Adèle
Quero falar deste filme tal
como o vi, sem ter lido nada sobre ele. Talvez injustamente, considero a
crítica cinematográfica quase toda preconceituosa, capelista e contaminada pelo
estrelato: o sistema que reduz a análise de um filme a meia dúzia de linhas
para os preguiçosos e umas estrelas para quem está com pressa. Desta vez, não
li nada. Nem sequer as entrevistas a Julie Maroh, autora da BD que deu origem
ao filme, os relatos dos acontecimentos que envolveram a rodagem e foram
revelados, ruidosamente, antes da sua exibição e apoteose, nomeadamente com a
atribuição do galardão máximo do Festival de Cannes. Ignorava assim que “o
encontro luminoso” do filme, na passadeira de uma praça de Lille, fora filmado
durante horas e repetido até à exaustão. A celebrada maratona de sexo obrigou a
700 takes. As duas actrizes estavam rodeadas por três câmaras, holofotes e
pelos técnicos, que mais tarde e através dos seus sindicatos, denunciaram o não
pagamento de horas extraordinárias e o incumprimento de preceitos contratuais.
As próprias actrizes deram voz a algum descontentamento: o realizador,
Abdellatif Kechiche, interrompia a cena sempre que “sentia não haver desejo.”
Numa entrevista recente, Kechiche confirmou: não tendo outro guião para aquela
cena, além da captura do desejo, ele cortava, sempre que, no seu julgamento,
este decaía.
Vi assim o filme com
aquela mesma inocência que Kechiche reclamou para o visionamento da sua obra.
O primeiro impacto foi o
encontro com o rosto de Adèle. Notavelmente parecido com o de Marie, de Au
Hasard Balthazar, o filme quase esquecido de Robert Bresson. Marie, aliás, Anne Wiazemsky, a actriz
de Bresson, teve um singular trajecto. Podemos segui-lo através da publicação
das memórias, a mais recente das quais editada pela Gallimard com o título Une
Année Studieuse. Wiazemsky filmou Teorema para Pasolini e La Chinoise para
Jean-Luc Godard, entre outros. Neste livro mais recente conta como escreveu uma
carta a Godard, então já uma figura emblemática da “nouvelle vague”, e como
desse encontro resultou um casamento de doze anos. Neta de François Mauriac e
bisneta de um príncipe russo, tinha 18 anos quando rodou com Bresson a
peregrinação do burro Balthazar. A mesma idade que Adèle celebra no filme.
Adèle Exarchopoulos, a Adèle de Kechiche.
O mesmo rosto oval, o mesmo
olhar perplexo, profundo, melancólico. O mesmo lábio inferior polposo que
Kechiche filma, babando-se nas fases profundas do sono. O método Bresson parece
repetir-se com Kechiche, embora a repetição esgotante seja para o realizador
franco-tunisino uma tentativa de captura da “naturalidade” e para Bresson a
eliminação de qualquer veleidade interpretativa, um método para que os actores
se esqueçam de que o são e assim acedam à condição de “modelos” (modèles).
Adèle Exarchopoulos e Anne
Wiazemsky, separadas por 47 anos. A Vida de Adèle e Au Hasard Balthasard,
separadas por 47 anos. Talvez se ignorem, como Kechiche ignora Bresson. Anne
saiu do filme de Bresson no quase anonimato e Adèle teve honras de estrelato
nas passadeiras de Cannes. E no entanto, o cinema acendeu e revelou duas
histórias semelhantes.
A história de Adèle é a do
início da sua vida de adulta, desde o fim da escolaridade no Liceu Pasteur à
vida profissional como educadora de infância. E, ao mesmo tempo, a história do
encontro com Emma, uma aluna do 4º ano de Belas Artes, detonador do seu desejo
lésbico.
A relação entre as duas é
desigual. Adèle é mais nova, , come esparguete à bolonhesa e não tinge os
cabelos de “azul, a cor mais quente”. Adèle cozinha, acolhe, serve os
convidados, uma e outra vez, lava a louça, esforça-se e anula-se. O seu mundo,
a sua vida profissional, aquilo que pensa é secundarizado, interessando apenas
a um rapaz que faz de duplo em filmes americanos, ou ao colega educador,
profissões da base da pirâmide de consideração pequeno-burguesa. As conversas
das belas-artes são, no entanto, muito pouco elaboradas, denotando uma falta
grave de assessoria: generalidades sobre Egon Schiele e Gustav Klimt e, mais
tarde, sobre a obra de arte como mercadoria. Os desenhos de Emma são de um mau
gosto arrepiante.
Adèle acaba por ser
expulsa da casa comum, sem piedade, numa cena de crueldade doméstica onde nem
sequer falta alguma violência e que, nesse momento, surge como epílogo de um
percurso sacrificial.
O que fica deste filme é
Adèle, “un modèle” de Kechiche, uma criação que se emancipa do criador. Vamos
esquecer a
cena de sexo em que a cama
é filmada como um ringue com duas atletas de WWE, e lembremo-nos dos beijos de
Adèle. São uma coisa nunca vista. Envergonho-me ao vê-los, com pena e desgosto
de mim mesmo. Procuro as palavras certas: sofreguidão, voracidade, avidez. As
palavras geralmente usadas para
descrever este arrebatamento são tão desajustadas que soam ridículas,
quando as escrevo ou digo em surdina. Já se filmou a ternura e o desespero, a
inocência e a cupidez, já se filmaram beijos elípticos e explícitos, beijos
dados por duplos, com ou sem latex, beijos cúmplices e falsos, apressados e
roubados. Estes são beijos fora da história. Animais, hiantes, gemidos,
famintos, feridos, emblemas de um ser que se vira do avesso e fica só mucosas,
saliva e muco, lágrimas e suspiros. Era preciso vir uma rapariga das classes
populares, que não conhecesse outro nome de pintor senão Picasso, e tivesse
aprendido a gritar e a dançar nas grandes manifestações estudantis a favor do
ensino público, para que se beijasse com este fervor, como se o beijo e os
seres beijantes estivessem agora a ser inventados.
A melhor cena do filme é, perto do fim, a do encontro
no café. Mas uma já não ama (se alguma vez foi capaz de amar). E é então que,
no meio do ranho e do desejo reprimido, Adèle revela toda a sua superioridade
face a Emma, conformista e resignada à insatisfação sexual, como habitualmente
sucede aos predadores.
Anne Wiazemsky, Une Année Studieuse, Gallimard, 2012
Au Hasard Balthazar,
Robert Bresson, 1966
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