos vingar todos os meninos levados nos comboios para leste, como se pôde escrever poesia depois deles, escrever sobre comboios, cuidado, aproxima-se o fim do texto, o sítio onde vou de novo ficar a descoberto, talvez aqui me leiam outra vez, Rue de La Fontaine du Roi, estou a ser filmada, tiro as luvas, porto-me bem, “não corras riscos, caminha devagar”, c’est la façon a moi de faire la guerre, na direcção do metro de Belleville, em campo-peito-aberto.

Louise Michel (Rebel Lives), Nic Maclellan (org), Ocean Press, 2004.

Tom Waits, Tell it to me, 1998



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