O meu amigo era pivot de um canal de televisão. Disse-me estar plenamente convicto de que as pessoas se fartaram do comentador com resposta formatada, grande fluxo, alto débito e baixo conteúdo. Havia agora público para um novo tipo de comentário, feito por gente comum, que ora sabe um pouco menos, ora ligeiramente mais que o telespectador. Que hesita, gagueja, se envergonha, se cala. Acho que ele estava a pensar no José Luís Peixoto.
Aceitei. Hoje foi a minha estreia, logo a seguir ao telejornal da uma.
Perguntou-me de que forma evocava a Susan Sontag.
Como uma mulher alta, muito alta, elegante, enérgica, uma mulher linda.
Era o que me vinha à cabeça. Mas o André Bonirre tinha-me dito para não falar de mulheres logo no primeiro programa. Aliás o que ele me disse foi:
-Não haverá maneira do teu cérebro aceitar um sistema de quotas decente? Metade pelo menos dos teus pensamentos devem ser sobre homens.
Lembrei-me da Bósnia e de Susan Sontag em Sarajevo. Na altura não sabia posicionar-me bem, metia-me confusão aquele unanimismo contra os Sérvios, acompanhei de longe a polémica com Peter Handke. Lembrei-me dela em Cartagena das Indias a mandar vir com o Garcia Marquez sobre os direitos civis em Cuba.
Lembrei-me do livro que reúne as
short stories de Robert Walser, prefaciado por ela.
Da doença e da luta contra a sua concorrente, a que nos mata antes.
Lembrei-me da fotógrafa loura da Vanity Fair e de como Virginia Woolf e Bloomsbury duraram afinal até essa New York do nosso tempo.
Como tinha de dizer alguma coisa disse o nome dos livros traduzidos de que me lembrava:
Contra a Interpretação, trinta anos depois,
O Amante do Vulcão, sim desses tenho a certeza. E
Olhando o Sofrimento, da Gótica. A discussão em torno do fascínio das imagens de guerra, nos dois livros sobre Fotografia onde nenhuma imagem é consentida.
Nessa altura o meu amigo pivot, para quebrar o silêncio, começou a passar imagens do tsunami e eram só corpos nus, uma galeria de corpos nus que o mar devolve às praias.
(Foto de Anne Leibowitz)