24 fevereiro 2013

Vamos ao Circo



Não sei como fomos ali parar. A minha irmã, com quem tentei avivar a recordação, diz que é mentira. Ela, pelo menos, não esteve lá. Mas lembro-me bem. Era uma noite de Verão nos anos 60 e tinham alinhado algumas centenas de cadeiras nos terrenos do Estádio Universitário, frente a um estrado improvisado. Organizados por um organismo do Estado corporativo com o bizarro nome de FNAT , – por extenso, Fundação Nacional para a Alegria do Trabalho –, os eventos ( ninguém dizia eventos nos anos 60) chamavam-se Serões para Trabalhadores. Um nome na linha do Serviço Nacional de Informação de António Ferro, o que restava da paródia do fascismo popular e de massas dos anos 40. Tudo aquilo nos era estranho. O meu pai e a minha mãe desprezavam a baixa cultura que poucos anos depois seria chamada de nacional-cançonetismo. Detestavam as corporações, os homens de fato cinzento, atentos, veneradores e obrigados. Não tinham ilusões sobre a FNAT e, em condições normais, ridiculizariam os Serões para Trabalhadores e a forma disfarçada como, através da diversão, carreavam ao regime apoios ingénuos. Mas lá estávamos, os quatro.
Tínhamos lugares marcados numa fila da frente, reservada para a União de Grémios de Lojistas. À nossa frente uns figurões. As Autoridades. O presidente da Câmara, o governador civil, o reitor do Liceu, o comandante da Legião e, mesmo à minha frente, Sua Excelência Reverendíssima, Dom Ernesto Sena de Oliveira, o bispo de Coimbra, que se encontrava acompanhado por um padre. Este padre tinha uma figura fantástica, e segredava permanentemente ao ouvido de D. Ernesto palavras que o faziam assentir com gravidade. Um amigo do meu pai, da Gráfica de Coimbra, veio cumprimentar e, reparando no meu interesse, disse qualquer coisa que me fez sentir ignorante sobre as profundidades da vida religiosa e acentuou a sensação de estranheza relativamente ao acontecimento. Hoje sei que o misterioso personagem era o padre mexicano Agustín Fuentes, que andava a preparar-se para ser postulador da causa da beatificação dos pastorinhos, visitara Coimbra e conseguira uma entrevista com a irmã Lúcia, que encontrou muito triste, pálida e abatida. Com uma colorida identificação na lapela davam na vista os participantes do Congresso Beirão e do Encontro dos Bibliotecários e Arquivistas. Um grupo de quartanistas de Farmácia, trajado, apesar do calor, foi particularmente saudado. Sempre me espantei com o círculo de conhecimentos do meu pai. Fez-nos levantar várias vezes para cumprimentar e ser apresentados a antigos amigos, que tinham em comum serem diferentes dos amigos mais recentes e falar com sotaque beirão. Um deles, com um nome sonante, lembrou que era um dia importante para a cidade porque o Museu Machado de Castro fora elevado a Museu Nacional, e fiquei contente, porque achei que era matéria com que o meu pai podia concordar com facilidade.
Os Serões tinham a locução de uma glória da Emissora Nacional, Fernando Correia, que ainda hoje empresta a sua bela voz a programas de futebol, na rádio e na televisão, e na época contracenava com uma apresentadora, cujo nome era Maria Júlia.
O ambiente era caloroso, de expectativa. Cheirava à erva acabada de semear e a colina da Universidade estava iluminada. Lembro-me da ausência de cor e de pele, que eram a marca daqueles anos de gente parda e tapada. A única excepção eram os decotes das senhoras casadas, que mostravam a linha de separação das mamas, muito direita, como um símbolo gráfico. Não havia raparigas, ou se havia eram filhas dos comerciantes do Grémio, magras e amedrontadas. À entrada do recinto, dois homens, conhecidos como o Calmeirão e o Pianinho, vendiam pevides.
Revelando um profundo conhecimento da história pátria e a identificação com os propósitos subjacentes à ideia de FNAT, o apresentador começou por evocar o 9º centenário da Tomada da cidade aos Mouros. A sua voz era hipnótica. Pareceu-me sempre ser a voz do Regime, ou a outra voz do regime, depois do Artur Agostinho. Jovial, alegre, sem que se percebesse bem porquê, mas certamente pela nossa singularidade de sermos pobres e não termos coca-cola, nem droga, loucura e morte, nem democracia, porque éramos umas crianças grandes que ainda não estavam preparadas. Nunca estaríamos preparados, apesar do esforço da FNAT em educar os trabalhadores, em dar-lhes os melhores cantores nacionais e estrangeiros. Como a Maria da Graça, o Franciso José e as Irmãs Remartinez. Ou o Odir Odillon. Roberto Carlos interpretou a canção Coimbra é uma lição, António Calvário os seus últimos êxitos.
O entusiasmo ia crescendo, sabiamente gerido pelo apresentador. E a certa altura do alinhamento, o homem do microfone anunciou o hino que percorre Portugal, ali interpretado pelo Coro e Orquestra da FNAT, dirigido pelo maestro Duarte Pestana. Angola… As pessoas levantaram-se das cadeiras aos primeiros acordes… É nossa… Nós ficámos sentados durante um tempo infinito… Angola… tendo à frente as batinas pretas de Sua Excelência Reverendíssima… É nossa… e do seu acompanhante… Angola… e atrás uma multidão em êxtase… É nossa… Até que o meu pai se levantou também, pondo fim àquela expectativa. O hino começava com um ruído que simulava o bater de botas de uma coluna militar…Angola… A palavra de ordem simples, inicialmente sussurrada…É nossa… Aproximando-se progressivamente, até nos atropelar com o primeiro verso, a forte declaração de guerra e posse. Angola é nossa, gritavam eles, o povo heróico português, atrás de nós, ameaçando esmagar a vil traição! Castigar o invasor, destroçar, pelejar até vencer! Lá estão eles todos a gritar: Angola é nossa, Angola é nossaÉ nossa, é nossaAngola é nossa!
Batem palmas até se cansarem. Apenas a minha irmã permaneceu sentada. Mas é tão pequenina que ninguém leva a mal e a sombra da batina de Sua Reverência escondeu o seu olhar dardejante. Já se começam a sentar. Ainda não é desta que nos esmagam. Ainda não é hoje que perceberam a nossa vil traição.
O meu pai sacudiu os olhares cravados nas costas. Voltou-se para trás e vendo os olhares reprovadores dos lojistas e das esposas, dos empregados de balcão e das esposas, cravados nas nossas costas suspeitas, disse em voz alta: - Têm um lindo hino. Vocês têm um lindo hino.


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22 fevereiro 2013

Há sempre outras hipóteses




"Por não ter cumprido as ordens do s/ Encarregado e lhe ter faltado ao respeito."




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O NIF 177.142.430





"... se todos pedirem o recibo em nome do sr. Pedro Passos Coelho, com o NIF 177.142.430 ..."



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19 fevereiro 2013

Estar Atento ~ 21 a 24 Março

18 fevereiro 2013

God has left the building



Estávamos numa reunião de trabalho quando as minhas colegas andróides interromperam para informar que o Papa resignara. As agências noticiosas têm uma imensa responsabilidade na forma como pensamos sobre a realidade. Alguém na Reuters intitulou o despacho com a frase “O Papa resignou”, ou “Bento XVI” resignou, e nas horas seguintes todos repetimos que o Papa resignou. Teria sido diferente, e certamente menos rigoroso, se tivessem dito que o Papa se demitira, abandonara o cargo ou convocara a reunião para a sua substituição. Ou ainda que Deus o demitira, que lhe dera indicações para terminar funções. Ainda hoje, alguns dias depois do anúncio, não sabemos exactamente o que aconteceu. Mas se um amigo ou parente regressasse da Terra Sem Notícias, o mais provável é que tomássemos como nossas aquelas palavras com que a nota irrompeu na tarde do dia 11 de Fevereiro e as minhas colegas repetiram na reunião.

Acho que sou sempre o mais espantado, ou aquele a quem é consentido mais espanto. As minhas colegas católicas baixaram as cabeças, também elas resignadas, ou em silenciosa e breve prece, os rapazes agnósticos murmuraram, despreocupadamente, qualquer coisa sobre a pedofilia. Alguém sabia já que este momento que vivíamos tinha acontecido pela última vez há 600 anos. Lembrei-me de que vira a queda do último império colonial clássico, do fascismo e das ditaduras europeias, do apartheid sul-africano, a implosão do comunismo, a queda imparável da social-democracia e que, talvez estivéssemos todos a  assistir a mais um acto da queda do Vaticano. Mas como a maior parte dos presentes não vivera estes acontecimentos, refreei o comentário.

Nos minutos seguintes alheei-me como pude da reunião e mergulhei num turbilhão de pensamentos. Christopher Hitchens escreveu, quando lhe comunicaram o diagnóstico da doença que haveria de o vitimar: “Já não lerei nem escreverei o obituário de velhos vilões como Henry Kissinger ou Joseph Ratzinger”. Faltou-lhe pouco para o poder fazer. Mas eu não vejo hoje Ratzinger como um velho vilão. Desfilavam as imagens das suas imaculadas vestes ondulando ao vento, dos chapéus, das rendas, dos sapatos. Curiosamente não me recordava de nenhum dos seus pensamentos. Um intelectual europeu, como gostam de o designar os intelectuais católicos, bem diferente do pugilista polaco que o antecedeu. E só me vinham à memória imagens de um velhote elegantemente mascarado. Claro que isto não diminui Ratzinger. Se me quiser lembrar de Gombrowicz não é Contra os Poetas que recordo, mas a fotografia de Bohdan Paczowsky em que ele está sentado, de perfil, e uma mulher elegantíssima, de face enigmática, nos fita frontalmente. Que recordação do magistério de Bento XVI recordam as pessoas crentes?

Num dos programas mais interessantes da rádio, A memória dos sons (http://www.rtp.pt/play/p657/a-vida-dos-sons), que Ana Aranha e Iolanda Ferreira vêm editando todos os sábados às nove da manhã, é-nos recordado que não sabemos como era a voz dos nossos antepassados. Graças a elas, ouvi Dolores Ibarruri, a Pasionaria, surpreendi-me com o seu fundo terno e maternal e pensei que se a difusão das notícias tivesse a velocidade actual os fascistas  não teriam ganho a guerra de Espanha. Gostaria de ter ouvido a voz de Margarida de Navarra, embora, mesmo se tivesse sido seu contemporâneo, essa graça me fosse certamente vedada, dada a alta probabilidade de ter nascido entre os ignaros camponeses que serviam nas vinhas de Cognac. Agora, felizmente, podemos todos ouvir a voz de Ratzinger e acharmos que deve ser um bom velhote e não um velho vilão. Vemos o chapéu Saturno, a romeira vermelha quase descuidada, a alva de mangas largas com a lingerie negra como uma segunda pele recobrindo os braços, vemos as suas meias e os múleos carmim, manufacturados pelo sapateiro Adriano Stefanelli, estabelecido em Novara, a casula, a dalmática e o fano, essas sobreposições carregadas de sentido e ao mesmo tempo absurdas, envolvendo um corpo frágil e quase andrógino. Um velhote simpático e inofensivo, tão diferente do sanguíneo sebento e vingativo do Patriarcado de Moscovo. Um velhote a quem se ouve com indulgência quando fala do que não sabe, e se enreda nas velhas obsessões da Igreja com o sexo.

Agora, como se o Vaticano tivesse querido recrear, com outros meios, o Habemus Papam de Nanni Moretti, Bento XVI veio dizer que não suportava mais o seu fardo. Fez isto como qualquer ser humano. Com a mesma sinceridade desarmante. E os homens e mulheres do Ocidente aceitaram, sem escândalo. Ouviu-se a palavra coragem. Como se tinha ouvido para Wojtyla, quando este, bradicinético e rígido já não conseguia articular uma frase completa e mal assomava à janela do Palácio. Coragem para continuar até à morte e, alguns anos depois, coragem para desistir.

É sintomático que os cardeais das diversas facções que aparecem a prestar declarações, o façam na linguagem codificada dos políticos profissionais da democracia e não na retórica romana. Ao aplaudir a decisão do Papa, as multidões ratificam a laicização da Igreja e admitem de facto que o seu Sumo Sacerdote é um vulgar ser humano, com direito à reforma ou à desistência, um santo homem, mas não o Santo Papa da catequese, primeiro infalível, depois infalível em questões de fé, finalmente um de nós, capaz de decisões boas ou más conforme o ponto de vista. Deus já não está no Vaticano. Apenas cardeais, conspirando nos intervalos de uma partida de futebol. Resignaram o Papa ou o Papa resignou-se.

Mortalidade, 2012, Christopher Hitchens , D. Quixote.
Habemus Papam , 2011, Nanni Moretti.


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10 fevereiro 2013

Viva Portugal


No último livro de Paulo Varela Gomes um médico narra o que aprendeu com um doente singular, que identifica como P.
No Verão de 2012, uma coincidência especial juntou P. a William Beckford, o celebrado autor de Diário em Portugal e Espanha, 1787 à actualidade, a meteorologia à crise do imperialismo. Não foi esta a única coincidência. Houve outra, “a mais revoltante das coincidências”, a que ligou uma doença fatal diagnosticada a P. à decomposição iniludível do seu país.
A P. não resta já nenhuma ilusão sobre a natureza da espécie humana. Ele deseja a demolição impiedosa das casas, bairros, prédios construídos nos últimos 50 anos, do marcelismo aos nossos dias, o fim da espécie humana, o seu aniquilamento total e selectivo, a morte cruel dos caçadores, “sofrendo muito”.
A consciência de um fim próximo devolve-lhe a atenção dos pequenos seres  vizinhos: o pássaro, o arbusto, as “esvoacinhas”, as andorinhas, as crias dos corvos. E, em oposição aos sinais de destruição, que são os despojos do progresso, o lixo do progresso, a imundície não degradável do progresso, a celulose com que o progresso embala os produtos de consumo rápido de manufactura perfeita e banalizada, “o mundo tristíssimo do design”, ele enumera alguns sinais de futuro: o caramanchão, a horta cultivada pela mulher, o cheiro dos javalis, animais que não se alimentam da fibra e do sangue de outros animais, reciclam a natureza, saem das tocas onde se esconderam dos carnívoros nocturnos e descem com os bacorinhos para o vale, trazendo consigo um cheiro que é o do ilang negro.
P. visita a história do país dos últimos séculos através de relatos dos viajantes. O já citado Beckford, escrevendo do Ramalhão, em Sintra, no final do século XVIII, um homem de nome estranho, Cox Macro, um alemão chamado Link, o médico francês Joseph Barthelemy Carrère, um tal Crawfurd. Quase todos descreveram um país exótico, com um olhar orientalista, um país expelido da Europa, onde, à semelhança do que acontece entre muçulmanos, as mulheres da aristocracia se ocultam na sombra das adufas e dos véus, arredadas do Passeio Público, que está delimitado por um gradeamento e encerra ao pôr do sol. Um país deserto ao anoitecer, sem cidades e sem mulheres, de praças bisonhas e aias encapuçadas. Um país de gente pequena e pele tisnada, hirsuta, semelhante aos indianos do norte e do centro, aos magrebinos e aos turcos. Como o francês Carrère disse, o “mais selvagem e bárbaro povo da Europa, o mais ignorante e menos civilizado”.  E ele, P., concorda, com uma ressalva. Selvagem e bárbaro, sim. Um país de aldeias e medo, com um povo de bárbaros. Mas de gente digna.
A dignidade, foi perdida “com o fim das revoluções , em meados do século XIX, confirmado pelo falhanço da República, pelo salazarismo e pela derrota do 25 de Abril com a entrega do país à União Europeia”. A dignidade pessoal aprendeu-a P. na luta contra a polícia , durante a ditadura. “Dominar o medo da polícia”, escreve, “era aquilo que desde criança identificava com  a diferença entre a dignidade e a vergonha”. E ele tivera medo muitas vezes, “não fora tão longe quanto pudera”, mas “nunca recuara definitivamente, nunca fugira para não voltar à carga”. Essa dignidade identifica-a “nos operários industriais e agrícolas, nos militares revolucionários de Abril e nos burgueses que os acompanharam”, e, note-se bem, “nos camponeses e nos salazaristas que não se renderam”. Aos camponeses que, em 1975 a Igreja mobilizou contra a revolução, ele presta uma homenagem que pode ser surpreendente. P. vê-os como os herdeiros do país do século XVIII e da primeira metade do século XIX, “o país que não fora ridicularizado pelos liberais, pelos ingleses, pela mediocridade salazarista”.  Traídos pela Igreja, os camponeses viriam a ser desapossados das suas terras pela PAC e pelo capitalismo e soçobraram como soçobraram os operários  das cinturas industriais. E foi então que no lugar da gente digna ficou o “personagem mais rasteiro “ da farsa democrática, ”o eleitor”.
P. não acredita no progresso, nem na ideia de progresso. “A ideia de progresso é uma falácia, um ideologema”.  Por isso, ao regressar da Jamaica, logo num aeroporto europeu, é tomado pela repulsa do progresso, entrevisto em objectos de consumo de baixa qualidade e alta encadernação.
O processo narrativo tem alguns pontos de contacto com o utilizado por Sebald em Austerlitz. Também o narrador, aqui o psiquiatra, profere afirmações que atribui reiteradamente a P., um historiador,  um arquitecto, um homem em que o passado se enreda no presente, esmagado pela meteorologia. P.  conhece o monstro escondido que está ao leme do ano de 2012 e quer assestar-lhe um golpe simbólico.
O autor conhece as suas limitações. Depois de uma longa imprecação, confidencia que alguns dos seus discursos são “mais para agredir do que para convencer ou argumentar” e depois de ceder à descrição da fealdade de uma praia, deixa o alter ego pintar a realidade com outras cores e concluí que as duas visões são ainda possíveis e que se pode” ser feliz sem acreditar na felicidade”.
Um livro escrito em tom maior, cujas palavras fortes enchem o peito e devem ser declamadas onde quer que se juntem alguns espíritos livres, ou lançadas como rockets (em inglês) aos ocupantes e colaboracionistas , ou ditas devagar aos progressistas para que percebam que a sua cartilha é a ideologia imperialista dita de outra maneira, ou enviadas aos partidos de esquerda “esvaídos em estratégia”, ou sussurrada no campo, à sombra do pinheiro, para deleite das crianças e dos bichos. Um livro de um homem de linhagem, do Portugal antigo e do futuro imprevisível, que é o único que vale a pena.

O Verão de 2012, Paulo Varela Gomes, Tinta da China, 2013

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04 fevereiro 2013

A Luz de Annemarie Schwarzenbach





Mas até nos tempos mais sombrios temos o direito de esperar ver alguma luz, e é bem possível que essa luz não venha tanto das teorias e conceitos, como da chama incerta, vacilante e muitas vezes ténue, que alguns homens e mulheres conseguem alimentar em quase todas as circunstâncias e projectar em todo o tempo que lhes foi dado viver neste mundo.
 Hannah Arendt

O que caracteriza os tempos actuais, tal como os vivemos neste país, é a consciência agudíssima de que são tempos de viragem.
Durante algum tempo o sistema económico mundial escondeu as suas características de exploração dos assalariados pelos detentores do capital , de predação dos bens naturais, de divisão internacional do trabalho. Esta terminologia era utilizada pelos revolucionários e representava um estado de consciência  pré insurreccional. Um léxico foi inventado para ocultar a realidade. Os trabalhadores passaram a ser designados como colaboradores. Os exploradores foram promovidos a empreendedores. Com a derrota das revoluções e o descrédito dos revolucionários,  o sistema passou a mundial e deixou de ter adjectivos e história. Um sistema ahistórico, pós racional, decorrendo molemente numa democracia anestesiada,  onde a sempre glorificada participação democrática se resume à comédia de eleger um grupo de patifes que decreta leis para benefício próprio. O ópio do povo era o crescimento, as mordomias do estado social, as férias na Quarteira, as bolsas, os estágios, as novas oportunidades. Os desgraçados que alimentaram este sistema, esse imenso exército de gente simples e respeitadora, viu-se de repente como devedora. Os agiotas e os correctores pedem-lhes mais um esforço. Os mesmos de sempre estão a reconfigurar o Estado e a cumprir o programa oculto dos exploradores em nome da necessidade. A última razão de cada medida é o deficit, o pagamento da dívida, dos juros da dívida. Milhares de pessoas ficaram sem trabalho. Num país sem oportunidades os melhores emigram e os lugares que restam são rateados pelas famílias dos patrícios, despudoradamente.
Estranhamente, não há nem revolta nem revolução.
Annemarie Schwarzenbach nasceu em Zurique em 1908 e morreu com 34 anos, depois de uma queda de bicicleta. Morreu jovem, mais jovem do que alguns que lêem estas crónicas. E permaneceu assim, na nossa imaginação. Jovem, linda e andrógina, com casacos de corte masculino, calças de amazona ou apertadas nos tornozelos, cabelo curto na nuca e camisolas pretas de gola alta. Licenciada em História, foi arqueóloga, jornalista, fotógrafa, viajante, publicista, escreveu guias de viagem, romances, peças de teatro, contos, mais de 300 artigos em jornais suíços, poemas, diários de viagem. O fundo da Biblioteca nacional Suíça guarda mais de 5.000 negativos, através dos quais é possível traçar os roteiros dos seus périplos, na Ásia, em África, nos Estados Unidos. Um dos livros que escreveu foi editado em Portugal, antes do CCB lhe dedicar uma pequena exposição, em 2010. Chama-se Morte na Pérsia e é de uma leitura abismal, permanentemente  atravessada pelo  sopro da morte, pelo abraço gelado dos anjos do Damavand.  O Damavand é uma grande montanha do sul do mar Cáspio, um brutal cone vulcânico liso, um teto do mundo nos seus mais de 5.000 metros, o  ponto mais alto da cordilheira Alborz. O vale do Lar desce do Davamand para o litoral Cáspio. Mas a descrição da sua travessia é alucinatória e nocturna, uma experiência que um humano só pode levar a cabo em luta com um anjo que permanentemente o atrai e empurra do seu território.
Antes da Pérsia, Annemarie esteve em Moscovo, no primeiro Congresso da União dos Escritores Soviéticos. Acompanhava Klaus Mann, um dos filhos de Thomas Mann, e uma amizade que duraria toda a sua vida atribulada. Depois atravessou a Pérsia, os vales sem nome e o vale de Lar , os planaltos atravessados por sombras de nómadas lutando pela sobrevivência, muito próximos da terra e da água, dos rios que de dia são rápidos rios de montanha e de noite são espelhos de prata parados, reflectindo o Inferno. Ao ver os deserdados, “os nómadas das  montanhas Bahktiari, os pastores, os criadores de cavalo da estepe turcomana, os pescadores de esturjão, os caravaneiros, os motoristas dos camiões e os lavadores de tapetes”,  ela interrogou-se: como é que as ideias do Norte, a propaganda comunista, não tinha passado para um país afinal tão próximo?  Alguém lhe disse:
- É impossível. Estão tão sós que nem sequer se apercebem da sua miséria. Acreditam que Deus os elegeu, um a um, para a infelicidade.
Annemarie era um ser mitológico e ao mesmo tempo violentamente moderno. Viveu a ascensão do nazismo e o começo da guerra. A grande depressão e o início da América rooseveltiana. A esperança do comunismo e os processos de Moscovo. No Turquemenestão foi expulsa de uma escavação  depois de uma paixão inconveniente com a arqueóloga Ria Hackin. Ella Maillart rompeu com ela em Cabul, apavorada com a dependência opióide. Carson Mc Cullers dedicou-lhe Reflexos nuns Olhos de Oiro. 
E no entanto, entre as pragas dos muleteiros, descendo as ravinas calcinadas de vales sem nome, é nela que penso, quando procuro alguém que possa projectar alguma luz sobre os nossos dias.

Morte na Pérsia, Annemarie Schwarzenbach, Tinta da China, 2008 e 2010

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