No último livro de Paulo Varela Gomes um médico narra o que
aprendeu com um doente singular, que identifica como P.
No Verão de 2012, uma coincidência especial juntou P. a William
Beckford, o celebrado autor de Diário em
Portugal e Espanha, 1787 à actualidade, a meteorologia à crise do
imperialismo. Não foi esta a única coincidência. Houve outra, “a mais
revoltante das coincidências”, a que ligou uma doença fatal diagnosticada a P.
à decomposição iniludível do seu país.
A P. não resta já nenhuma ilusão sobre a natureza da espécie
humana. Ele deseja a demolição impiedosa das casas, bairros, prédios construídos
nos últimos 50 anos, do marcelismo aos nossos dias, o fim da espécie humana, o
seu aniquilamento total e selectivo, a morte cruel dos caçadores, “sofrendo
muito”.
A consciência de um fim próximo devolve-lhe a atenção dos
pequenos seres vizinhos: o
pássaro, o arbusto, as “esvoacinhas”, as andorinhas, as crias dos corvos. E, em
oposição aos sinais de destruição, que são os despojos do progresso, o lixo do
progresso, a imundície não degradável do progresso, a celulose com que o
progresso embala os produtos de consumo rápido de manufactura perfeita e
banalizada, “o mundo tristíssimo do design”, ele enumera alguns sinais de
futuro: o caramanchão, a horta cultivada pela mulher, o cheiro dos javalis,
animais que não se alimentam da fibra e do sangue de outros animais, reciclam a
natureza, saem das tocas onde se esconderam dos carnívoros nocturnos e descem
com os bacorinhos para o vale, trazendo consigo um cheiro que é o do ilang
negro.
P. visita a história do país dos últimos séculos através de
relatos dos viajantes. O já citado Beckford, escrevendo do Ramalhão, em Sintra,
no final do século XVIII, um homem de nome estranho, Cox Macro, um alemão
chamado Link, o médico francês Joseph Barthelemy Carrère, um tal Crawfurd.
Quase todos descreveram um país exótico, com um olhar orientalista, um país
expelido da Europa, onde, à semelhança do que acontece entre muçulmanos, as
mulheres da aristocracia se ocultam na sombra das adufas e dos véus, arredadas
do Passeio Público, que está delimitado por um gradeamento e encerra ao pôr do
sol. Um país deserto ao anoitecer, sem cidades e sem mulheres, de praças
bisonhas e aias encapuçadas. Um país de gente pequena e pele tisnada, hirsuta, semelhante
aos indianos do norte e do centro, aos magrebinos e aos turcos. Como o francês
Carrère disse, o “mais selvagem e bárbaro povo da Europa, o mais ignorante e
menos civilizado”. E ele, P.,
concorda, com uma ressalva. Selvagem e bárbaro, sim. Um país de aldeias e medo,
com um povo de bárbaros. Mas de gente digna.
A dignidade, foi perdida “com o fim das revoluções , em
meados do século XIX, confirmado pelo falhanço da República, pelo salazarismo e
pela derrota do 25 de Abril com a entrega do país à União Europeia”. A
dignidade pessoal aprendeu-a P. na luta contra a polícia , durante a ditadura.
“Dominar o medo da polícia”, escreve, “era aquilo que desde criança
identificava com a diferença entre
a dignidade e a vergonha”. E ele tivera medo muitas vezes, “não fora tão longe
quanto pudera”, mas “nunca recuara definitivamente, nunca fugira para não
voltar à carga”. Essa dignidade identifica-a “nos operários industriais e
agrícolas, nos militares revolucionários de Abril e nos burgueses que os
acompanharam”, e, note-se bem, “nos camponeses e nos salazaristas que não se
renderam”. Aos camponeses que, em 1975 a Igreja mobilizou contra a revolução,
ele presta uma homenagem que pode ser surpreendente. P. vê-os como os herdeiros
do país do século XVIII e da primeira metade do século XIX, “o país que não
fora ridicularizado pelos liberais, pelos ingleses, pela mediocridade
salazarista”. Traídos pela Igreja,
os camponeses viriam a ser desapossados das suas terras pela PAC e pelo
capitalismo e soçobraram como soçobraram os operários das cinturas industriais. E foi então que no lugar da gente
digna ficou o “personagem mais rasteiro “ da farsa democrática, ”o eleitor”.
P. não acredita no progresso, nem na ideia de progresso. “A
ideia de progresso é uma falácia, um ideologema”. Por isso, ao regressar da Jamaica, logo num aeroporto europeu,
é tomado pela repulsa do progresso, entrevisto em objectos de consumo de baixa
qualidade e alta encadernação.
O processo narrativo tem alguns pontos de contacto com o
utilizado por Sebald em Austerlitz. Também o narrador, aqui o psiquiatra,
profere afirmações que atribui reiteradamente a P., um historiador, um arquitecto, um homem em que o
passado se enreda no presente, esmagado pela meteorologia. P. conhece o monstro escondido que está ao
leme do ano de 2012 e quer assestar-lhe um golpe simbólico.
O autor conhece as suas limitações. Depois de uma longa
imprecação, confidencia que alguns dos seus discursos são “mais para agredir do
que para convencer ou argumentar” e depois de ceder à descrição da fealdade de
uma praia, deixa o alter ego pintar a realidade com outras cores e concluí que
as duas visões são ainda possíveis e que se pode” ser feliz sem acreditar na
felicidade”.
Um livro escrito em tom maior, cujas palavras fortes enchem o
peito e devem ser declamadas onde quer que se juntem alguns espíritos livres,
ou lançadas como rockets (em inglês) aos ocupantes e colaboracionistas , ou
ditas devagar aos progressistas para que percebam que a sua cartilha é a
ideologia imperialista dita de outra maneira, ou enviadas aos partidos de
esquerda “esvaídos em estratégia”, ou sussurrada no campo, à sombra do
pinheiro, para deleite das crianças e dos bichos. Um livro de um homem de
linhagem, do Portugal antigo e do futuro imprevisível, que é o único que vale a
pena.
O Verão de 2012, Paulo
Varela Gomes, Tinta da China,
2013
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